Imagine um elefante. Grandalhão e imponente, transmite uma idéia de força e de dignidade indiscutíveis, ao mesmo tempo em que parece um tanto lento e desajeitado com aquele corpanzil. E ainda tem aquela tromba enorme e esquisita que a gente não sabe direito como funciona, um rabinho e duas presas de botar medo. Agora, pense em uma manada de elefantes, apertados uns contra os outros, até se acomodarem em um espaço mínimo, na mais perfeita harmonia. Você está diante de uma orquestra. A comparação tem suas razões. Com uma logística complexa e custos sempre altos, manter uma orquestra em funcionamento é uma operação sofisticada em termos artísticos e materiais. Desde 1986, Ligia Amadio dirige seu “elefante”, sem perder a inteligência, o charme e o respeito de seus colegas. Ela é a regente titular – indicada pelos próprios músicos – da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN), no Rio de Janeiro, e uma das raras maestrinas do Brasil. Seu trabalho é ainda mais louvável quando se conhece a tortuosa trajetória dessa orquestra.

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A Orquestra Sinfônica Nacional é uma sobrevivente. Sua história se mistura com a do próprio rádio brasileiro. Em 1936, o educador e pioneiro da radiofonia brasileira Edgard Roquette-Pinto doou a sua Rádio Sociedade ao Ministério da Educação, que possuía uma orquestra que mais tarde seria o embrião da Sinfônica Nacional. Com o nome de Orquestra Sinfônica Nacional, ela surge apenas em 1961, por meio de um decreto do presidente Juscelino Kubitschek. A intenção era transformá-la em alto-falante da cultura brasileira, a exemplo de outras orquestras estatais, como a da rádio e TV da França, a RAI italiana, a Bayerischer Rundfunk, de Munique, e a BBC, de Londres. A OSN chegou a realizar 1.500 concertos entre as décadas de 1960 e 1980, gravou muitos discos e teve grande destaque na história da música clássica e popular.

Até os anos 1960, as rádios ainda detinham grande popularidade em todo o País, mas, nas décadas seguintes, com a multiplicação das antenas de televisão, as antigas emissoras entraram em decadência. Ao mesmo tempo, uma série de mudanças na estrutura das rádios estatais deixou a OSN em desabrigo, transferida como mobiliário de uma instituição para outra até deixar de se apresentar. A sopa institucional de letrinhas – SRE do ME (Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério da Educação), depois MEC (Ministério da Educação e Cultura) e Funtevê (Fundação Centro Brasileiro de TV Educativa) – só terminou com a ida da orquestra, em 1986, para a UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói, que a mantém até hoje.

Com seus naipes banguelas, sem o mesmo destaque popular das décadas anteriores, silenciada por vários anos, expulsa do ótimo estúdio sinfônico da Rádio MEC e exilada em Niterói, do outro lado da Baía de Guanabara, a Orquestra Sinfônica Nacional parecia ter chegado ao fim. Não fosse o esforço de seus músicos e dos fãs remanescentes, ela teria, de fato, desaparecido. No entanto, 22 anos depois, a orquestra mostra que sua existência tem força para resistir aos mais duros percalços. Mais por amor à arte do que pela infra-estutura dispensada aos seus integrantes. Para sobreviver, os mais de 50 artistas fixos que atualmente fazem parte da OSN também tocam em outras orquestras, dão aulas e atuam em trabalhos paralelos. O número é pequeno, quase a metade dos 90 músicos necessários. E, com o salário pago, mal dá para pagar as despesas pessoais – eles recebem entre R$ 2 mil e R$ 3 mil por mês. Além disso, há apenas R$ 70 mil para cobrir todos os outros custos da orquestra – uma ninharia se comparados aos R$ 43 milhões que o governo do Estado de São Paulo repassa à Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp).

Para diminuir as lacunas, foi realizado em agosto passado um concurso que ofereceu cerca de R$ 1.800 para quatro novos instrumentistas. “O ruim é vir de longe para trabalhar. Mas os músicos estão com gás. E, se não houvesse um público tão receptivo, certamente a gente iria desanimar”, conta o oboísta Márcio Miguel Costa, há dois anos na OSN. Ele mora no bairro de Rocha Miranda, na zona norte do Rio e, com sorte, demora duas horas para chegar ao serviço.

Nem a sofrível acústica do Cine Teatro da UFF, em Icaraí, afasta os fãs. São cerca de 500 pessoas que trocam o sono das manhãs de domingo para assistir aos concertos no teatro. No último dia 22 de agosto, coube à maestrina peruana Mina Maggiolo reger a OSN, com a “Serenata nº 1”, de Johannes Brahms, e peças de seus conterrâneos Roberto Carpio, Alomías Robles e López Mindreau. “Sempre incluo obras de compositores nacionais em meus concertos. E também mais música contemporânea, porque o público a está aceitando melhor”, conta Mina, feliz com o sucesso de “El Condor Pasa”, de Robles, um segundo hino nacional de seu país. Ela conta que, no Peru, os músicos ganham, em média, a metade do que um músico brasileiro recebe. O que não impede o surgimento de uma nova geração de músicos latino-americanos. “A Venezuela tem uma ótima escola de violinistas. E está acontecendo um movimento musical muito grande no continente, com mais instrumentistas formados e mais integração. As coisas estão melhorando”, acredita.

O preço de uma orquestra
Orquestras custam caro. Mesmo uma sinfônica de médio porte, como a Nacional, possui cerca de 50 artistas em seus quadros – mais os administrativos -, o que significa um valor entre salários e encargos dificilmente pago com bilheteria. Isso sem falar nos custos de formação dos músicos, no preço dos instrumentos, no aluguel e manutenção de teatros e de outros locais de exibição, além de gastos com transporte, hospedagem e seguros. O que mantém as orquestras vivas – e a própria música de concerto – é a idéia de que nem tudo foi feito para dar lucro, algo pouco comum nos dias de hoje. Departamentos de marketing mundo afora tentam associar a imagem de excelência das orquestras às empresas patrocinadoras, estratégia nem sempre eficiente e que tem a desvantagem de criar poucos dos chamados “eventos de mídia”. Aparentemente, não há nada de extraordinário em ouvir de novo um artista que se apresentou na temporada passada. Para contornar a situação, as gravadoras buscam criar fatos notáveis para aquecer o segmento de “clássicos”, com grandes encontros (Os Três Tenores), músicos de visual transgressivo (o punk Nigel Kennedy) ou mais erotizado (como as irmãs teenagers Angela, Maria e Lucia Ahn, da Coréia do Sul, a russa Xenia Akeynikova, com suas miniblusas, e a inglesa nascida em Cingapura Vanessa Mae, que já teve de posar com vestido molhado…).

A crise das orquestras é internacional. No ano passado, a Sinfônica de Boston – certamente uma das melhores do mundo – procurava contornar um déficit de US$ 1,4 milhão, a despeito de seu budget de US$ 77 milhões. As Sinfônicas de Toronto, Winnipeg, Montreal e Edmonton, no Canadá; Chicago, Saint Louis, Honolulu, San Jose e Columbus, nos Estados Unidos; Birmingham, BBC de Londres e Royal de Liverpool, no Reino Unido; além da Filarmônica de Calgary, no Canadá, há anos acenderam a luz vermelha. Nem mesmo a reputação inabalável e um orçamento de US$ 43 milhões livra a Orquestra Filarmônica de Berlim de apertos financeiros. Os números são assustadoramente baixos no Brasil. A Osesp é disparada a mais rica e, com seus 11 mil assinantes, tem uma receita que ultrapassa os R$ 50 milhões. A Orquestra Sinfônica Brasileira chegou aos R$ 16,5 milhões em 2007. Já a Petrobras Pró-Música teve seu orçamento cortado de R$ 9,7 milhões de 2007 para R$ 8 milhões este ano. As outras orquestras escorregam em valores irrisórios.

Mas imaginar que seus problemas sejam apenas financeiros é deixar de perceber que a crise é mais ampla e está inserida na própria idéia de Estado e de arte. Desde o advento do rádio e do disco, a música sinfônica começou a fazer água. Entretanto, persiste algo de muito particular na música apresentada por orquestras, grupos de câmara e solistas, talvez por insistir numa qualidade estética e auditiva que parece estranha ao espectro sonoro da atualidade. Em um universo onde a música é banalizada e onipresente, ouvir uma orquestra é uma experiência única, com sua enorme variedade de instrumentos e seus timbres, ritmos e planos sonoros muito distintos e variações dinâmicas que vão de um sussurro a uma explosão. A orquestra é muito mais do que um museu dos sons ou a representação musical da prosperidade de uma nação. É uma forma de compreensão, uma ética do entendimento, do rigor e da sensibilidade que requer uma prática constante e sem intermediários. A vida é ao vivo. E foi ao vivo que os argentinos assistiram à OSN.

Com apoio do Ministério da Educação e Cultura (MEC), a orquestra apresentou-se em Buenos Aires, na noite fria de uma quinta-feira, 25 de setembro. Como o mítico Teatro Colón continua fechado para reformas, o concerto aconteceu no Teatro Avenida, na Avenida de Mayo. Para a abertura, Ligia Amadio escolheu “Concerto para piano e orquestra em Sol”, de Ravel, com a pianista Linda Bustani. Depois veio a “Suite Estancia”, do compositor argentino Alberto Ginastera e, na seqüência, “Três danças para orquestra”, de Camargo Guarnieri. Como encerramento, as “Bachianas brasileiras nº7”, de Villa-Lobos. As duas mil pessoas que lotaram o teatro aplaudiram e, por três vezes, pediram bis. Ligia voltou e apresentou “Aquarelas de Samba” e “Coleção de Choros”, de Ciro Pereira. Entre as duas, “Oblivion” de Astor Piazzolla, com o primeiro contrabaixista da orquestra tocando bandoneon, para delírio da platéia. Um tremendo sucesso. Depois dessa apresentação a maestrina viajou para o interior da Argentina, convidada para reger a sinfônica de Salta.

O mesmo apoio do MEC vai levar a Orquestra Sinfônica a Paris, em maio próximo, para os festejos dos 50 anos da Maison du Brésil, a Casa do Brasil , cujo prédio foi projetado por Lucio Costa e Le Corbusier. Ligia Amadio está programando “Concerto para a mão esquerda”, de Ravel, e a “Sagração da Primavera”, de Stravinsky, para o evento.


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