A vida inicial de Heráclito Fontoura Sobral Pinto foi uma linha reta na direção do reacionarismo. Nascido em Barbacena, Minas Gerais, no dia 5 de novembro de 1893, seus encantos infantis iam bem além das brincadeiras no pátio de manobras da Estrada de Ferro Central do Brasil em Porto Novo do Cunha – o local dirigido com grande severidade por seu pai.
Adorava missas, e achou encantadora a educação como interno em um colégio dos jesuítas. Adolescente, foi ser congregado mariano e telegrafista – para pagar pelos estudos de Direito. Ia à missa todo dia, casou com uma conhecida de infância, Maria José Azambuja, e logo tinha família. No Rio de Janeiro, a única variação sobre o tema da formação conservadora eram as partidas em que atuava como brioso lateral direito do América, time do bairro que morava, a Tijuca.
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Nesse passo, anotou em um diário seus sonhos: “Com ajuda de Deus, escrever livros para combater os princípios da Revolução Francesa, que consagrou o individualismo e matou a religião”. Formado advogado, combateu liberais e positivistas ateus com armas mais fortes que livros. Em 1924, foi nomeado Procurador Criminal Interino pelo presidente Artur Bernardes. No cargo, tinha ligação direta com alcaguetes das seções de Ordem Social e Segurança Pública do governo. Aproveitava o que estes juntavam por meios obscuros para abrir processos por conspiração ou sedição.
Não economizou na obra. Processou os tenentes que se revoltaram no Forte de Copacabana, os militares que se levantaram em 1924, os membros da Coluna Prestes, comunistas e socialistas que promoviam greves e defendiam operários. Argumentava invariavelmente em defesa da ordem, com pleno apoio dos presidentes Artur Bernardes e Washington Luís.
Com esse currículo na bagagem, não é de se estranhar a reação da imprensa quando este último tornou pública sua decisão de efetivar Sobral Pinto no cargo. Choveram editoriais com acusações de severidade excessiva do escolhido. Mas ele tinha admiradores, que resolveram responder ao modo da época, organizando um grande banquete de homenagem para 300 talheres.
Convites distribuídos, três dias antes do evento, na noite de sábado, 22 de setembro de 1928, o procurador fez sua habitual visita à Livraria Católica. Ia saindo quando foi interpelado na porta por Paulo Gomide. De chapéu, terno, gravata, um chicote numa mão e uma carta na outra, ele avançou gritando: “Reconhece essa carta, cachorro!”.
Sobral Pinto nem teve tempo de dizer que era uma das muitas cartas trocadas entre ele e a senhora Gomide, sua amante; pôde apenas erguer a bengala para se defender da primeira chicotada. Os dois se atracaram e rolaram pelo chão. Enquanto trocavam socos, o procurador foi percebendo outra arma, mais letal, apontada para ele: os fotógrafos que registravam tudo. No outro dia, as fotos saíram ao lado de manchetes sensacionais: “Pode o Dom Juan que traiu seu amigo aparecer como Procurador diante de um juiz?”.
Ele mesmo respondeu. Foi se confessar com o bispo, pediu perdão à mulher, abandonou a amante. Tomou uma decisão vital: não tinha mais moral para acusar ninguém, mas teria humildade de sobra para entender o maior dos pecadores. Arranjou uma salinha emprestada, montou um escritório de advocacia – sempre de portas abertas para os necessitados de justiça.
Continuou tão reacionário como antes, recusando-se a aceitar a separação entre Estado e Igreja, militando pelo direito de religiosos em controlar as vontades alheias pelo governo – enfim, a cesta básica de qualquer fundamentalista. Mas agora havia um detalhe fundamental: Sobral Pinto se tornara um apóstolo da tolerância. Escrevia o tempo todo para autoridades. Seu tema obsessivo passou a ser a luta contra o abuso de poder do Estado e a defesa da liberdade do cidadão.
Com a Revolução de 1930, o número de interlocutores se multiplicou rapidamente. Todos aqueles que ele processara por sedição chegaram ao poder no bojo de uma revolução – e trataram de perseguir adversários empregando os poderes armados, sem dar a menor bola para firulas legais como processos.
Com isso, além dos interlocutores, multiplicaram-se os clientes necessitados de defesa. Primeiro, os decaídos do regime deposto. Logo em seguida, os aliados insatisfeitos, como os paulistas que se revoltaram em 1932. Só eles bastaram para completar a lotação da prisão providenciada pelo governo laico e positivista: a transformação da igreja do presídio da rua Frei Caneca na chamada Sala da Capela, onde todos eram amontoados e onde o apóstolo os ouvia.
Quando uma leva saía, entrava outra. No final de 1935, vieram os comunistas, depois do levante de novembro. Foi nesse momento que Sobral Pinto se tornou defensor tanto de Harry Berger como de Luís Carlos Prestes, Graciliano Ramos e Mário Pedrosa.
A convivência com os comunistas tocou a alma do advogado. Não se encantou minimamente com o materialismo, mas aprendeu com eles que havia algo mais que Ordem a considerar. E assim percebeu que seus amigos de sempre não estavam trilhando o bom caminho. A grande maioria dos católicos tradicionalistas estava se bandeando para o Integralismo e para o apoio a uma ditadura a ser comandada por Getúlio Vargas.
A partir de 1937, boa parte das cartas de Sobral Pinto passou a trazer alertas para seus aliados. Os alvos preferidos foram Francisco Campos e Lourival Fontes. Nas cartas, o tratamento mais benévolo que Getúlio Vargas recebia era o de “corruptor de almas”. Impávidos, os destinatários aderiram com mais que o corpo ao golpe de 1937, tornando-se autoridades e ideólogos do regime.
A fúria epistolar de Sobral Pinto não perdoou nem o chefe espiritual a quem jurava obedecer, o cardeal Sebastião Leme. Escreveu-lhe dizendo que o ditador era ateu, mentiroso e corrompia manipulando aparências de homenagens. Impávido, o destinatário da carta aceitou inaugurar o Estado Novo com uma missa para o ditador ateu, na qual foram ainda queimadas as bandeiras dos Estados – sagrou a ditadura em uma aparência de homenagem católica.
Então, Sobral Pinto mostrou que aprendera algo importante com seus clientes. Passou a escrever, lembrando que a adesão ao Estado Novo era uma capitulação dos católicos, que provocaria um “malefício irremediável no coração do homem do povo”; que a ignorância do sofrimento desse homem comum se constituiria em “vergonha permanente dos católicos frente às novas gerações”. Só não precisou ir muito adiante nas críticas porque, já em 1938, magotes de integralistas foram atirados na Sala da Capela para ocupar o lugar dos comunistas soltos – e Sobral os defendeu.
As desilusões e as cartas não eram aplicadas apenas a aliados. Em 1942, com a declaração de guerra contra o Eixo, o prisioneiro Luís Carlos Prestes aderiu à ditadura de seu algoz Getúlio Vargas. Recebeu uma carta do advogado: “Vivemos juntos e solidários oito longos anos de sofrimentos, inquietações e incertezas permanentes, animados sempre pela perspectiva de vitória final contra a prepotência sombria e brutal da ditadura do senhor Getúlio Vargas, que oprimia, com desrespeito a vossas prerrogativas de homem, a dignidade do próprio cidadão brasileiro. (…) A união nacional que o senhor propõe nos faria cerrar fileiras com um ditador de mandato duas vezes usurpado, que não tolera qualquer restrição a seu arbítrio. Não sei o que o destino nos reserva, mas o senhor e eu já não nos pertencemos totalmente”. Depois de escrever, continuou defendendo seu cliente como sempre.
E assim foi na vida. Na volta da democracia, passou a ter como clientes preferenciais as pessoas humildes que lutavam com poderosos. Ganhava processo atrás de processo, o que atraía clientes mais endinheirados. Exigentes, esses apresentavam seus problemas, os argumentos que lhes convinham e um cheque. Invariavelmente, o advogado começava a interrogar sobre a justiça da causa. Um deles reclamou, dizendo que estava pagando advogado, não juiz. Recebeu uma carta, justificando a recusa da causa com os seguintes termos: “O mais fundamental dever do advogado é ver se ela é defensável frente os preceitos da Justiça”.
Fiel ao princípio, aplicava-o até mesmo a pessoas que não gostava. Em janeiro de 1955, Sobral Pinto montou a Frente da Defesa da Legalidade, para defender o preceito de que era justo o direito de Juscelino Kubitschek de disputar a presidência da República. Enfrentou militares amigos, ganhou processos – e votou em branco.
Sem nunca ter conhecido pessoalmente o defensor, o presidente eleito resolveu afagá-lo com uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal. Escreveu uma carta de convite, mandou preparar um avião da FAB, chamou José Carlos Lima e pediu que este a levasse pessoalmente ao destinatário, então convalescendo de uma operação numa fazenda em Barretos. O emissário entregou o envelope, aberto na sua frente. Viu lágrimas correrem, e se lembra das palavras que ouviu: “É uma provação de Deus, e espero ter forças para resistir. Sempre foi meu sonho de advogado e professor de Direito chegar ao Supremo. Mas não posso aceitar algo que vai parecer troca de favor. E não houve favor, mas apenas a defesa de um direito”. Dito isso, Sobral pediu um papel de carta para a anfitriã. Recebeu um cor-de-rosa, e nele escreveu sua recusa – uma das únicas cartas que não guardou cópia.
Defenderia JK depois do golpe de 1964 – e a muitos presos políticos. Continuou escrevendo cartas, com a coragem de sempre. No dia 21 de dezembro de 1968, mandou uma para o general Costa e Silva, que começava assim: “Li em Goiânia o Ato Institucional número cinco, que V. Exa, substituindo-se ao povo brasileiro que não lhe concedeu poder constituinte, baixou para tornar possível a subtração da liberdade a toda e qualquer pessoa que resida no território nacional. Através do referido ato, V. Exa instituiu em nossa pátria a ditadura militar”.
E continuava: “Na qualidade de presidente da República V. Exa, baixando o ato institucional número cinco, falhou inteiramente à sua missão e traiu de maneira indiscutível a finalidade governante do país”.
Depois disso, narrou seu caso pessoal: “Sou uma das vítimas do ato. A Polícia Federal de Goiás, invocando o nome de V. Exa, deu-me ordem de prisão. Não acatei a ordem, declarando que nem V. Exa nem nenhuma pessoa neste país é dona de minha liberdade. Nada fizera para esta perder. Mas pronunciei estas palavras e quatro homens, de compleição gigantesca, lançaram-se sobre mim, como vespas numa carniça, imobilizando-me os braços e apertando-me o ventre pelas costas. Em seguida, empurraram-me como um autômato, colocando-me num carro em mangas de camisa”.
Saiu da cadeia, escreveu a carta e voltou para o escritório. Defendeu presos políticos e causas populares até o fim da ditadura. E continuou até o dia 30 de novembro de 1991, quando morreu aos 98 anos. Não recebia aposentaria, porque julgava imoral a cessão do benefício para alguém capaz de trabalhar.
*Jorge Caldeira é doutor em Ciências Políticas, mestre em Sociologia e bacharel em Ciências Sociais. É escritor e sócio-fundador da Mameluco Produções Artísticas. Mas se perguntar, ele diz que é jornalista da antiga.
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