Zuza Homem de Mello nasceu no começo dos anos 1930 e na década seguinte já acompanhava com atenção a cena da música popular brasileira. Ouvia na rádio e na vitrola Carmen Miranda, Jackson do Pandeiro, Dolores Duran, Silvio Caldas e outros. Hoje, prestes a completar 80 anos, consagrado como um dos maiores musicólogos e jornalistas especializados do País, Zuza não perdeu a disposição para procurar novos talentos, pesquisar sonoridades modernas e separar o joio do trigo do que é produzido na música popular. “Claro que a gente tende a se identificar mais com a música que ouvimos entre os nossos 20 e 40 anos. Para mim, a bossa nova foi a grande revolução. Mas, se você tem curiosidade pelo novo, vai saber valorizar o que é bom em cada época.”
É preciso ir atrás, ressalta ele. “Não tenho a pretensão de achar que as coisas boas vão chegar a mim facilmente. De modo geral, a mídia é ignorante em termos musicais.” O que chega a todos facilmente, segundo Zuza, é música ruim, descartável, divulgada por gente interessada em faturamento, não em cultura. Para ele, entram nesse pacote o forró universitário, o sertanejo e a música religiosa comercial, além de tantos outros estilos “inomináveis”. Sobre esse assunto, Zuza não economiza palavras duras. “Uma jornalista me pediu para definir Michel Teló. Eu disse: ‘É um pum. Uma coisa mal cheirosa, que incomoda as pessoas e que desaparece dali a cinco minutos’.”
Mas a respeito de música boa, produzida paralelamente à que ele considera descartável, o musicólogo cita nomes que mostram a criatividade de uma nova geração e dão boas perspectivas para a música popular brasileira nos próximos anos. Apenas entre artistas na casa dos 20, 30 anos, Zuza faz uma longa lista de compositores e intérpretes, como Yamandu Costa, André Mehmari, Céu, Tulipa Ruiz, Pélico, Romulo Fróes, Kiko Dinucci, Bruna Caram, Filipe Catto, Dani Black e Mariana Aydar. “É o que temos hoje: de um lado, uma música absolutamente descartável, um produto, e de outro, gente construindo uma carreira sólida.”
No entanto, segundo ele, a produção sólida, ganha muito menos destaque do que merece ou, por vezes, tudo é tratado como um mesmo tipo de manifestação: música brasileira. O fato de Michel Teló e Chico Buarque terem concorrido na mesma categoria no Grammy Latino deste ano explicita o quadro e deixa Zuza indignado. “Alguma coisa está errada. Ou você junta Teló e os seus parentes musicais do mundo todo, ou Chico e os seus. Colocá-los na mesma categoria é como comparar uma partida de futebol com um jogo de abafa de baralho.”
Cem anos para trás
Para celebrar o centenário da Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), Zuza criou o espetáculo 100 Anos de Luz e Som, apresentado em novembro no Teatro Alfa, em São Paulo, em que percorre um século da música popular. A ideia de relacionar luz e som, áreas aparentemente distantes, segundo Zuza, partiu do fato de as trajetórias da música e da energia elétrica no País estarem intimamente ligadas. “O primeiro samba gravado se chama Pelo Telefone (composto por Donga, em 1916)”, diz ele.
Como em uma linha do tempo, o show de Zuza reuniu músicos escolhidos pelo próprio – entre eles, Filipe Catto, Bruna Caram, Marcos Sacramento, Mariana Aydar, Pélico, Proveta, Renato Braz e Zé Renato – para interpretar canções representativas de cada período histórico. O maxixe, o samba-canção, as marchinhas, a bossa nova, o tropicalismo, a música regional, o rock e o mangue beat. Nada ficou de fora. O desenvolvimento de cada gênero, segundo ele, nunca se desligou das possibilidades tecnológicas (logo, energéticas) de cada momento. “Primeiro veio a rádio, nos anos 1920, e os gramofones, seguidos pela televisão, pelo CD, internet… Isso sem contar o desenvolvimento das técnicas de gravação e dos instrumentos e equipamentos de estúdio, como mesas de som e microfones cada vez mais modernos.”
O surgimento da bossa nova, por exemplo, com João Gilberto e Tom Jobim, esteve diretamente vinculado às possibilidades de captação sonora de voz e instrumentos. “Quando o microfone conseguiu captar de maneira muito mais clara e definida a voz do cantor, a bossa nova pôde se projetar, aproveitando essa tecnologia. Não era mais necessário que o cantor tivesse uma voz potente, mas apenas que soubesse interpretar”, conta Zuza, comparando com o panorama da geração anterior, de nomes como Orlando Silva, Silvio Caldas e Chico Alves.
Outro bom exemplo explorado pelo espetáculo é o do rock, que explodiu no Brasil nos anos 1980. Uma música mais elementar, segundo Zuza, mas de relevância, criada com o uso de guitarras e teclados elétricos e batidas computadorizadas. “Essas coisas possibilitaram o desenvolvimento dessa juventude, que podia se profissionalizar em muito menos tempo.”
Quando trata das diferentes gerações (incluindo a atual) em um mesmo espetáculo, o musicólogo não pretende dizer que todas elas são criadoras de obras do mesmo nível de importância ou com a mesma qualidade artística. Mas, como disse de saída, é preciso saber valorizar o que é bom e relevante em cada época. “Não dá para querer que surja a cada dez anos uma leva de músicos como a de Caetano, Gil, Chico e Milton, considerada a mais gloriosa da música brasileira. É natural que seja assim. Então, não precisamos comparar, seria muita pretensão.”
A morte da MPB
Se a música popular está viva, a sigla MPB, para Zuza, já morreu. Se em algum momento, como na época dos festivais, o seu uso denotava um segmento musical específico, hoje “não significa mais nada”. “Faz mais sentido”, diz ele, “falar apenas em música boa ou ruim. Quem precisava de rótulos eram as lojas de discos, que tentavam organizar as coisas. Mas pense em uma categoria como world music. O que quer dizer?”
Desvincular-se dos vários rótulos da música parece ser um dos méritos da geração dos anos 2000 – ao menos da parte que faz música boa, como diz Zuza –, que transita com facilidade por diferentes estilos, sem preconceitos e tem se capacitado, inclusive, para trabalhar com os mais consagrados artistas da música brasileira. Basta lembrar que Caetano Veloso é acompanhado por três jovens músicos (dois deles da banda carioca Do Amor); que Gal Costa reuniu em seu último disco nomes como Davi Moraes e Kassin; que Paulo Moura (1932-2010) e Dominguinhos gravaram discos ao lado de Yamandu Costa; que Tom Zé conta com participações de Emicida, Pélico, Mallu Magalhães e Rodrigo Amarante em seu novo disco.
Há alguns meses, Tom Zé disse humildemente, em entrevista a este repórter, que aprende mais com os jovens do que os jovens aprendem com ele. Zuza não diria o mesmo, mas entende a afirmação do músico baiano. “Essa nova geração tem um preparo incrível. Existe um grau de profissionalismo e de amadurecimento que só pode dar em coisa boa. Tem gente muito talentosa, com propostas originalíssimas, tirando partido de novos timbres e de uma rítmica interessante, criando uma feição musical contemporânea para essas pessoas que não se satisfazem com a música ruim”. E segue: “Essa surpresa do Tom Zé é a mesma de muita gente da minha geração”.
Para finalizar, Zuza conclui: “Então, com o passar dos anos, as pessoas vão dar conta de que aquilo que estavam ouvindo era uma coisa passageira, e vão começar a perceber quanta música boa existe e existiu, nas quais eles precisam se ligar. Isso é inevitável”.
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