Sobre meninos e lobos

A água era pouca e a comida escassa: alimentavam-se de bolachas. Depois de viajarem nove horas na carreta de um caminhão, desde a Cidade do México, de onde saíram no início de junho, estavam há quatro dias no deserto mexicano. Enfrentavam temperaturas que oscilavam entre 10 °C e 40 °C, nos períodos noturno e diurno. Durante os escaldantes dias, permaneciam escondidos na mata, para não chamar a atenção da polícia. Nas noites, andavam até 15 km de uma só vez. Quando já estavam bem próximos da divisa com os Estados Unidos, receberam a informação de um dos “coiotes”, os agentes contratados para facilitar a travessia ilegal, de que teriam de caminhar embaixo de um sol inclemente na última etapa, já que era impossível reconhecer as trilhas daquele trecho durante a noite.

Após cinco horas de caminhada, no dia 8 de junho, Diego Armando Guimarães, 24 anos, natural da cidade de Conselheiro Pena, Minas Gerais, sentiu que suas forças estavam se esvaindo. Um pouco acima do seu peso habitual – 80 kg, quando se pesou pela última vez – e com uma insuportável dor nas costas, resultado de uma queda de moto dias antes de embarcar para o México, ele tinha dificuldade de respirar.

Diego avisou ao amigo Cláudio Afonso Pereira, 22 anos, da mesma cidade mineira, que o acompanhava na aventura, que não iria aguentar e que era
melhor o companheiro deixá-lo e seguir viagem junto com os coiotes e os outros 24 estrangeiros do grupo que pretendiam entrar ilegalmente nos Estados Unidos. Tinha medo de que todos fossem pegos.
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O grupo de estrangeiros, a maioria mexicano, seguiu viagem com um dos coiotes. Inconformado, Cláudio Afonso sentou-se em um canto da estrada arenosa e com pequenos arbustos e colocou o companheiro sobre seu colo. Viu que ele estava ofegante, com os batimentos cardíacos fracos. Tentou reanimá-lo com respiração boca a boca. Jogou o restante da água mineral que trazia sobre o companheiro.

“Esse já morreu e, pelo visto, você também vai morrer de sede porque está desperdiçando toda sua água”, advertiu o coiote que ficou para trás com os brasileiros, com a frieza de quem está acostumado a encontrar ossadas humanas naquele trajeto inóspito.

A agonia de Diego durou menos de 10 minutos. Desidratado, ele já havia dado mostras de que não aguentaria. Perdeu o raciocínio e falava frases sem nexo. No colo de Cláudio Afonso, foi se debatendo até travar a boca e impedir qualquer tentativa do amigo em hidratá-lo com o que restava da água mineral.

Pressionado pelo coiote, Cláudio Afonso enterrou rapidamente o companheiro com as próprias mãos, fazendo uma cova rasa no solo arenoso. Deixou sobre o peito do amigo morto seus documentos, na ilusão de que as autoridades o descobrissem e pudessem avisar a embaixada brasileira. Quando estava indo embora, olhou para trás e viu que os pés haviam ficado para fora da cova. Não era possível voltar e refazer o trabalho. Sabia que os bichos selvagens que habitam aquele deserto se alimentariam do corpo do conterrâneo. Ali é o paraíso dos coiotes, um animal carnívoro da espécie dos canídeos, vermelho-amarelado, chega a pesar 18 kg e é conhecido por sua astúcia. Nas lendas e no folclore da América do Norte, o
coiote é o maior dos trapaceiros, daí o apelido que se dá aos traficantes de seres humanos também comuns naquele deserto.

O relato acima, com a versão de Cláudio Afonso para a morte de Diego, foi dado à polícia do Texas, nos Estados Unidos, no dia seguinte ao desfecho trágico que vitimou seu parceiro. Ele acabara de entrar em território americano pela cidade fronteiriça de McAllen, às margens do Rio Grande. Do outro lado do rio fica o município mexicano de Reynosa, no violento Estado de Tamaulipas. O jovem acabou flagrado na casa de um intermediário que vinha sendo investigado pelas autoridades de imigração. Contou que depois da morte do colega ainda caminhou a noite inteira, até cruzar a fronteira por volta das 5h30 da manhã.

Cláudio Afonso estava agitado, cansado e falava sem parar. Foi levado pelas autoridades para a carceragem na cidade de Houston e de lá pode ligar para o Brasil e dar a notícia do que havia acontecido. Falou por alguns minutos com a mãe, Laudiceia Oliveira, uma ex-emigrante que fez, no final dos anos 1990, o mesmo percurso agora traçado pelo filho único. O que lhe permitiu uma vida diferenciada na pequena Ferruginha, Distrito de Conselheiro Pena, onde possui duas casinhas de aluguel e uma lanchonete como o singelo nome Sonho Meu.

Laudiceia, ao saber do ocorrido, tratou de avisar a mãe de Diego, Maria de Araújo Guimarães, que mora na Zona Rural. A vila de Ferruginha não dormiu naquela noite. Todos velaram o jovem Diego Armando Guimarães, mesmo com o corpo dele a milhares de quilômetros dali.

A aventura de Diego e Cláudio Afonso vai na contramão de uma tendência daquelas cidades que formam a região de Governador Valadares, no leste de Minas Gerais. Depois da crise econômica que abateu os Estados Unidos a partir de 2008, é consenso naquele lugar que arriscar a vida para atravessar a fronteira já não vale mais a pena.

Mas ainda há quem acredite no sonho americano e prefira correr o risco. Segundo a delegacia da Polícia Federal na cidade de Governador Valadares, são emitidos ali cerca de 12 mil passaportes todos os meses. Mesmo com o declínio americano, aquela ainda é a unidade com o maior número de pedidos em Minas Gerais, perdendo apenas para a superintendência em Belo Horizonte.

As pessoas que solicitam o passaporte têm um perfil comum: são trabalhadores simples, muitos da Zona Rural. Jovens como Diego e Cláudio Afonso, que não têm outra alternativa a não ser o trabalho em uma agropecuária com contornos arcaicos, onde o carro de boi ainda é uma realidade. Ali, a prática do manejo com o gado é passada de pai para filho e é comum ver crianças ainda muito novas ordenhando vacas, separando bois no curral, colhendo frutas e verduras no pomar, tudo sem nenhuma mecanização.

Ferruginha é um distrito ligado à sede do município, Conselheiro Pena, por uma estradinha de terra de 12 km. É formado por uma praça com a igreja, a lanchonete Sonho Meu, da mãe de Cláudio Afonso, uma farmácia e uma loja de produtos para a agropecuária, como selas e ferramentas artesanais.

Todos se conhecem e costumam passar as noites conversando nas calçadas, onde espalham cadeiras e ficam até tarde aos finais de semana, “vendo a vida passar”, como dizem. Não há escola nem posto de saúde. Tudo é feito na cidade vizinha. Ali, parece que o tempo parou.

Conselheiro Pena, com seus 22.242 habitantes, também não é nenhum exemplo de progresso. A cidade sofre, como em toda região, um processo de esvaziamento populacional, em função da falta de alternativas profissionais, principalmente para as novas gerações. Na contagem de 1991 do IBGE, havia 30.569 moradores e esse contingente foi caindo gradativamente, no sentido inverso de uma tendência estadual e nacional de crescimento. O município, com a subsistência voltada para a agropecuária, gasta mais do que arrecada. Por isso, sofre com a falta de infraestrutura necessária para manter a sua população. Em uma escala que vai de 0 a 1 e mede o Índice de Desenvolvimento Humano, avaliando itens como renda, longevidade e educação, a cidade registra 0,734, enquanto em Minas Gerais a média é de 0,773 e no Brasil 0,766.

Inicialmente, a região onde se localiza o município foi habitada pelos índios Botocudos Aimorés. Depois, motivadas pelo garimpo de pedras preciosas, fartas no local, e pela qualidade das terras férteis e baratas, várias pessoas fixaram-se no lugar, começando a formação do povoado. Em 1910, com a chegada da Estrada de Ferro Vitória a Minas, a cidade ganhou um sopro de vitalidade, que não durou muitos anos.

A partir de 1947, fatores climáticos e econômicos levaram, gradativamente, a população ao abandono quase total da agricultura. Foi a vez da pecuária leiteira e de corte, que constitui hoje a principal fonte de arrecadação municipal. Trabalho que não empolga os mais novos e faz com que em toda casa da cidade exista pelo menos um integrante que esteve ou está tentando a vida nos Estados Unidos.

Diego e Cláudio Afonso já haviam arriscado a sorte na América em outra ocasião. Diego perdeu o pai aos dois anos e foi criado pela mãe, com outros quatro irmãos. Ela ganhava a vida colhendo café em propriedades da região. Deixava muitas vezes de comer para levar o alimento para os filhos pequenos, que a esperavam em casa. Por isso, Diego tinha o desejo de subir na vida e um dia ajudar sua mãe a comprar uma casinha própria.

Isso o motivou a viajar para os Estados Unidos, onde trabalhou ilegalmente por seis meses como jardineiro, na cidade de Boston, até ser descoberto e deportado no meio do ano passado. Com os dólares que havia mandado para o Brasil antes de ser pego, comprou uma moto e deu entrada em um apartamento em obras na vizinha Ipatinga, que jamais verá pronto.

“Ele dizia que não aguentava me ver morando na roça e que ia conseguir uma casinha pra mim na cidade”, conta sua mãe, Maria. “Falava que estava com uma cabeça melhor, que dessa vez seria diferente, economizaria centavo por centavo e que não ficaria no bolso nem com cinco dólares que ganhasse, mandaria tudo para o Brasil.”

Cláudio Afonso também viveu nos Estados Unidos, antes de completar 18 anos. Morou com uma prima, até ser descoberto e detido em uma instituição para menores infratores. Retornando ao Brasil, tornou-se pai precocemente e resolveu voltar à América para tentar ganhar o sustento de sua filha. “Ali não tinha futuro”, costumava dizer.

Os dois passaram meses programando a viagem, sentados na calçada, bem na frente da lanchonete Sonho Meu. “Davam muita risada, faziam planos, diziam: ‘Estados Unidos, é nóis!”, conta Laudiceia. A vila toda acompanhou os preparativos e houve até festa de despedida antes de partirem.

Depois da saga que enfrentou com o amigo – “Que serviu para que ele amadurecesse em quatro dias mais do que tudo que viveu em 22 anos”, segundo sua mãe -, Cláudio Afonso passou 33 dias preso em Houston. Refez com a polícia três vezes parte do trajeto percorrido no deserto, na tentativa, em vão, de achar qualquer sinal do corpo de Diego. Acabou liberado em meados de julho, sob o compromisso de ajudar nas investigações. A polícia americana quer saber das circunstâncias da morte do colega e apurar as responsabilidades dos chamados traficantes de estrangeiros.

Cláudio Afonso ganhou a permissão provisória para trabalhar. Cumpre jornada em uma empresa de pintura de residências e tenta reorganizar sua vida. Está sendo monitorado pela polícia americana e tem a obrigação de comparecer a entrevistas periódicas com agentes e psicólogos. Pelo telefone, disse à Brasileiros que se soubesse o que o esperava teria desistido do sonho de conquistar a América. “Mas agora, que já passei por tudo aquilo, quero ver se consigo conquistar alguma coisa boa pra minha vida”, afirmou. “Lá no Brasil é muito difícil a gente fazer qualquer patrimônio.”

Sem a possibilidade de ver o filho ganhar uma segunda chance, como Cláudio Afonso, a mãe de Diego passa os dias olhando fotografias antigas. Carrega ainda uma dívida que fez junto à Caixa Econômica Federal, de R$ 2.500, dinheiro emprestado para ajudar seu caçula nessa viagem. Sempre foi contra a ideia da volta para os Estados Unidos, por acreditar que ali em Ferruginha, mesmo ganhando pouco, ele estaria mais seguro.

Convertido pela igreja evangélica Assembleia de Deus, ainda nos Estados Unidos, Diego dizia para a mãe que a viagem seria uma missão a ser cumprida e que se ela gostasse dele deveria apoiar. Sendo assim, Maria topou ajudar: era o sonho do seu menino. Fez força para não chorar na despedida, angustiada com um mau pressentimento. Agora, sentada no alpendre da casinha em que vive na roça, sabe que estava certa: “Quando as crianças são pequenas é tão bom. Depois que crescem, vão embora e a gente não sabe se vão voltar”.

O FENÔMENO GOVERNADOR VALADARES

A região de Governador Valadares, no leste mineiro, ganhou fama nacional e internacional de maior exportadora brasileira de mão de obra ilegal para os Estados Unidos. Tanto assim que, nos consulados americanos espalhados pelo Brasil, já virou rotina: basta ver a origem do pretendente, se for daquela cidade mineira, o visto é negado.

O fenômeno não aconteceu por acaso: o PIB per capita, a renda média e os índices demográficos sociais situam essa porção de Minas Gerais como a segunda mais pobre do Estado. Foi a única região a manter fraco ou nulo o dinamismo econômico da década de 1970, quando o crescimento mineiro apresentou índices superiores a 10% ao ano.

O auge do desenfreado processo emigratório ocorreu na segunda metade da década de 1980. Nesse período, o número de emigrantes valadarenses que seguiram para outros países, principalmente EUA, foi de 33.468 pessoas, o que representava 15,9% da população do município, segundo o Censo de 1991. As dificuldades de desenvolvimento pelas quais o Brasil passou nessa década, com uma inflação endêmica que achatava os ganhos da classe média, alavancou ainda mais as estatísticas de fuga.

Outro fator que contribuiu para fazer da América do Norte a segunda casa dos valadarenses foi o relato dos primeiros emigrantes que lá chegaram. A notícia do ganho fácil, da vida farta criou no imaginário popular a ideia de que a emigração era a solução para a estagnação brasileira.

“Para o valadarense, era mais fácil ir para os Estados Unidos, porque ele tinha quem o recebesse no aeroporto, o acolhesse em casa e o ajudasse a conseguir emprego”, explica a socióloga Sueli Siqueira, pesquisadora da Universidade do Vale do Rio Doce e autora do livro Sonho, Sucesso e Frustrações na Emigração de Retorno. Para se ter uma ideia do grande fluxo que se estabeleceu entre a cidade e os Estados Unidos, até bem pouco tempo ainda havia em Governador Valadares uma funerária que transmitia velórios e funerais em tempo real pela internet para aqueles que estavam no exterior pudessem se despedir de seus familiares.

No ápice do período de debandada populacional, entre os anos de 1984 e 1993, os emigrantes foram responsáveis, com seus dólares, por 46,7% de todas as transações imobiliárias ocorridas na região.

A partir do ano de 2000, quando a fiscalização se intensificou, 76% dos emigrantes da região de Governador Valadares passaram a entrar de forma ilegal nos Estados Unidos, a maioria pela fronteira do México. Isso porque ficou praticamente impossível conseguir visto de turista.

A remessa de dólares para o Brasil era tão grande que chamou a atenção das instituições financeiras nacionais. Antes operada informalmente pelas agências de turismo, a entrada de dinheiro passou a ser feita por instituições bancárias, como Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.

O retrocesso nesse fluxo começou com a crise americana de 2008, quando o custo-benefício da mudança passou a não ser tão compensador financeiramente. Muitos emigrantes haviam adquirido imóveis nos Estados Unidos. Animados com o crédito fácil, entraram na bolha que arruinou milhares de famílias americanas Com a crise, as ofertas de trabalho também reduziram. Primeiro, sumiram os empregos na construção civil, onde muitos brasileiros ganhavam a vida. Depois, nos demais setores, como o de serviços domésticos, atividade bastante procurada pelos valadarenses.

Muitos até tiveram vários empregos ao mesmo tempo, antes da quebradeira. É o caso de Laudiceia Oliveira, mãe do jovem Cláudio Afonso Pereira, que em 2001 assumiu a limpeza de 30 casas, em Boston, e subempreitava o serviço. As faxinas lhe rendiam US$ 10 mil mensais, líquidos. Quando resolveu voltar para o Brasil, ela vendeu o “negócio” por US$ 25 mil.

No final de 2008, os emigrantes brasileiros mal conseguiam manter um emprego nos Estados Unidos. Para piorar a situação, o valor da hora de trabalho havia caído. Em alguns casos, profissionais que recebiam 20 dólares por hora chegavam a receber em torno de 9 dólares. Pesquisa feita por Sueli Siqueira, com os emigrantes brasileiros que deixaram os Estados Unidos, enxotados pela crise, revelou que 43% deles o fizeram em função da redução nos ganhos.

Outros voltaram com medo da fiscalização imposta aos clandestinos, que se intensificou ainda mais quando o dinheiro e as oportunidades desapareceram do mercado. Até mesmo o cidadão comum americano passou a hostilizar com mais intensidade o estrangeiro que disputava emprego com ele. Em alguns casos, a hostilidade chegou a extremos.

Fazendeiros anti-imigrantes dos Estados da Califórnia e do Arizona resolveram enfrentar à bala os “indocumentados”, como são chamados os clandestinos. Um grupo chegou a organizar uma grande ofensiva. Criou uma milícia contra as pessoas que atravessavam o deserto do México. O argumento para aliciar voluntários: não era justo arcar com os custos de saúde e educação dos imigrantes ilegais, que não pagam impostos. Além disso, o que ganhavam nos Estados Unidos era enviado para seus países. Não investiam nada.

O clima ficou tão tenso que murchou o sonho de ganhar a vida na América. Um bom medidor pode ser o mercado imobiliário de Governador Valadares, que já foi muito beneficiado pelas remessas de dólares, e hoje já não depende mais deles. “No final dos anos 1990, de cada dez imóveis vendidos na cidade, quatro eram para emigrantes”, afirma Sueli Siqueira. “Em 2008, caiu para apenas um.”

 


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