Na divisa de Mato Grosso com Rondônia, em uma região arenosa, de fauna e flora pouco exuberantes, vivem os remanescentes da grande nação Nambiquara. São os indígenas da tribo que reagiu a flechadas contra a primeira tentativa de pacificação, feita pelo oficial do exército Cândido Mariano da Silva Rondon, há 100 anos. Três décadas depois, a mesma tribo recebeu o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss.
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Eles não apresentam perigo no posto, mas nas estradas a vida dos viajantes está sob constante ameaça”. Essas imagens contrastavam com aquelas oferecidas por Rondon, quando se deparou com os nambiquaras, em fevereiro de 1914: “Povo de natureza bem mais doce, amável e sociável que a maior parte dos povos de grau de civilização comparável”. É provável que a mudança em sua reputação deva-se ao episódio descrito pelo repórter Fernando Granato, sobre o malentendido a respeito do envenenamento com aspirina, que resultou no massacre aos missionários. O “mundo perdido” dos nambiquaras que Lévi-Strauss encontra é de uma ternura comovente. Eles viviam em abrigos improvisados feitos de folhas – isso durante o período da vida nômade – e dormiam deitados em esteiras de palha, ao lado de fogueiras para se aquecer. O costume de
rolar no chão deixava seus corpos – completamente nus – cobertos de pó e areia. Homens, mulheres e crianças trocavam carinhos e abraços, que não raro estendiam aos animais. Era um grupo pequeno. A população estimada em mil pessoas na época de Rondon viu-se reduzida radicalmente após uma série de epidemias. Em 1929, uma gripe matara 300 pessoas em 24 horas, fazendo com que o grupo se dispersasse, abandonando mortos e doentes. Em 1938, havia apenas 19 sobreviventes. Lévi-Strauss retoma várias vezes ao longo de sua vida esse

encontro com os nambiquaras, que lhe rendeu uma tese complementar (A Vida Familiar e Social dos Índios Nambikwara), apresentada na Sorbonne em 1948, junto à sua tese de doutorado principal, As Estruturas Elementares do Parentesco. Em 1953, quando redigia Tristes Trópicos, deparou-se com o artigo de um antropólogo que havia passado por Utiariti dez anos depois dele e descrevia os nambiquaras como miseráveis, arrasados por doenças de pele e venéreas, tomados por um “sentimento de ódio”. Lévi-Strauss comentou com amargor: “Para mim, que os conheci numa época em que as doenças introduzidas pelo branco já os havia dizimado, mas nada havia sido feito para sujeitá-los, seria preferível
esquecer essa descrição deplorável e conservar apenas a imagem retomada de meus cadernos de notas”. Esse mesmo sentimento se revela, décadas depois, em 1985, quando volta ao Brasil por uma única vez acompanhando o presidente François Mitterrand em sua viagem ao país: “Eu sabia que tudo lá mudava com tal velocidade, que se eu voltasse seria
só para lamentar meu passado. Foi, aliás, o que aconteceu quando revi o Brasil depois de quase meio século”. Não é de um mundo “primitivo”, “intocado”, uma “infância
da humanidade” que Lévi- Strauss tem saudade, quando dá título a seus livros de fotos sobre o Brasil:
Saudades do Brasil, de 1994,
e Saudades de São Paulo, de 1996.
As imagens produzidas nas viagens
ao interior do Brasil, entre 1934 e
1939, e na vida cotidiana da capital
paulista têm o poder de atualizar
uma experiência passada – eis
o sentido da saudade. Lévi-Strauss
tem o cuidado de advertir o leitor
desavisado que a arqueologia e
a historiografia apontam para um
mundo de sociedades indígenas
de grande escala na
época do “descobrimento”.
Mais do que um estado primitivo,
portanto, os povos
ameríndios seriam remanescentes
de um estado de civilização
que teria se dissolvido com a chegada dos europeus.
Lévi-Strauss nos ensina a ver na precariedade da sociedade Nambiquara – ou Nambikwara, na sua grafia – uma reação ao cataclismo sociológico que foi o encontro com o branco; uma decisão, consciente ou inconsciente, de uma sociedade de se ver “reduzida à sua mais simples expressão”. Saudade, talvez, de se relacionar afetivamente com esses que são, apenas, homens. Finalmente, em 2005, ele falou novamente dos nambiquaras ao jornal Le Figaro, quando relembrou que, ao deixar os índios, estava convencido de que, em vinte anos, eles não existiriam mais. “Felizmente eu estava errado. Eles ainda estão lá. É de se esperar que continuem, e que o governo brasileiro os proteja um pouco melhor do que o tem feito até aqui.”

Obras consultadas: Claude Lévi-Strauss Tristes Trópicos. Paris: Gallimard, Pléiade, (1955) 2008, edição estabelecida e anotada por Vincent Debaene.
De Perto e de Longe (entrevistas a Didier Eribon), trad. Lea Mello. São Paulo: Cosac Naify Saudades do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

*Florencia Ferrari é antropóloga e editora da série de
antropologia da Cosac Naify.


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