Sob os escombros da memória

Há 40 anos, o médico reumatologista Pedro Nava (1903-1984) lançava Baú de Ossos, seu primeiro livro de memórias que assombrou a crítica e os leitores dos primeiros anos de 1970, com uma minuciosa descrição de seus antepassados e de sua infância entremeada por uma análise da vida social, cultural e política da época. Um feito imaginável para um escritor (muitos preferem descrevê-lo como memorialista) que beirava os 70 anos e fora incentivado a continuar escrevendo pelos amigos mineiros de letras e modernistas como ele: Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Otto Lara Resende. “(…) Eu queria escrever um livro de lembranças familiares, de fatos que eu conheci, mas meus irmãos ignoravam. Seria um livro clandestino, para correr dentro da família. Os originais eu dei para ler ao Fernando Sabino, ao Otto Lara Resende e ao Drummond, e a opinião deles foi que eu deveria continuar no mesmo tom, escrevendo as minhas memórias. Foi o que aconteceu”, disse ele anos mais tarde, quando já tinha lançado cinco volumes de sua obra, ao jornalista e escritor Edmilson Caminha.

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Outro escritor mineiro e seu contemporâneo Cyro dos Anjos (1906-1994), autor de O Amanuense Belmiro, clássico da literatura brasileira, dizia que a formação do escritor se dá entre a sua infância e os primeiros anos de sua mocidade. E certamente foi nesse período que Pedro Nava foi buscar a força e a singularidade de sua obra que tanto tocou a crítica e os leitores da época. No interessante artigo O Epistolário de Pedro Nava: entre Práticas de Escrita e de Oralidade, a autora Maria de Fátima Fontes Piazza, da Universidade Federal de Santa Catarina, analisa as cartas que Pedro Nava recebeu das suas leitoras e observou que elas faziam uma leitura autobiográfica das obras dele. Uma das correspondências analisadas ilustra bem essa identificação entre leitor e obra: “O que fica mais nítido, deste envolvimento com seu livro, é que todos nós temos nossos baús. Você me fez abrir o meu e embora eu esteja quarenta anos menos que você, encontro ponto de unidade nas suas visões. (…) Seu livro, por conter tanto de mim, me estremeceu, me alegrou, me entristeceu, me alegrou de novo, viveu comigo. (…) Seu baú soa em mim”.

Ao buscar lampejos de suas reminiscências, Pedro Nava não apenas nos mostra suas origens, mas fala sobre a vida das pessoas e da história do País. Em um trecho do livro Beira Mar (quarto volume de suas memórias), o autor descreve o dia em que viu pela primeira vez Rui Barbosa, que ele admirava, na cidade do Rio de Janeiro. Ele estava acompanhado de seu tio Antônio Sales, que tanto lhe ajudou na formação inicial de leitor e sua descrição do episódio mostra a poética e a força da sua escrita magistral. “(…) Falou das sacadas, durante horas, depois de ter sido saudado por uma donzela que por sua vez discursara oitenta minutos bem contados. Escureceu, chuviscou, o sol voltou e ninguém se movia. Não havia microfones nessa época, mas o vozeirão reboava audível, de Mauá ao Monroe. Depois do exórdio em que invectivou o Exército, desafiou a Marinha, aviltou o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Rui começou a vaticinar. Desvendou a Pátria em derrocada. Tudo podre. Corria pus nas veias do país. Só ele, mago, conhecia a salvação. Quando desceu e tornou ao carro aberto foi tal a gritaria de entusiasmo que os prédios estremeceram. O céu desapareceu um instante sob a revoada de chapéus de palha cortando o ar civilista. Rui.”

Para falar de si
O narrador da obra memorialística de Pedro Nava fala em primeira e em terceira pessoa. Trocou alguns nomes de pessoas e procurou também um alterego para falar de si (José Egon Barros da Cunha). Esse recurso recebeu críticas na época, mas, segundo Pedro Nava, foi a maneira que encontrou para falar de episódios íntimos. “Eu acho que estou fazendo uma obra que não se pode situar dentro do memorialismo ortodoxo. (…) Não teria coragem de contar certos fatos meus, da minha boêmia – e de meus amigos, cujo nomes também estão encobertos – dizendo eu. Me sentiria mal. Ao passo que esse José Egon já é fácil perceber: Egon é ego mais o N de Nava: eu, Nava – estou dizendo isso ali”, disse em entrevista concebida a Edmilson Caminha.

O autor não queria apenas fazer uma mera descrição de um fato lembrado (até porque, tudo que é registrado pela memória volta na lembrança com maior subjetividade), mas, como mesmo ele reconhecia, realmente interpretar aquele fato.

Pedro Nava desfrutou em vida de todas as alegrias e honras que alguém pode almejar. Foi um dos mais respeitados reumatologistas do País, sua obra memorialística lhe deu o reconhecimento dos homens de letras que ele tanto respeitava. Nunca quis entrar para a Academia Brasileira de Letras, assim como o seu amigo e poeta Carlos Drummond de Andrade. Poeta bissexto, artista plástico e escritor, Nava era um homem extrovertido e bem-humorado, que gostava de se encontrar com os amigos (ele os via todos os sábados na casa do bibliófilo Plínio Doyle, no Rio de Janeiro. Esses encontros eram denominados Sabadoyle).

O escritor dizia que gostava da vida, apesar de não se considerar uma pessoa feliz. O que levaria um homem como ele a cometer o suicídio, próximo de completar 81 anos de vida? Até hoje, muitos se perguntam o que levou Pedro Nava a tirar a própria vida com um tiro contra a têmpora direita, junto a uma árvore, nas proximidades do edifício onde morava com a mulher, Antonieta, bairro da Glória, no Rio.

O que se sabe do episódio é que Antonieta recebeu um telefonema de um homem que queria falar com Pedro Nava. Ele foi atender e, depois de alguns segundos, desligou o telefone contrariado. Antonieta teria perguntado quem era, mas o escritor esquivou-se, afirmando que se tratava de um trote de mau gosto. Naquela noite (mais de 22 horas), ele iria assistir a uma entrevista de Drummond em um programa na extinta TV Manchete, mas resolveu sair. Antes, pegou a arma que tinha comprado quatro anos antes, um revólver Taurus 32 cano longo. Perambulou pela vizinhança, até se encostar em uma árvore e tirar a própria vida.

Uma das hipóteses levantadas na época era a de que Nava estava sendo chantageado por um garoto de programa e, sem poder revelar para familiares e amigos o que estava acontecendo, resolveu o problema de maneira extrema.

SERVIÇO
Baú de Ossos
, 492 páginas. Balão Cativo, 424 páginas. Companhia das Letras


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