O Braga mora num sítio em Santana do Parnaíba com a mulher e dois cachorros. O mais novo é um vira-lata muito simpático. Sem qualquer traço de raça. Nem na forma nem na pelagem. O pelo do peito é liso acinzentado. O do lombo é arame castanho, manchado de preto. Os amigos dizem – não na frente do Braga, claro – que o bicho parece uma hiena. Mas o cão é um doce. Um poço de afetividade não carente. O que é excelente, também em cachorros. Ele tem a disposição para o amor, mas não cobra, não exige. Só assedia o Braga quando fareja chocolate. Com o passar dos anos, percebeu que o Braga se dobra a um olhar.

Já o mais velho – Simão – é um grandalhão meio quadrado, do pelo liso, escuro, tigrado de preto. O latido ocasional vem lá do fundo. Coisa de bicho sério. Impõe respeito, não só pela estatura e pelagem, mas pela postura e olhar. Senta nas patas de trás e encara o Braga longamente. Não é um olhar que desafia, pede, interroga, cobra ou suplica. Nada disso. O olhar do Simão é pesado. Perscruta, investiga e diz.

Quando deitado na rede, o Braga retribui o longo olhar, até ficar com a sensação de que por trás daqueles olhos caninos há um ser consciente que o observa intelectualmente. De maneira tão atinada que o Braga passou a abaixar o olho ante a poderosa mirada. O bicho não pisca, fica firme. Olho no olho. Seguro e solene.

Em uma fase posterior, ele começou a achar que aquele olhar cravado pesado se aprofundava: Braga você é uma farsa.

Aquilo o incomodou muito, atrapalhou mesmo. A ponto de ele não conseguir se livrar do pensamento recorrente. Um dia – eu não o via há uns dois anos –, ele me convidou para ir ao seu sítio. Contou tudo e me deixou na varanda a sós com o cão. Que ideia?

Eu fiquei ali na rede e não deu outra. O cachorro sentou e me encarou longamente. Com um olhar sereno, penetrante e reflexivo, que se mostrou também conclusivo. Em poucos minutos, dizia claramente que eu era uma farsa. Impiedoso cão!

Chamei o Braga, confirmei o ocorrido e manifestei minha estranheza. Afinal, o Simão o conhecia, mas não a mim. O Braga desapontado disse que talvez o cão tivesse não só consciência, capacidade de observação e discernimento, mas também algo de sensitivo.

Me senti ofendido, mas desconversei: Talvez o Simão diga isso para todo mundo. O Braga disse que não e insistiu que por ali havia outro plano de consciência animal.

Conheço o Braga, é teimoso. A única saída é entrar na dele. Entrei: Você tem razão, a gente acolhe, alimenta e trata esses bichos pra depois ouvir um desaforo desses? É o fim da picada! Não olhe mais no olho desse ingrato.

O Braga farejou ironia, mas acolheu a sugestão. Acolheu, porém distanciou-se.

Àquela época, eu achava que o Simão não passava de uma fisionomia e um comportamento que induziam à introspecção hipercrítica em ré menor. Mas, depois que soube do ocorrido entre ele e outros conhecidos, mudei de ideia. Sem sombra de dúvida, o Simão é um sensitivo que opera em outro plano de consciência animal. E tem mais, enxerga bem o filho da puta.


*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).


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