Analisar a fotografia deixando de lado o seu traço primeiro e compreender que ela nada mais é do que a concretização de um imaginário, e, portanto, ficção, ainda é raro no Brasil. Como já disse um fotógrafo, não é que não se fala de fotografia, é que não se pensa a fotografia. Pode ser. Mas até agora. O livro do sociólogo José de Souza Martins, Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto), que acaba de sair do forno, é justamente uma prova de que começamos a pensar fotografia. Há tempos, José de Souza Martins vem se interessando em compreender a função da imagem (em especial a fotográfica) na criação e constituição do nosso imaginário. No livro, ele conversa diretamente com o sociólogo norte-americano Howard Becker, considerado o pensador que inaugurou a vertente da sociologia visual. Martins, no entanto, não acredita no positivismo de Becker em relação à imagem e traz para discussão a questão da ficção fotográfica, de como a fotografia é recebida e vista pela sociedade e como as pessoas se relacionam com a imagem. Ao passar por assuntos como cotidiano e fé, Martins nos convida a pensar no imaginário construído pela fotografia, que muitas vezes não é percebido nem codificado. O professor Martins concedeu entrevista exclusiva para a revista Brasileiros às vésperas do lançamento de seu livro.
Brasileiros – Em seu livro você diz que só há pouco tempo a sociologia vem se dedicando ao estudo da fotografia. A sociologia não considera o trabalho do fotógrafo e sociólogo norte-americano Lewis Hine, que em 1905 iniciou esta relação entre elas?
José de Souza Martins – Vejo o Lewis Hine mais como assistente social do que como sociólogo. Ele trabalhou com uma perspectiva social. Não interpretou nem fez sociologia da fotografia. Ao contrário de Howard Becker, que publicou uma revista chamada Visual Sociology e foi o pesquisador que tentou traçar a sério o que é lidar sociologicamente com a fotografia, Hine fotografou temas sociais como outros fotógrafos fizeram, mas com muito mais clareza.
Brasileiros – Por que as ciências sociais passaram a se interessar há tão pouco tempo pela fotografia?
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J.S.M. -As ciências sociais, e incluindo aí a antropologia, são ainda muito cruas no trato da fotografia. A antropóloga norte-americana Margaret Mead começou com esta tentativa de usar a fotografia como documento. Por exemplo, eu quero mostrar uma cadeira. Uma coisa é fazer um discurso sobre essa cadeira e outra coisa é mostrá-la por meio da fotografia.
Brasileiros – Sim, mas aí ela é apenas ilustração…
J.S.M. – No caso da antropologia é documentação. Ao usar a fotografia num texto estou reconhecendo que o discurso antropológico é insuficiente para descrever. Eu preciso da fotografia para mostrar o que não consigo dizer.
Brasileiros – E na sociologia?
J.S.M. – Aí é mais difícil, pois lidamos com pessoas. É preciso levar em conta que a fotografia é parte de um imaginário. Não existe uma documentação objetiva. É preciso interagir com esse imaginário e muitas vezes temos problemas quando fotografamos pessoas, porque nem sempre é desta forma que elas gostariam de ser vistas. E é isso que um sociólogo deve levar em conta: como as pessoas querem sair na imagem e a realidade objetiva que posso ver como profissional da sociologia.
Brasileiros – Ao fotografar, concretizamos a imagem que a sociedade gostaria de ter de si mesma. Seria esta a análise sociológica?
J.S.M. – Sim. E, é claro que existem padrões. Por exemplo, em São Caetano, na Fundação Pró-Memória, há o Museu Histórico que eu fundei há 40 anos. A cidade é um reduto de imigrantes italianos. Sugeri que eles organizassem uma exposição de fotografias de casamentos. Eles acharam fotos do início do século XX, que costumavam ser feitas no dia seguinte à noite de núpcias, quando o casal ia até o estúdio de um fotógrafo e vestia novamente a roupa do casamento. Criou-se um padrão. A partir do boom do cinema, essas fotos passaram a imitar cenas de filmes norte-americanos. Algo fora da realidade dessas pessoas. Precisamos levar em conta que o imaginário vai sendo produzido conforme as circunstâncias.
Brasileiros – A dificuldade em decodificar as imagens pode ser considerada um analfabetismo visual, ou seja, compreender a imagem apenas como documento?
J.S.M. – As pessoas precisam ser alfabetizadas. Fotografar não é clicar. Há muito abuso nas ciências humanas no uso da fotografia, principalmente entre os historiadores. Eles pegam imagens antigas e acham que aquilo tem o mesmo status de um manuscrito. Lembro de um livro sobre o cotidiano em São Paulo e uma das fotos era no Largo São Bento. Mas ao olharmos bem a imagem, você descobre que tem alguma coisa errada. Cotidiano é o rotineiro. Naquela foto está todo mundo bem-arrumado. Pela posição do sol, ela deve ter sido feita lá pelas 11 horas, quando as pessoas estão saindo da igreja, algo fora de seu cotidiano. Como as fotos feitas na Guerra de Canudos por Flávio de Barros. São fotos posadas, embora os historiadores tratem aquelas imagens como se tivessem sido uma reportagem. Ele era empregado do Exército.
Brasileiros – Numa sociedade onde tudo é virtual, não existe o perigo de voltarmos para um positivismo, ou seja, acreditar no que a imagem mostra?
J.S.M. – Esse perigo existe. Há na nossa cultura uma resistência ao imaginário. Os fotógrafos precisam ter essa consciência. Se eles não tiverem, farão uma fotografia pobre. As pessoas ainda acham a fotografia mágica. É preciso tomar muito cuidado com isso.
Brasileiros – O que o levou a fotografar?
J.S.M. – Fotografo desde criança. Sempre fui fascinado pela fotografia, mas não pelo registro em si, mas pelo que podemos fazer com ela. Quando comecei a fazer pesquisas também fotografava coisas que poderiam ser importantes numa análise sociológica. Anos depois, resolvi fazer alguns cursos. Acho a fotografia um instrumento fascinante de compreensão da realidade e do registro daquilo que já não existe.
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