Arquivos e pesquisa de documentos nem sempre acessíveis têm vindo à tona, nos últimos anos, graças à democratização da informação e de ciclos aparentemente democráticos. Graças à convivência entre diferentes classes e grupos sociais e de historiadores e pesquisadores, tornou-se possível perceber como a história, muitas vezes, tem narrativas falhas.
Desde os anos 1960, a América Latina foi assolada por ditaduras cuja violência se diferenciou de outros movimentos políticos ou golpes de estado de camarilhas. Na Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai e Brasil houve milhares de presos políticos, dezenas de milhares de desaparecidos e assassinados e uma lógica de prática de poder baseada na intolerância e na repressão a tudo aquilo que não defendesse a propriedade privada, a família tradicional, a defesa da concentração de renda. Tratou-se de implantar um sistema caracterizado pela orgânica e sistemática destruição do livre pensamento, um modelo que parecia ter ruído há muito tempo. A comunicação sobre os fatos era censurada e poucos percebiam o que ocorria em volta.
Cinquenta anos depois desse cenário lamentável, nos restam depoimentos e documentos. Apenas a luz da “lembrança de que aquilo existiu”.
Na edição de comemoração dos seus cinco anos, por exemplo, Brasileiros publicou um longo artigo do jornalista Wagner William contendo documentos sobre a Operação Condor, uma ação clandestina que uniu militares do Cone Sul para perseguir, capturar e eliminar dissidentes políticos. Várias provas foram, então, apresentadas, uma delas pelo presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke: o informe 338, de 19 de dezembro de 1970, do Adido do Exército à Embaixada do Brasil na Argentina, protocolado na Agência Central do Serviço Nacional de Informações com o número 001061, 20 de janeiro de 1971. Esse documento, relata o sequestro, em Buenos Aires, de Jefferson Cardim de Alencar Osório, militar brasileiro exilado no Uruguai, odiado pela velha guarda da ditadura brasileira.
Documentos e arquivos são temáticas de espaço por todo o mundo. Em Istambul, na Turquia, por exemplo, a instituição cultural Salt Galata foi criada em 2011, com o objetivo de pesquisar e arquivar documentos sobre a cultura, história, política e a arquitetura do império otomano e da Turquia. Parte fundamental do trabalho é focado no levantamento de documentos e depoimentos sobre o extermínio dos armênios em 1915. O material serve de base para exposições, debates e programas de comunicação. No Líbano, o Atlas Group, fundado em 1999 pelo artista Walid Raad, busca localizar, preservar, estudar e produzir material audiovisual, literatura e outros artefatos vinculados à história do país.
De certa forma, grupos como esse seguem o que filósofos e historiadores como Foucault e Agamben defendem: o contemporâneo não existe. Que o acesso real ao presente é uma indagação sobre o passado, e que a chave para a compreensão é o exercício de uma espécie de “arqueologia” a partir das interrogações que o presente projeta no passado. Essa tem sido uma metodologia que inspira especialistas de diferentes áreas do pensamento.
A artista chilena Voluspa Jarpa, nascida em 1971 em Rancagua, desenvolve há anos uma pesquisa baseada no tratamento e uso de arquivos como fonte estética, produtora de uma nova realidade, como se viu na Bienal de São Paulo, há dois anos. Atualmente no Malba – Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires, com curadoria de Agustín Péres Rubio, diretor criativo do museu, a mostra Em Nuestra Pequeña Región de por Acá reúne vários trabalhos criados a partir de documentos do Serviço de Inteligência dos EUA, no período entre 1948 e 1994, centrados na figura de 47 líderes latino-americanos que ocuparam lugares determinantes em seus países e que foram assassinados ou desapareceram em circunstâncias não esclarecidas. Na opinião de Péres Rubio, na obra de Jarpa o ato de investigação e o ato artístico são um só. A história fala através das peças.
A rigor, num momento em que se convive com uma guinada social e política obscurantista, o esfacelamento dos partidos de esquerda e dos movimentos democráticos, uma guinada a comportamentos fascistoides, mergulhar nos documentos, na história política e revelar a memória entrelaçando diversas áreas do conhecimento pode nos proporcionar uma pausa para reflexão.
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