Parte das lendas da cultura milenar japonesa, Kappa, conta-se, vive à espreita na beira dos rios. Mistura de réptil e marsupial, com corpo humanoide de baixa estatura, é quase um “Chupa-cabras” com o espírito zombeteiro do nosso Saci. Permeado por criaturas fantásticas, o rico folclore nipônico deu a ele uma reputação duvidosa. Seu hábito de afogar pescadores e banhistas desatentos faz do Kappa criatura traiçoeira. Tal característica pode estar entre os motivos que levaram Ryunosuke Akutagawa a escolher os Kappas como protagonistas do conto alegórico que abre a coletânea Kappa e o Levante imaginário, lançamento da editora Estação Liberdade.Reconhecida como uma das principais contribuições do Japão à literatura universal, a obra de Ryunosuke Akutagawa possui forte traço autobiográfico. Sua percepção aguçada e negativa em relação à índole humana é fruto de sua origem e vivência pessoal. Como diz o texto introdutório da presente edição: Akutagawa nasceu ficção.
O autor veio ao mundo em um país que tentava se afirmar como parte da comunidade internacional, após décadas de isolamento e estagnação. Na época, o Japão praticamente se dividia em dois: um que tentava se recuperar do atraso e firmar os pés na modernidade, importando tecnologia e sendo invadido pela cultura ocidental; e outro que rejeitava os novos tempos, mantendo-se fiel às tradições e superstições que regiam o período feudal.Seu nascimento é marcado pela infeliz conjunção do ano e hora do dragão – Ryunosuke pode ser traduzido como “O filho do dragão”. Não bastasse, segundo crenças orientais, a idade dos pais na ocasião também era representativa de mau agouro.
Amaldiçoado, o bebê deveria ser abandonado à própria sorte. A solução foi deixá-lo em local conhecido para que um amigo o encontrasse e o levasse para casa. Pouco tempo depois, com a sanidade mental em declínio, sua mãe veio a falecer, logo em seguida também seu pai. Isso colaborou para que fosse considerado de sangue ruim, tornando-se quase um pária em seu núcleo social.Criado por um tio, Akutagawa cresceu sob a marca da rejeição, sentimento que o acompanhou por toda a vida e que, ao lado do medo de ter herdado da mãe o gene da loucura, contribuiu para o quadro depressivo que pontuou sua trajetória e refletiu em sua literatura. Praticamente, em toda a sua obra é possível detectar referências a eventos de sua vida ou perceber o próprio autor representado em personagens ou falas dos mesmos. Tal artifício fica mais evidente em seus últimos escritos, até então inéditos no Brasil, Kappa e Rodas Dentadas.
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O último, registro confessional de seus momentos derradeiros e seu estado emocional, traz o próprio escritor como personagem de uma trama inspirada em fatos reais de seu cotidiano.Ainda hoje alvo de debates, Kappa tornou-se representativo de sua lírica e visão de mundo. Narrado por um interno em um hospital psiquiátrico que alega ter sido levado ao mundo dos kappas e convivido com as criaturas, a trama gira em torno de seu relato fantástico.Denominado o Paciente 23, ele descreve uma sociedade não muito diferente da dos humanos, mas com características muito particulares. Um bebê kappa, por exemplo, já nasce falando e, no momento do parto, é questionado se está pronto para vir ao mundo. Sendo a resposta negativa, um tubo é inserido no ventre da mãe e seu conteúdo sugado, como que esvaziando a um balão. Embora as religiões dos kappas sejam as mesmas que as dos humanos, a mais influente é a Modernista ou Vitalista. Conforme o personagem descobre durante visita a um de seus templos, seus seguidores têm como apóstolos Strindberg, Nietzsche, Tolstói, Doppo Kunikida e Wagner.
Sob o divertido e inocente disfarce de fábula infantil, se esconde uma contundente crítica à sociedade moderna. Na época de sua publicação, foi acusado de ser um manifesto em defesa do Socialismo, pelo qual Akutagawa nutria simpatia. Uma das críticas, no entanto, enxergava em suas linhas uma visão sombria em relação à humanidade como um todo, ganhando aprovação do autor como a leitura mais próxima de suas intenções.Akutagawa e KurosawaCelebrado como o pai do conto japonês e mestre da narrativa breve, Akutagawa é detalhista ao descrever ambientes, épocas e situações. Seu estilo abre espaço para experiências quanto à forma e ao conteúdo. Em No Matagal, por exemplo, a investigação do assassinato de um samurai nos apresenta o mesmo fato pela ótica de sete personagens diferentes, em um caso de mistério em que nada é o que parece ser. Sua maestria na condução da trama prende o leitor e oferece um final surpreendente. Quase uma transposição da literatura policial do Ocidente para o Japão feudal, o conto forneceu a Akira Kurosawa o enredo para o premiado Rashomon, filme dirigido por ele em 1950 e que entrelaça em adaptação para o cinema dois contos de Akatagawa – o outro, do qual o cineasta tirou o título, também aqui presente.
Não espere por fábulas edificantes ao entrar no universo de Ryunosuke Akutagawa. Se existe uma moral da história aqui, é a amoralidade incrustada nas profundezas do espírito humano. Na maioria das vezes, seus personagens são criaturas à margem e prontas a mentir e até realizar atrocidades, alguns por puro deleite pessoal, outros, em nome da sobrevivência ou em situações limite que os colocam em confronto com o lado mais sombrio de sua natureza. Como descobre o servo solitário que protagoniza Rashomon: “Não há espaço para escrúpulos quando se quer remediar uma situação irremediável”.Os dez contos que compõem Kappa e o Levante Imaginário revelam a versatilidade e ecletismo de um autor apaixonado por seu ofício. Desde a infância, Akutagawa encontrou refúgio nos livros. De forma compulsiva, leu todos os títulos da biblioteca da família, composta praticamente de literatura antiga japonesa e chinesa. Homem de seu tempo, sofreu também influência de autores ocidentais como Ibsen, Strindberg, Baudelaire, Oscar Wilde e outros. A forma como combinou tais referências para criar uma obra única e original, faz dele um dos principais arquitetos na construção da moderna literatura japonesa. Seu nome batiza hoje o mais importante prêmio literário de seu país.O autor morreu aos 35 anos de overdose de cianeto de potássio. Era sua terceira tentativa de suicídio. Em nota, escreveu: “Por mais paradoxal que pareça, agora que estou pronto, acho a natureza mais bela do que nunca. Vi, amei e compreendi mais que os outros”.
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