Nós e a forma como subestimamos a finitude. O fim nos ofende. Viver em um mundo onde tudo foi feito para acabar um dia não serviu, ainda, para nos conscientizar do que o fim representa para o nosso crescimento. A finitude nos assusta, esfrega em nossas caras nossa pequenez perante a realidade. Deve ser por isso que brincamos com ela, que fingimos que não existe – ou, pelo menos, achamos que uma hora ela será vencida por nossa ignorância e desistirá de nos levar pessoas, coisas e instantes. Até, cedo ou tarde, darmos de cara com ela e o sofrimento inevitável que representa. Nós ainda preferimos adotar a indiferença contra tudo que nos dá medo. E o fim é alvo principal disso, porque ele condiciona toda a nossa vida.
Tudo acaba um dia
Deve ser culpa do apego. Temos tanto medo de perder o que nos faz feliz, que preferimos ignorar a imposição do tempo – que, claro, não é suficiente e nunca será. Mas, ao passo que somos tão apegados, também somos imensamente relapsos. Levamos tão a sério essa postura de ignorar o fim, que realmente agimos como se ele não fosse chegar. Adoramos nos enganar. Só que dessa forma, deixamos de nos dedicar com mais zelo ao que tanto gostamos. Achando que sempre haverá mais tempo, descuidamos das coisas, da saúde, evitamos experiências realmente significativas, deixamos tudo para depois, maltratamos pessoas amadas, inclusive nossos ídolos. Sim, nossos ídolos também! Por que não incluí-los nesse pacote? Eles ajudam a tornar essa caminhada bem mais prazerosa.
Cheguei ao ponto que pretendia
Todo mundo sofre perdas dentro de casa e, com certeza, essas são incomparáveis. No entanto, nossa capacidade de adoração transcende o lar (ainda bem), e atinge em cheio aquelas pessoas que nos conquistam pelo talento. Com certeza nasceu daí o tal amor platônico. Elas se dispõem a dizer o que queremos ouvir, a mostrar o que queremos ver; se atrevem a traduzir com arte o que sentimos e cobiçamos. Elas cantam, dançam, interpretam, escrevem, desenham, criam, e, por seus atributos únicos, se tornam públicas. A partir daí, na nossa concepção, deixam de ser propriedade delas mesmas e se tornam propriedade do mundo para o qual se expõem: nós. Em troca, lhes damos fama, dinheiro e glamour. Ok, é uma escolha delas, e como seria chata a vida sem essa inspiração e ousadia. Mas não é só o talento que nos atrai.
Tornamo-nos fãs porque nos realizamos por intermédio dessas pessoas. Seja por fazerem coisas que gostaríamos de fazer e não temos condições, oportunidade e até coragem para tal; seja por ampliarem nossas ideias e possibilidades; seja por ingressarem em um mundo de luzes e fantasias, aberto para poucos e onde tudo parece possível; seja pela imortalidade que isso pressupõe. Seja, simplesmente, pela valentia de se colocar diante do mundo contrariando o convencional. É como se fizessem parte de um universo onde a liberdade e a rebeldia não são condenáveis, afinal, faz parte da nossa hipocrisia natural suplantar nossos desejos mais profundos.
Aí é que está. Mergulhamos tão fundo nessa fantasia, que achamos que nossos ídolos , além de sobrenaturais, são também imortais. É como se acreditássemos que a fama, o dinheiro e o glamour lhes tornassem imunes a qualquer tipo de fragilidade humana. Talvez por isso mesmo não medimos o peso da mão que impomos sobre eles – a mesma que um dia aplaude, no outro dia, estapeia. Na medida em que adoramos, castigamos com crueldade. É justamente isso que tem me intrigado depois de grandes perdas no mundo artístico. Nós, os fãs, levamos essas pessoas do céu ao inferno, e quando elas se vão — sempre de repente, sempre cedo demais –, chocados, passamos a endeusá-las pelo resto de nossas vidas. E curtimos, sem mais alternativa, a saudade daquilo que só aquela pessoa sabia fazer, que ninguém nunca fará igual. Engraçado, né?
Quando o ídolo está por aqui ainda, damos a ele mais do que sonhou, mas basta um deslize, independentemente de ser real ou não, antes de qualquer julgamento oficial, batemos forte, cobramos, criticamos, julgamos na mesma proporção da sobrenaturalidade que lhes demos de presente lá atrás. Humilhamos sem dó. Fazemos piada, condenamos sem direito a defesa, exploramos sua imagem decadente até mais do que aquela que, por tantas vezes, nos trouxe alegrias. Será por inveja? Será por despeito? É bem confuso isso, contraditório. Será que é pelo temor de sermos privados do talento que agora nos pertence? Ou será por nos sentirmos ofendidos por esse que promovemos a celebridade se comportar como um reles humano? Por demonstrar fraquezas e necessidades iguais às nossas? Pode até ser por vergonha do nosso exagero ao venerar – e pela carência que esse ato denuncia.
Até que nosso astro morre!
E não é que era mesmo um ser humano? Dá para acreditar? Como assim, morre? Sem uma última canção? Sem aviso prévio e despedida? Sem que eu tenha curtido mais um pouquinho e até me redimido a tempo? Sem que termine o contrato? Então choramos, lamentamos e rezamos em um coro mundial. E não termina por aí. Corremos comprar seus produtos, postamos mil homenagens em nossos perfis sociais, penduramos suas fotos em nossas paredes, oferecemos solidariedade aos familiares das maneiras mais inusitadas, viajamos longas distâncias para tocar em seu caixão, assistimos por horas seu funeral pela televisão. Tudo pela perda irreparável. E, depois, cobrimos sua sepultura de flores durante anos inteiros, fazemos de tudo para ver e tocar seus pertences, exigimos que se façam museus em sua homenagem, e, mais do que nunca, os defendemos com unhas e dentes dos críticos, porque apesar dos deslizes, representa um talento insubstituível e isso, agora, é inquestionável. Antes, a vida toda dele nos dizia respeito: cada passo, cada escolha, cada atitude (principalmente as ruins). Agora, só o que importa é o que ele fez de bom. Daí, passamos a cultuar sua imagem com uma lealdade que o artista, em vida, não conheceu. Ele vira deus, como todo mundo que morre, só que como se trata de um astro, é elevado a outras categorias, já que essa admiração encontra respaldo nas multidões, agora eternamente apaixonadas.
Infelizmente, com os gigantes é assim. Foi assim com Michael Jackson, só pra ser mais recente um pouco. Todo mundo sabia que se tratava de um artista único, de um talento realmente incomum e que dificilmente será superado algum dia no que se propôs. No entanto, após boatos e histórias que nunca foram comprovadas – em alguns casos ele até chegou a ser inocentado –, foi massacrado pelo mundo todo e de diversas formas. Nós o levamos do céu ao inferno. Acabamos com ele. Num universo bem menor, e sendo um caso diferente, porém vítima da mesma fã-crueldade, podemos citar o próprio Wando, que perdemos outro dia. O cantor andava sumido há anos, ninguém mais falava nele, a não ser pra tirar sarro. Após sua morte, vi “zilhões” de homenagens a ele, às suas músicas, suas composições nas redes sociais, na imprensa em geral. Onde estavam esses fãs que o condenaram ao anonimato durante os últimos anos? Que lhe deram e lhe tiraram o palco? E será que não são os mesmos que o rebaixaram à categoria “brega” que tantas piadas infames lhes rendeu? Agora, post mortem, tornou- se ícone da música popular brasileira. Uma lenda.
E agora, com a perda da Whitney Houston, a diva, estamos vendo a mesma coisa acontecer. Ao gigantismo dela como cantora não cabe discussão, nunca coube. Mas só hoje, com sua ausência, sabemos o quanto a sonoridade da vida ficou abalada sem sua voz, sem seu dom espetacular. Mas tudo isso foi esquecido quando decidimos castigá-la por cair no mundo das drogas, pelos escândalos de um casamento desastroso, por perder o caminho de volta a ponto de não conseguir nem mesmo recuperar aquela voz estupenda. Tão nossa! Tão nossa! Por que ela não cuidou da nossa voz? Do nosso dom, não é mesmo? E ela ia tirar forças de onde? De suas fotos circulando na internet completamente destruída, doente, dependente das drogas? Nos últimos anos, essa foi a única coisa que contemplamos com relação à grande cantora. Em vez de incentivá-la a recuperar a autoestima saudando suas inúmeras apresentações memoráveis, reconhecendo a beleza de suas canções e o quão abençoado era seu timbre, preferimos, como sempre, energizar sua autodestruição.
Será que boa parte da culpa não é nossa? Somos fãs inquisidores e, por muitas vezes, cruéis. A oferta é tentadora, eu sei, mas o risco é bastante alto, e disso nós temos consciência. No entanto, qualquer um de nós, no lugar deles, aceitaria o desafio; tanto pela ilusão de não ser mais uma vítima desse mundo irreal, quanto pelo sonho de viver daquilo que se gosta e ser admirado por isso. Por causa disso, não quero entrar no mérito ou demérito dos erros cometidos pelos grandes artistas, discutir o certo e o errado de suas escolhas, quero apenas tentar entender essa nossa revolta que sempre se afoga em um choro. Porque só pode ser isso. Ficamos revoltados perante a fraqueza daqueles que elegemos como gigantes. E sei que essa promoção toda faz parte do show, mas convenhamos, temos grande culpa por esses ídolos não aguentarem o tranco, afinal, eles não são sobrenaturais, são gente, por incrível que pareça. Tão gente e suscetíveis – acredito que até mais, pela inconsistência do universo em que ingressam — quanto nós.
Somos culpados, tanto por vê-los dessa forma, quanto por fazê-los acreditar que estão acima do bem e do mal. Chega uma hora que é difícil distinguir o real do incrível, e o que fazemos? Damos ainda mais força à ilusão, porque isso alimenta nosso ego (e nossa crueldade velada). Nada disso justifica a entrega à decadência, claro, mas é um sinal, e todos nós somos responsáveis pelos resultados que temos visto através desses ícones. Até porque, a desgraça deles gera frustração, que transformamos em fúria e descarregamos sobre a fantasia que nós mesmos construímos e descarregamos na figura dos nosso ídolos. Até o limite. Até que sucumbam.
Sem mais o que fazer, buscamos nos redimir oferecendo a mais contundente salva de palmas, em pé diante desse palco cujas cortinas se fecham para sempre. Pena que nossos ídolos só desfrutem desse tipo de aplauso interminável postumamente, embora saibamos que a luz das estrelas não se apaga jamais.
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