Durante dois anos, entre 1982 e 1983, virei “corintiano” e até “comemorei” dois títulos paulistas. Para um torcedor do Botafogo desde o berço, isso era algo tão impensável quanto torcer, por exemplo, pelo Flamengo. A explicação para o aparente desatino é simples. Chefe da equipe de Esportes do jornal O Globo, em São Paulo, de 1981 a 1988, acompanhei desde o início o revolucionário processo que gerou a inovadora e efêmera Democracia Corinthiana, experiência única de gestão compartilhada de um time de futebol.
Para quem só ouviu falar, o processo democrático liderado por Sócrates, Wladimir, Casagrande (“meu herdeiro”, segundo Sócrates) e Zé Maria, junto com o diretor de futebol, o sociólogo Adilson Monteiro Alves, estabelecia um debate coletivo sobre as regras operacionais e de conduta do time. Horários de treino, concentração, esquema de folgas, tudo era decidido pelo grupo, com o voto de todos, do dirigente aos jogadores, passando pelo técnico (o experiente Mario Travaglini), tendo o mesmo peso. Só para lembrar, o Brasil ainda vivia os tempos finais da ditadura militar e ver a revolução liderada por Sócrates ocorrer no reacionário futebol brasileiro motivava qualquer um.
Marca registrada Sócrates comemora gol contra o São Paulo no Parque Antártica, em 1983, em jogo que terminou em 3 x 0 para o Corinthians |
Lembrar disso agora, depois da morte de Sócrates na madrugada do domingo, 4 de dezembro – dia que o Corinthians, que jogou de luto, terminou campeão brasileiro -, é uma obrigação. Longe de ser uma homenagem formal – no Brasil, quando alguém morre, vira santo -, lembrar de Sócrates político, militante, consciente, é um tributo a um dos maiores jogadores de meio-campo do Brasil em todos os tempos.
E me lembro de uma entrevista que fiz com Sócrates na casa dele, em Ribeirão Preto, no final de 1982. Em oito horas de conversa, regada a muita cerveja gelada, salgadinhos e lanchinhos de dona Guiomar (mãe do jogador), o Doutor não deixou um assunto de fora: a Seleção Brasileira de 1982; a derrota para a Itália; a lembrança do começo da carreira (nos contratos, exigia liberação dos treinos nos horários de provas ou plantões na Faculdade de Medicina); o novo projeto da Democracia Corinthiana e a própria volta da democracia ao Brasil. E contou sobre a noite em que surgiu a Democracia Corinthiana: “Mario Travaglini chegou e disse que o Adilson, que ninguém conhecia, queria ser apresentado à equipe para um papo de 15 minutos. A conversa durou quatro horas, em uma interação total”.
Os resultados não ficaram apenas no papo engajado. O Corinthians, que estava na Taça de Prata (2a divisão da época), acabou em 4o na Taça de Ouro (o Brasileiro de então). Em 1984, depois de dar o bicampeonato paulista ao Corinthians, Sócrates foi vendido para a Fiorentina, na Itália. A Democracia Corinthiana chegava ao fim.
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