Sol nascente em solo amazônico

Foto: Museu de Imigração  em SP
A primeira leva de imigrantes, em 1929. Foto: Museu de Imigração em SP

Em certos momentos da manhã, o sol dos trópicos brilha de modo mais mágico. Se, ao mesmo tempo, uma brisa quase imperceptível faz vibrar as copas das árvores, então se produz na Floresta Amazônica o clima de um paraíso terrestre. Era exatamente isso que, em setembro de 1929, 189 pessoas de 43 famílias esperavam ao desembarcar no trapiche do rio Acará, em Tomé-Açu, a 210 km a sudeste de Belém, a capital paraense. Elas formavam a primeira leva de imigrantes japoneses que chegavam à Amazônia brasileira. E por quê?

O governo do Pará, perante as notícias do êxito de imigrantes japoneses em São Paulo, também apostou nesse povo determinado. O Estado doou três áreas, no total de um milhão de hectares (dez bilhões de m2, o que corresponde à área de um milhão de campos de futebol), sendo 600 mil no município de Acará para a Nantaku – Cia. Nipônica de Plantação do Brasil −, e o restante em Parintins e Monte Alegre, para o assentamento dos imigrantes que fugiam do desemprego que assolava as terras nipônicas e – por que não? – do abandono de seus governantes que os instigava à imigração, pois viam com bons olhos livrar-se do excesso de mão de obra.
Desembarcaram.

Os homens de terno e gravata e as mulheres com seus melhores vestidos e sapatos altos. Todos tinham nas mãos uma bandeirinha do Brasil. Estava claro. Vindos de um clima temperado frio, desconheciam o calor e o incômodo da Amazônia. Não conheciam as letras do nosso alfabeto, mas eram obstinados pelo trabalho agrícola. E isso, para eles, era o que valia.

Yoshiichi Yamada é seu nome. Sua história e a de seus conterrâneos é tão verdadeira quanto bela. Ele estava naquela primeira leva. Deixara Hiroshima com a mulher e os quatro filhos e, como a maioria, vieram fazer dekassegui (um bico). A expectativa era de, após prosperarem, voltarem ao país de origem. Mas não precisaram de muitos dias para entrar na emoção de serem postos à prova de infortúnios e constatar que a realidade na Amazônia não respeita nada, nem mesmo a ficção.

Para fazer um retrato do passado e compreender o espírito desses imigrantes, o mais legítimo é recorrer à memória dos que estavam a seu lado, bem como impregnar-se das imagens daquela época. Duas pessoas foram muito importantes nesta reportagem: Hajime Yamada, filho de Yoshiichi, que na época tinha 2 anos, e Tomiko Sawada, de 83, a primeira nissei de Tomé-Açu.

A história
Ao contrário dos japoneses que aportaram em 1908 no sul do País, para trabalhar como empregados nos cafezais em substituição aos italianos que já começavam a pôr suas manguinhas de fora, os japoneses da Amazônia atravessaram os oceanos para se tornarem donos da terra.

Tudo estava sendo muito bem planejado. Em 1926, de acordo com a historiadora Fusako Tsunoda, o governo japonês cuidou de preparar a primeira missão técnica com o objetivo de viabilizar o empreendimento. Partiram, então, para os Estados Unidos. Isso mesmo, América do Norte. Já era voz corrente na época que “quem quiser conhecer a Amazônia que vá aos Estados Unidos ou Inglaterra”, confirmando o quanto é antigo o interesse dessas nações pela região.

Na biblioteca de Nova York, os pesquisadores encontraram a mais completa documentação a respeito do clima, solo, geografia, mineralogia, botânica, doenças, enfim, tudo o que precisavam saber sobre a maior floresta tropical do mundo. Como lembrete, nesse mesmo ano de 1926, e baseado na mesma literatura, o industrial americano Henry Ford iniciou uma grande plantação de seringueiras em uma área perto de Santarém, também no Pará. Apesar de toda essa imersão no legado cultural dos livros, a complexidade da Amazônia, in loco, é outra história. Se há um lugar que é impossível de ser compreendido à distância, este é a Amazônia. E deu no que deu: várias pragas surgiram, as seringueiras não vingaram, e a Fordlândia furou.

O resultado dos estudos da equipe japonesa, porém, apontava para a plantação de cacau, e a região escolhida foi a bacia do rio Acará, na colônia de Tomé-Açu. Ficou acertado que cada imigrante iria receber 25 hectares de terra (apenas para ter uma ideia, um assentado do MST recebe em média 70 hectares do governo brasileiro). A Nantaku ainda ajudava com material para a construção de casas de madeira e ferramentas para a derrubada da mata. Também foram construídos um hospital e um armazém de abastecimento de produtos de primeira necessidade. Não por menos, os imigrantes japoneses do sul chamavam seus compatriotas do norte de “mimados”.

Entre o sonho e o real
Hajime, hoje com 86 anos, construiu sua vida no Brasil e hoje é uma biblioteca viva da história dos japoneses em Tomé-Açu. Ele, que é também um bonsan (monge), relata desde o início: “Não falávamos uma palavra em português, e as dificuldades eram compartilhadas pelas famílias japonesas que estavam aqui e as que vinham de três em três meses, na maioria agricultores pobres. Meu pai falava que todos estavam esperançosos, mesmo vendo que a realidade na Floresta Amazônica era bem diferente da que eles pintavam no Japão”.

Logo perceberam que a monocultura do cacau não iria dar certo. Demorava de dois a três anos para frutificar, e muitas mudas não vingavam por causa do solo seco. Então, abandonaram as plantações para se dedicar ao arroz e aos legumes, em uma agricultura de subsistência. E ainda que a companhia nipônica os tenha assistido, logo nos primeiros anos a miséria bateu à porta desses japoneses. Para piorar, muitos ficaram doentes, vítimas de malária e febre negra – mais agressiva e fatal, uma febre hemoglobinúria causada pelo uso excessivo do quinino, medicamento para o combate à malária.

Mesmo assim, as levas de imigrantes para a região continuaram chegando. “Se não dá para vivermos aqui, porque a companhia continua trazendo japoneses para cá?”, perguntava Yoshiichi. Quando chegou o 21o grupo, em 1936, Tomé-Açu viu pela primeira vez a recusa de japoneses em desembarcar. “Eles preferiram retornar ao Japão, depois de se apavorarem e constatar a situação dos agricultores locais”, relembra-se Hajime.

Nesse mesmo ano, a companhia nipônica começou a diminuir suas atividades no País e praticamente deixou seus associados ao deus-dará. Cada um que se virasse como pudesse. A partir daí, começou a fuga de muitos japoneses para o sudeste brasileiro em busca de melhor sorte.

Preservando o espírito de seus ancestrais, de não se abater nas adversidades, os japoneses dos trópicos procuravam a melhor saída para continuar trabalhando a terra. Ela veio no final da década de 1930 com a venda de legumes para a cidade de Belém. Houve uma pequena melhora na situação econômica da colônia, e uma luz de prosperidade começou a brilhar.

Mas durou pouco. De tempos em tempos, a saga da imigração japonesa, no norte brasileiro, ganhava uma roupagem diferente. E a cada impacto seus participantes se mantinham dispostos a pagar caro pela novidade. Aqui, no caso, foi a Segunda Guerra Mundial. Em 1942, o Brasil de Getúlio Vargas declarou guerra ao Eixo, formado por Alemanha, Itália e Japão. Quase no mesmo dia da declaração, os japoneses de Belém tiveram suas casas queimadas, a Cooperativa dos Agricultores de Tomé-Açu, fundada em 1939, foi confiscada e a região tornou-se centro de confinamento dos japoneses do norte do Brasil.

“A situação piorou de vez, não podíamos negociar livremente nossos produtos, e era muito difícil conviver com os militares. Porém, nada perto do que acontecia em Belém. Lá, o pau comeu feio, as casas foram saqueadas, incendiadas, e os japoneses apanharam muito. No começo, aqui havia muita ‘observância’ sobre nós. Invadiam nossas casas, mas queimavam somente o que lembrava o Japão: livros, retratos, orações e objetos”, lamenta Hajime.

“Fabricada” no Japão, como gosta de dizer, a nissei Tomiko Sawada, primeira japonesa a nascer na Amazônia, ainda guarda traços da beleza oriental. Ela lembra aqueles dias da ocupação militar em Tomé-Açu. “Meus pais morreram de malária anos antes, e eu vivia com meus seis irmãos. Tínhamos muito medo, pois estávamos sendo maltratados pelos policiais. As coisas só melhoram, e muito, quando a colônia ficou sob as ordens dos tenentes Maurício e Felicidade. Eles tratavam bem os japoneses, gostavam das crianças e nos ensinaram a jogar voleibol, e inventavam muitas brincadeiras. Por ser criança na época, não tenho lembrança triste daqueles tempos”, diz Ester, como Tomiko é mais conhecida.

Vale ressaltar que, talvez, esse tratamento mais humanitário por parte da polícia em relação aos japoneses, em Tomé-Açu, acabou por impedir o surgimento de atos de resistência, como os perpetrados pela organização terrorista Shindo Renmei no interior paulista, que não aceitava a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial.

Parece coisa de cinema
Após o conflito, a simples menção do nome Tomé-Açu provocava tristeza e dissabor entre os imigrantes japoneses de todo o Brasil. Além de ter sido um espaço de internação durante a guerra, a péssima lembrança vinha com números. De acordo com Fusako Tsunoda, de um total de 2.104 imigrantes que ali chegaram antes da guerra, 77% morreram ou abandonaram a colônia de Tomé-Açu, ou seja, 1.621 pessoas. Todos queriam ir embora, só ficaram aqueles que não tinham nenhuma condição de sair “ou os obstinados, como meu pai, que faziam questão de permanecer”, afirma Hajime, acrescentando o que Yoshiichi sempre dizia: “Vim para vencer e não para desistir. Não vou voltar para a mendicância no Japão”.

Tomé-Açu seguiu seu ritmo cadenciado na pobreza quase absoluta até que, em 1947, um acontecimento excepcional trouxe perspectivas. Aqui vale uma digressão. Se devêssemos escolher um momento-chave para definir o sucesso de Tomé-Açu, foi esse: em 1933, o navio que trazia a 13a onda imigratória para a Amazônia fez uma parada forçada em Cingapura e só foi permitido o desembarque do encarregado da Nantaku, Makinosuke Usui, que aproveitou para visitar o Jardim Botânico e adquirir 20 mudas de pimenta-do-reino (Piper nigrum), da variedade Pacífico Sul. Ao chegar a Tomé-Açu, deixou as mudas na Estação Experimental de Açaizal, e ali ficaram esquecidas durante 15 anos. Apenas duas sobreviveram e foram então replantadas, cada uma por um agricultor japonês, para serem usadas como condimento.

Pode parecer magia, mas o certo é que com elas a carga de azar da região foi para o espaço, pois as sementes das plantas formaram outras e logo um tapete verde de pimenta-do-reino se estendeu sobre Tomé-Açu que, assim, encontrou seu cultivo ideal. A partir de 1952, no mercado internacional o preço da pimenta alcançou valores altíssimos devido à queda da produção da especiaria na Ásia, ainda abalada pela destruição de suas plantações durante a Guerra.

No Pará, em pouco tempo o ciclo da pimenta-do-reino se tornou, depois da borracha, o maior item de exportação. O sucesso então retumbou como um gigantesco gongo de boa sorte sobre os agricultores: no final da década de 1950, Tomé-Açu tinha o maior PIB do Estado.

Apesar da retomada da produção de pimenta-do-reino pelos países asiáticos, na década de 1960, e consequentemente da retração dos preços, a situação continuou favorável para os agricultores até o início da década seguinte. Esses, com poucas exceções, além de outros japoneses que retornaram do sul, bem como de novos imigrantes que vieram para plantar pimenta, tiveram acentuado enriquecimento.

Ainda segundo Tsunoda, “entre as boas fortunas da contribuição da agricultura japonesa no Brasil, podemos citar o grande sucesso da hortelã, no sul do País, nos anos de 1941-43, e do café, no norte do Paraná, em 1951-54. Mas o boom da pimenta-do-reino de Tomé-Açu não teve paralelo”.

Não querendo mais serem pegos de calça curta e conhecendo melhor a Amazônia e suas dificuldades para a monocultura, os japoneses se prepararam para outra pá de cal em seu futuro. Isso viria acontecer na década de 1970, quando a pimenta foi devastada pela fusariose, um fungo que provoca o apodrecimento das raízes. Mas, nessa época, já tinham sido desenvolvidas novas técnicas agrícolas para a região. Cacau, banana, dendê, açaí, cupuaçu, maracujá e outras frutas eram plantados à sombra de árvores nativas no ciclo de produção do sistema agroflorestal, que em pouco tempo se tornou o xodó da agricultura local e até hoje rende ótimos dividendos.

Se a primeira impressão fosse tudo, talvez Tomé-Açu não chamasse a atenção hoje. Muito exposta à luz e ao mormaço, a cidade é feia, com poeirentas fachadas, com esgoto correndo pelo meio-fio e se espraiando pelas ruas. Pior, não guarda quase nada da cultura japonesa. Um hospital abandonado, esparsas casas construídas em arquitetura japonesa, um templo. É até difícil encontrar seus descendentes de olhos puxados. Mas uma cidade não é feita só de tijolos, e sim das relações entre os acontecimentos do passado e de seus personagens. E é aí que Tomé-Açu surge como uma das cidades míticas do Brasil, fazendo de sua história e perseverança de seus primeiros colonizadores sua maior riqueza. 

*Colaborou Antão Yamada


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