Sete vezes Rappa

O Rio de Janeiro continua lindo. E O Rappa continua sendo. Causando. Para lançar Sete Vezes, o sétimo disco de uma carreira que já se estende por uma década e meia pautada por um posicionamento em favor dos excluídos e pontuada de excepcionalidades, como os tiros recebidos por um de seus componentes durante uma tentativa de assalto, O Rappa e sua gravadora, a Warner, se cercaram de cuidados. O disco, que chega às lojas no dia 14 de agosto e será lançado com um show no dia 28 no indefectível Canecão carioca, teve de ser ouvido in loco, nos escritórios da gravadora na Gávea. Em seguida, o grupo recebeu Brasileiros no Cinemathèque JamClub, no Botafogo, um casarão com sotaque paulistano devido à arquitetura art déco e o status de cobiçado palco para apresentações de artistas iniciantes. Quer dizer, no horário marcado quem estava lá era Marcelo Lobato, baterista, Lauro Farias, baixo, e Alexandre Menezes, o Xandão, guitarrista que, além de não-carioca, é paraibano, se dá ao luxo de morar há sete anos em Curitiba. O que não o impediu de chegar no horário, ao contrário do vocalista Marcelo Falcão, que apareceu duas horas depois, meio sem graça, após enfrentar um engarrafamento-monstro desde sua casa em Vargem Grande, ao sul do Rio. Mas a banda, que durante duas horas nos atendeu depois de falar com a revista Rolling Stones e antes de posar para a MTV, o que dá uma idéia de seu apelo ainda jovem, não aporrinhou Falcão.

Para Lobato, a banda é como uma família onde as pessoas aprendem a se aceitar e a conviver com os defeitos alheios. O relacionamento interno d’O Rappa é fruto da convivência de 15, 16 anos. Mas Falcão teve de agüentar a gozação do neocuritibano Xandão, “que chega em casa em uma hora de avião”. Diferentemente de grupos como Beatles e Rolling Stones, brincam, a banda não é formada por amiguinhos de infância, mas por músicos profissionais que decidiram se juntar. O começo não foi nada romântico, como se verá a seguir, e eles percorreram um longo caminho até chegar a Sete Vezes, o primeiro disco com músicas inéditas desde O Silêncio Q Precede o Esporro (2003). Isso se deve ao fato de terem uma carreira baseada na estrada. Seu ambiente é o aquário de shows. No momento da entrevista, estavam chegando de Sobral, Ceará, e preparando-se para ir a São Fidélis, interior do Rio. O show atual é elétrico, funciona como um panorama da carreira do grupo e entremeou os dois anos e meio de apresentações do disco Acústico (2005), a princípio previstas para durar sete meses apenas. Segundo Lobato, quando você vive esse processo não dá para parar um ano, criar material, lançar no outro, essas coisas.
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OUÇA A FAIXA “MONSTRO INVISÍVEL:

 

O grupo que originou O Rappa foi formado por Nelson Meirelles, baixista e então produtor do Cidade Negra, e não passava de uma armação de última hora para acompanhar o rapper jamaicano Papa Winnie de passagem pelo Brasil. Além de Meirelles o conjunto trazia Lobato, então tecladista do grupo África Gumbe, Xandão, que tocava com Devaneios, e o baterista Marcelo Yuka, do KMD-5 (de onde mais tarde sairia Lauro). O som foi tão bom que resolveram montar uma banda. Para isso, colocaram um anúncio no jornal convocando um vocalista. O escolhido foi Falcão, adepto de raggamuffin, o rap jamaicano, e que havia tocado guitarra na banda do baixista Silvio Essinger – hoje um jornalista conhecido e que estava no Cinemathèque tomando notas para o release de Sete Vezes.

Estrearam no Circo Voador, o Canecão do underground, com três nomes, por via das dúvidas. BatMacumba e Cão Careca, que foram riscados na última hora, e O Rappa – que tanto se refere aos fiscais da prefeitura que dão em cima de camelôs quanto a uma corruptela de ô rapaz, como seus fãs passaram a gritar nos shows. Com Meirelles patrocinando, os garotos gravaram o primeiro disco, sempre pela Warner, que não aconteceu. Eram dias de Planet Hemp, Chico Science, Mamonas Assassinas, Skank, Alexandre Pires, Raimundos, Daniela Mercury – pelo menos era isso que Falcão se lembra de ouvir enquanto trocava a fiação elétrica do Hospital Guadalupe, onde trabalhava como técnico. Na época, vender mais de um milhão de cópias não era um delírio.

Pois para eles era. O Rappa (1994) teve dificuldades em chegar aos dez mil discos. Lauro, que tocava com Elymar Santos, entrou no lugar de Meirelles no baixo e se deparou com uma ralação de shows vazios, turnês das quais saíam devendo. Alguns culpavam as letras soturnas. A gravadora continuou apostando, mas o moral estava baixo. Foi quando um dos vários anjos da guarda da carreira d’O Rappa, o poeta sírio baiano Waly Salomão, irrompeu no estúdio onde ensaiavam para o segundo disco. Seu interesse havia sido despertado por uma foto descrita por Falcão como “cinco rapazes suados de tanto andar de ônibus usando roupas emprestadas”. Waly os achou “especiais” e aconselhou-os a gravar “Vapor Barato”, música que havia composto com Jards Macalé, já então há quase duas décadas, e aparecia regravada no recém-lançado Terra Estrangeira, filme de Walter Salles e Daniela Thomas. Yuka e Lauro foram encarregados de ir ao cinema para aprender a canção, que seria incluída no segundo disco, Rappa Mundi (1996).

Hoje considerado um clássico, o disco ficou acumulando poeira nas prateleiras durante quase um ano até que, em um lance de ousadia, a banda resolveu contratar um novo empresário e sair tocando em qualquer biboca, não as músicas de trabalho escolhidas pela gravadora, caso de “Pescador de Ilusões” (O Rappa, Yuka), que seria reconhecida recentemente. Eles preferiram investir nas mais sacudidas, como a versão de “Hey Joe”, do repertório de Jimi Hendrix, e “Tumulto” (Yuka). Não é que deu certo? Tocando agora para platéias lotadas, eles também descobririam que havia um contingente enorme de fãs que tinham o primeiro disco em fitas piratas que traziam para que autografassem. Ou seja, estavam numa furada mesmo.

Segundo Xandão, enquanto todo mundo remava para um lado mais cor-de-rosa, “a gente vinha na contramão total. É bonitinho? Não. O nosso é feio, é escroto, as nossas letras fazem crítica social mesmo, a gente fala impropérios”. Lobato, no entanto, ressalva que O Rappa nunca foi uma banda xiita, de levantar uma bandeira, dizer “nós somos marxistas”. Nunca teve essa coisa messiânica de dizer isso é bom, isso é ruim, seja assim, seja assado, “olha como sou legal”. Para ele, as músicas têm um papel mais de crônica, comentários sobre o dia-a-dia com os quais as pessoas foram se identificando. O fato é que, desde então, nenhum disco d’O Rappa vendeu menos do que 200 mil cópias e, recentemente, até o primeiro álbum ganhou disco de ouro – todos seus discos estão em catálogo e vendendo.

Com o gostinho do sucesso, eles partiram para o terceiro disco Lado A Lado B (1999), gravado no estúdio de Lobato em Laranjeiras e, posteriormente, no de Chico Neves, que sugeriu que mixassem o disco no Real World de Peter Gabriel, a cem milhas de Londres, um estúdio castelo, sede da gravadora Womad. O próprio Gabriel, que estava gravando a portas abertas, recebeu a banda que, apesar da tranqüilidade do lugar, cercado de campos de rugby e dada a jantares vegetarianos comunitários, brigava o dia inteiro a ponto de o produtor da banda, Tom Capone, ter de ir pessoalmente à Inglaterra resgatar a fita. Entre outras pérolas, o disco tinha “A Minha Alma (a paz que eu não quero)” (O Rappa, Yuka), cujo vídeoclipe dirigido por Breno Silveira, Kátia Lund e Paulo Lins seria o embrião do filme inspirado no livro de Lins, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles. A turnê subseqüente rolava às mil maravilhas quando em novembro de 2000 Marcelo Yuka foi baleado durante uma tentativa de assalto. Ficaria tetraplégico. Mais uma vez Capone salvaria a banda que, forçada pelo próprio Yuka, voltara à estrada, mas enfrentava o dilema de como gravar um novo disco. O produtor tinha, por coincidência, o registro de um show de Porto Alegre que, acrescido de músicas inéditas como “Ninguém Regula a América”, uma parceria com a banda trash Sepultura, formaria o CD duplo Instinto Coletivo ao Vivo (2001).

Desde Londres O Rappa vivia um dilema com Yuka. Lobato esclarece que a banda sempre compôs junto. O que existia era o texto do Yuka, às vezes de até cinco páginas, que em bruto não cabia nas músicas. E explicita, “o texto musical é um texto sucinto, tem que rimar, tem uma métrica para você colocar ali dentro”. A opção pelo assunto é consensual. “O Yuka é um cara muito inteligente, um cara arrebatador, continua sendo essa pessoa brilhante, mas em um determinado momento a gente percebeu que depois do acidente não tinha mais afinidade”, diz Lobato. Até hoje o músico recebe como membro fundador, participa do nome da banda, e lidera a sua própria, F.U.R.T.O., sigla de Frente Urbana de Trabalho Organizado. O Rappa foi para a estrada, com Lobato assumindo a bateria, instrumento que toca desde os 14 anos, deixando os teclados para seu irmão Marco que, ao lado do DJ Negralha e do percussionista Klébinho, descoberto em um projeto social promovido pelo O Rappa em conjunto com o Afro Reggae, participam de todos os shows.

Tom Capone os salvaria uma terceira vez ao acolhê-los em seu estúdio A Toca do Bandido de onde saiu O Silêncio Q Precede o Esporro (2003), disco que consolidou o prestígio d’O Rappa pós-Yuka. Na realidade, Capone também pode ser considerado responsável pelo Acústico, que vislumbrou e delineou, inclusive reservando estúdio, pouco antes de morrer em um estúpido acidente de moto nos Estados Unidos, enquanto comemorava o Grammy que recebeu pelo disco de Maria Rita, que coincidentemente é uma das convidadas do Acústico, ao lado do pernambucano Siba. Por sinal, o único momento tenso da entrevista ocorreu quando o nome da cantora foi citado, assim como o da atriz Deborah Secco. Segundo O Rappa, isso diz respeito à intimidade de Falcão, que teve uma relação de três anos com Deborah e que prefere “primeiro descobrir o que está acontecendo para depois falar o que Maria Rita é além de minha amiga”. Para efeito de registro, os outros três são casados. Lauro tem quatro filhos, o mais velho de 11 anos; Xandão, uma filha de sete; e Lobato, uma de quatro e meio. Falcão acreditava-se pai de um garoto, o que foi desmentido após os exames específicos, para seu desapontamento. O papo dirigiu-se para a família uma vez que com Sete Vezes eles se aproximaram do modelo ideal de trabalho, algo que aprenderam em sua estadia com Peter Gabriel. Assim que as bases, ou seja, bateria e baixo, foram gravadas, Marcelo Lobato e Xandão levaram cópias das sessões para seus respectivos estúdios e acrescentaram teclados, no caso do carioca, e guitarras, no do paraibano. Xandão está exultante. Segundo ele, “quando a gente está produzindo o disco, fica pior porque eu tenho de deixar a tranqüilidade de Curitiba e ficar vindo aqui para o Rio. Mas, quando a gente está na estrada, passa dois, três anos, só nos encontramos na estrada mesmo, para o show. A coisa é tão intensa que sempre que pode você quer ficar com a sua família, descansar. Não tem essa história de ficar saindo junto”. Irônico, Falcão comentou, provocando gargalhadas “estou pensando em me mudar para Fortaleza. Quem sabe assim eu chego no horário”.

Sete Vezes
Produzido por Ricardo Vidal e Tom Sabóia, Sete Vezes chega às lojas no dia 14 de agosto e desde o dia 1º pode ser ouvido em streaming. A única faixa divulgada adiantadamente é “Monstro Invisível”. Leia alguns trechos das músicas.
1. Meu Santo Tá Cansado
“Mesmo sem carteira azul
sempre fui trabalhador
não tô aqui pra ser herói cuzão
aqui não tem cabeça baixa”
8. Monstro Invisível
“Botões atalhos
amplificam a distância
a preguiça de estar lado a lado
veste a armadura
esse é o poder solitário”
2. Verdade de Feirante
“Minha vida é sem graça
quase cópia
produtor camelô de birosca
CD pirata no mundo igualzinho
tudo copiadinho”
9. Maria
“Nosso som não tem cor
não tem briga
vejo as favelas todas elas unidas
nosso som não é barulho
Nosso grito não é aviso
meu coração é
pulsação é meu guia
nunca esquecida minha
mão de Maria”
3. Óstia
“Meu escudo é minha óstia”
10. Súplica Cearense
“Agora o inferno queima
meu humilde Ceará
política fome
fome promessa sede”
4. Meu Mundo é o Bar
“Não tenho um
trabalho nem passe
sou quase um cara
não tenho cor nem padrinho”
11. Fininho da Vida
“É o fininho da vida
disciplina de trem,
virtuose na vida tem
maioria tem, maioria contida tem
nordestina tem, havaiana furiosa
ruminando em silêncio,
engolir sapo da vida
olho baixo de quem tem emprego”
5. Farpa Cortante
“No lado de cá da vitória
a vida emprestada no crime”
12. Documento
“Passei documento do
procedimento
se era bom ou ruim
tava aquém de mim”
6. Em Busca do Porrão
“É uma sina e a beleza
perdida da cidade pra além
do silêncio do gozo da mulher”
13. Respeito pela Mais Bela
7. Sete Vezes
“Deixo o mundo avisado
escrevi teu nome
será que é fato necessário
insistir e repetir
todas as portas vão se abrir
castigo será que é obrigatório?
estudar pra ter vocabulário?
será que é preciso pensar?
engraçado, andar para
trás, ao contrário
colorir tudo de amor
inventar um novo jeito de brincar
saber sorrir
alguma coisa pra sobreviver”
14. Vários Holofotes
“Ligados aqui
é um estado de sítio diário
foi selada a falsa calmaria
águas lavam o chão da evidência”


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