Sobre memes e votos

Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash
Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash

Num ginásio colegial em Massachusetts, Estados Unidos, um homem se dirigia ao público que lotava o lugar. Tomado pelo calor de sua própria fala e pela vibração dos que o escutavam, lançou o paletó à plateia. Na volta, entre gritos vindos de todo lado, pontuou sorridente e confiante: “Está ficando quente aqui”. Ajeitou a gravata e falou mais uma vez: “Estamos nos esquentando aqui!”, aumentando o entusiasmo generalizado. A cena, comum a espetáculos musicais, foi protagonizada por um senhor de 74 anos em um comício eleitoral em abril deste ano. Ali, a trajetória de Bernie Sanders, então pré-candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, chegava ao cume de um momentum.

Impulsionado por um raro fenômeno espontâneo, articulado principalmente na internet, o senador do estado de Vermont se valia do capital político adquirido nos últimos meses para consolidar a exequibilidade de sua campanha, algo inimaginável até pouco antes. Judeu e socialista autodeclarado, Sanders defende com firmeza pautas progressistas e pouco habituais ao eleitorado norte-americano. Agravante ainda maior: não contava com grandes apoios e financiamentos. Ou seja, além de não ser cristão, algo inédito a qualquer presidente da história dos Estados Unidos, se opôs a importantes pilares do imaginário social do país e aos interesses de influentes agentes econômicos e midiáticos.

O dia seguinte ao episódio do paletó seria o Super Tuesday, momento de substancial importância na corrida presidencial, uma vez que define o candidato democrata em 11 dos 50 estados da federação. Na contramão de todas as análises e prospecções, Sanders sustentava uma acirrada disputa com Hillary Clinton, ex-secretária de Estado e herdeira do legado do marido, que concorria içada por uma campanha opulenta. Após a inesperada derrota para Barack Obama nas primárias de 2012, este ano todos davam como certa a nomeação daquela que pode ser a primeira mulher a comandar os EUA. Sanders a ameaçou e marcou etapa na campanha. Na Convenção Nacional Democrata, ocorrida no final de julho, a grande estrela foi ele, mesmo tendo abandonado a disputa e declarado apoio à colega de partido dias antes.

Para entender os eventos que permitiram o surgimento desse cenário inesperado, podemos nos inclinar sobre um grupo informal do Facebook. Denominado “Bernie Sanders’ Dank Meme Stash” (em tradução livre: Estoque de Memes Fodas do Bernie Sanders), a agremiação que reuniu o espantoso número de quase meio milhão de usuários engajou-se em criar e disseminar conteúdos de toda sorte em favor do candidato. A imagem do velhinho simpático, inteligente e aguerrido se cruzava com inúmeras referências de cultura pop, filmes, quadrinhos, videogames, etc., espalhando por todo lado sua figura, tornando conhecida sua agenda e despertando um sentimento comum de curiosidade e simpatia. Logo surgiram mais grupos, páginas e grandes correntes em outras plataformas. A cada rajada de memes em resposta aos eventos ocorridos, tornava-se mais clara a transformação operada por esse movimento e a força dos efeitos que é capaz de produzir.

Proposto pela primeira vez por Richard Dawkins em seu seminal livro O Gene Egoísta, o termo meme pode ser visto como o análogo cultural ao gene da biologia: um fragmento de informação replicável e transmissível. A diferença entre os termos está em sua natureza e dinâmica de transmissão. Enquanto o gene é transmitido por reprodução biológica, o meme o é por reprodução social, ou comportamental. No contexto digital, o meme ganhou forma definida: composição entre imagens, vídeos, gifs e textos que sintetizam símbolos e signos, permitem imediata compreensão e ventilam novos significados – tudo conduzido por um afiado humor.

Em razão de sua facilidade de produção e transmissão, os memes carregam um potencial de viralização imediato e ilimitado. A densidade de informação dessas peças, muito maior do que a de textos jornalísticos, faz com que estejam bem adaptadas ao ambiente online. O meme da cultura digital é uma forma de comunicação que nasce do tempo da internet, em que textos de fôlego se perdem em meio ao vertiginoso atualizar das timelines e às tantas abas abertas no navegador. Sendo assim, o meme é produzido para ganhar sentido em um contexto de compartilhamento e interação, valores intrínsecos às novas mídias. Não por acaso, estimula um novo grupo a tomar parte no debate político: jovens que passam muitas horas por dia nas redes sociais. Até mesmo os fundadores do “Bernie Sanders’ Dank Meme Stash” já declararam que nunca se interessaram muito por política, passando longe do perfil de militante. A ideia do grupo, segundo eles, surgiu da criação, no tempo livre, de conteúdo humorístico que mais tarde adquiriu conotação política, para quem sabe provocar alguém a pesquisar mais sobre o assunto.

É possível que algumas características do meme como conhecemos hoje tenham surgido em meados da virada dos anos 2000, quando proliferaram os primeiros websites e canais de conversa, e surgia a ideia de manifestações capazes de operar por uma propagação viral. Podemos inclusive observar alguns de seus atributos em campanhas eleitorais passadas, como a que elegeu Obama em 2008 – impulsionada pela viralização espirituosa de imagens estilizadas e frases de impacto produzidas por sua equipe. Entretanto, o ano de 2016 marca um ponto crucial na consolidação de uma nova linguagem e de sua ação na comunicação política.

A partir de discursos diretos, extremamente humorados, que combinam múltiplas referências e citações, o conteúdo que passou a circular em torno da figura dos pré-candidatos à presidência norte-americana caracteriza-se pela espontaneidade de uma criação independente, coletiva, descentralizada e engajada com inventivos artifícios linguísticos. Não comungam, portanto, da mesma verve das surradas estratégias publicitárias, produzidas verticalmente, de forma planejada, e que não raro transparecem sua artificialidade. Sem qualquer noção de autoria, trata-se de experimentações de todo tipo, em que qualquer assunto pode ser abordado e explorado sem limites; e qualquer abordagem pode ser reproduzida e transformada indefinidamente. O resultado são conceitos simples e perspicazes formalizados em composições visuais impactantes, e lançados sempre sob o risco de alterações e difusões incontroláveis. No lugar do slogan, a hashtag.

Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash
Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash

Naturalmente, surgem críticas a respeito da qualidade de um debate mediado por essa via e das implicações de substituir análises profundas por memes feitos pelas mãos de qualquer um. Entretanto, trata-se apenas de mais um meio, que não exclui o papel de analistas profissionais, e tão somente cria outra camada informacional ao incluir novas e diversas formas e visões. É importante atentar ainda para os ganchos possíveis realizados por meio dessas peças. Os memes podem sugerir pesquisas mais complexas e criam terreno para a troca de links de diversos veículos. Nos grupos do Facebook, por exemplo, entre imagens do pré-candidato democrata representando super-heróis, vestido de rapper ou montado em unicórnio, também surgem apontamentos para artigos de grandes portais, e mesmo discussões acaloradas sobre pautas específicas.
Seja como for, os memes parecem intervir efetivamente na corrida presidencial. O que foi observado durante as primárias foram resultados que fugiram muito aos padrões. O site de análises políticas FiveThirtyEight, que obteve notoriedade ao acertar todas as previsões nas eleições de 2012, afirma que Bernie protagonizou alguns dos maiores desencontros entre as pesquisas e o que se deu de fato em toda a história. As expectativas para a primária de Michigan, por exemplo, indicavam larga vantagem de Hillary – entre 10 e 30 pontos percentuais – até o resultado final surpreender a todos: o candidato socialista saiu vitorioso com 2% de vantagem. Nate Silver, editor chefe do FiveThirtyEight, escreveu um artigo naquela noite explicando que as pesquisas de intenção de votos falharam ao não levar em conta o grande número de jovens eleitores que votariam pela primeira vez e que, em sua maioria, iriam às urnas em apoio ao simpático velhinho. Com o avanço das eleições e o crescimento exponencial da produção desse tipo de conteúdo, Bernie angariou espaço e confiança do eleitorado numa campanha meteórica. Se partiu de tacanhos 3% de intenção de votos em janeiro de 2015, ao final chegou a 43%. Hillary, por outro lado, partiu de aproximadamente 70% nas primeiras pesquisas e caiu de maneira constante até atingir 55%. Ainda que Bernie tenha perdido a nomeação, suas propostas e memes deixaram uma marca definitiva no jogo político global.

A agitação em torno da imagem do pré-candidato democrata serviu, também, para a captação de recursos. Sanders foi o segundo candidato a arrecadar mais dinheiro durante a campanha (US$ 230 milhões) e o primeiro quando se considera apenas doações individuais de pequeno porte. O senador de Vermont evitou os chamados Super PACs – grupos de doações ilimitadas geralmente capitaneados por grandes corporações –, de maneira que 88% de todos os recursos arrecadados em sua campanha provieram de doações menores que US$ 200. Esse apoio financeiro parece vir de pessoas comuns, comovidas por seu acachapante momento político, e bastante conectadas à internet.

Talvez o meme não seja um dispositivo capaz de definir sozinho um voto, mas, com certeza, é capaz de chamar a atenção para certas questões, pautar debates e a moldar a imagem pública dos candidatos. Campanhas inteiras podem ser infladas ou inviabilizadas no tramado dessas dinâmicas. O caso de Jeb Bush também é emblemático, mas pela via oposta. O mais forte pré-candidato republicano, herdeiro da família de maior peso e história política dos Estados Unidos, e amparado por uma estrutura colossal, não passou da terceira das 56 primárias. Antes de sua saída voluntária e prematura, Jeb havia sido retratado, de inúmeras maneiras, como alguém bobo, desanimado e confuso. À medida que o interesse em suas ideias diminuía, crescia a relevância de suas gafes e histórias pitorescas. Com tantos vídeos e imagens dando conta de sua incapacidade e eterno envolvimento com casos constrangedores, parecia impossível que ele pudesse prosseguir com qualquer sucesso. O resultado foi um candidato cada vez mais acuado em aparições públicas, de maneira que suas fragilidades cresceram na mão dos oponentes – o maior deles, notoriamente, Donald Trump. De igual maneira, corroborando a ascensão do senador de Vermont, Hillary tem fracassado em se desvencilhar da imagem de mentirosa e indecisa – explorada à exaustão na internet.

Em síntese, o que se presenciou até agora foram os vetores vindos dessa comunicação espontânea interferindo com furor nos mecanismos que norteiam o jogo político. Consequentemente, surgem apertos e licenças ainda difíceis de definir, mas que já exigem novas posturas de quem participa. Na pressão de um panorama muito mais aberto e imediato, atento a tudo e a todos, qualquer pequeno gesto pode ser alçado a um elemento de enormes proporções, causando impactos incalculáveis. Sendo assim, torna-se muito mais difícil medir ou prospectar relevâncias, falsear discursos ou controlar ações de massa. Acima de tudo, abre-se uma perspectiva inédita, em que barreiras burocráticas e financeiras, que até bem pouco tempo atrás ditavam sem concorrência todos os aspectos das corridas políticas, podem, enfim, ser superadas.
O momento parece ser mesmo das coalizações voluntárias e informais. Das pautas que representam interesses genuínos. Dos super-heróis e unicórnios. Do diálogo horizontal. Das possibilidades. Do paletó voando efusivamente em direção a um público eufórico por mudanças.

Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash
Meme publicado na página de Facebook Bernie Sanders Dank Meme Stash


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.