Tabatinga: Viagem à fronteira do Brasil com a Colômbia

O destino é a Amazônia. Contudo, entre o caminho que pavimenta a estrada que leva Petrópolis, no Rio de Janeiro, a Tabatinga, no Amazonas, uma trilha de surpresas. A oportunidade marcou o fim de um jejum de dez anos sem uma viagem que merecesse a classificação. A excitação era, portanto, grande. A alimentá-la, outros motivos que convergiam para um mesmo ponto: a visita ao filho que se transferira para Tabatinga.

A saudade talvez seja o mais eficiente combustível para se vencer obstáculos como tempo e prazos a cumprir, para cobrir a extensão de boa parte do território nacional, e, comparativamente, de muitos países europeus, para rever o filho emprestado ao Exército brasileiro – ao lado de 15 outros médicos de distintas partes do Brasil – como clínico no Hospital de Tabatinga, um dos dois hospitais da rede militar abertos à população civil, ambos na Amazônia. Além das 60 horas semanais individualmente trabalhadas no hospital, boa parte ainda se desdobra atendendo no ambulatório de Tabatinga, também se dedicando a trabalhos voluntários com agentes de saúde em uma aldeia Umariaçu. Um dos médicos, Bernardo Wittlin, oferece informações e impressões frescas em seu http:cronicasdopirarucu.blogspot.com.

A expedição
Viagens e estradas exercem sobre mim estranho magnetismo e fascínio, com direito a todas as aventuras reais e imaginárias que uma estrada pode implicar. A Amazônia era por si só um universo quase que de fábulas e criaturas e seres de outra natureza que habitavam minha imaginação. Esse fascínio se desdobra em uma grande curiosidade em mapear o continente sul-americano, para mim um reservatório de referências culturais, históricas, gastronômicas, mais próximas da nossa realidade que as incensadas e distantes terras de um mundo que, apesar do seu legado, me parece de fato envelhecido. Essa viagem era a minha fome com muita vontade de comer. O Brasil era o primeiro e natural destino a ocupar o topo das preferências. Rio-Manaus-Tabatinga, com a última perna da viagem, Manaus-Tabatinga, mimando todo o espírito aventureiro, pois seria feita em um barquinho que em nada deveria ao Harrison Ford em uma de suas aventuras, em cerca de sete dias Rio Amazonas acima, satisfazendo toda a sede por penetrar no Brasil profundo. Contudo, o desejo de navegar por águas brasileiras naufragou antes de nelas sequer chegar: o preço das passagens aéreas estava por demais inibidor. Com isso, Rio-Manaus-Tabatinga ficou a ver navios, assumindo a cena principal o plano alternativo, uma descoberta doméstica via internet, ignorada pelos agentes de turismo: Rio-Bogotá pela Copa Airlines colombiana, onde meu filho e eu nos encontramos. Passamos o final de semana na capital colombiana e seguimos para Letícia, na Colômbia e coirmã de Tabatinga, pela proximidade com o município brasileiro. Lá chegamos pela Aerorepublica, a bordo de um avião confortável e espaçoso, uma raridade em se tratando de aeronaves, que suscita minha curiosidade. Sua procedência: Embraer. Estico as pernas e a alma, feliz.
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A surpreendente Colômbia
Mergulhamos em Bogotá. Uma cidade sem louras platinadas, sem música americana a tocar nas rádios e raros mendigos ou moradores de rua. Em quatro dias, apenas três, e uma pessoa que tinha a rua como morada. Um número extremamente modesto quando se vem do Rio de Janeiro. Caminhamos por toda parte a pé e de ônibus. A frota bogotana possui uma variedade que colore alegremente a cena urbana. Grandes, médios e pequenos, velhos e modernos, com alguns simpaticamente ornamentados à moda indiana. Nos misturamos à população local, aos torcedores no “El Campin” – o Maracanã colombiano, onde mulheres, crianças, executivos e estudantes, indistintamente, gritam, sofrem e empurram a seleção dos “Millionarios” adiante -, e nos restaurantes populares sempre cheios de locais. Comer fora é definitivamente um dos programas preferidos. Os pequenos restaurantes e cafés estão sempre repletos.

Uma constatação inequívoca logo se oferece: não há diferenças marcantes no campo socioeconômico. Algumas idas aos supermercados comprovam a impressão. Os produtos e toda a atmosfera devolviam duas informações básicas: que o consumidor médio colombiano tem mais poder aquisitivo que o seu equivalente brasileiro e que o primeiro era mais exigente e, consequentemente, mais bem tratado pela empresa que sua contraparte vizinha.

Pela primeira vez fora do território nacional a menção da palavra Brasil produz uma reação outra que as tradicionais samba, mulatas e Pelé: Jaime Lerner, Fluminense e Flamengo, estas últimas uma provocação intencional depois de revelarmos sermos flamenguistas. Ao que tudo indica nossos vizinhos estão não só com o dever de casa totalmente em dia, como também incorporaram uma solução brasileira para sua intrincada malha de transportes urbanos: o sistema de transbordo criado por Jaime Lerner em Curitiba, que corta a cidade em dois grandes eixos. A cidade de calçadas largas aponta para um urbanismo que privilegiou, sobretudo, o fator humano. As avenidas amplas me evocam o escritor João Paulo Cuenca e sua opção por andar a pé, ecoando sua indignação contra as autoridades cariocas que paulatinamente foram espremendo os pedestres em estreitas faixas, privilegiando automóveis.

Bogotá é limpa, organizada e conta com uma polícia presente, polida e não intimidadora. As vias abertas da cidade de 7,5 milhões de habitantes, terceira maior metrópole da América Latina depois de São Paulo e Buenos Aires, revelam, acima de tudo, que a tríade corrupção, violência e drogas não é o destino aparentemente inexorável dos grandes centros urbanos sul-americanos. Com determinação e muito trabalho, naturalmente, além de medidas sensatas fundamentadas no saneamento da polícia, reforço nos sistemas de educação e saúde, Enrique Peñaloza iniciou um processo de reestruturação hoje administrado por seu sucessor, Samuel Moreno Rojas, provando que estes não são males sem cura.

Tabatinga, um mundo fronteiriço
Aterrissar em Letícia é voltar no tempo. As antigas rodoviárias mineiras, frequentes no diário de bordo familiar ao longo de décadas, voltam com força nas imagens ingênuas que ilustram o aeroporto. Araras, cobras e onças selvagens saltam em pinturas vívidas das paredes e nos recebem, como se fazendo troça da voz que perco momentaneamente diante dos 34 graus ao descer na pista, depois dos 12 graus da montanhosa Bogotá.

Chegamos, finalmente, seguindo de carro do aeroporto em Letícia, até a casa de Pedro e Gabriel Barcelos, médico com quem divide a casa e o trabalho, em Tabatinga. A distância que separa a colombiana Letícia da brasileira Tabatinga poderia facilmente ser percorrida a pé se não fossem as malas.

Ali tudo que havíamos imaginado ficaria exatamente nesse território, no da imaginação. Nada se confirmaria. Nem o calor e chuva excessivos, tampouco mosquitos gigantescos e assassinos e a visão de uma floresta densa, pouco convidativa, cujos braços se curvariam próximos e ameaçadores. A visão da floresta seria apenas do avião, um oceano verde, com clareiras visíveis, aqui e acolá.

Tabatinga é muito urbana, e entre seus 49 mil habitantes, 25 mil possuem motocicletas. Possivelmente a cidade brasileira com maior número de motos e a única onde o veículo é também um coletivo, transportando famílias, crianças e até bebês.

O colorido é intenso, tanto da mata, quanto das casas, predominantemente de madeira. Pequenas, simples e quase sempre com simpáticas varandas e redes. Porém, mazelas de outras cidades brasileiras aqui se repetem: não há sistema de esgoto, somente valas a céu aberto, e serviços básicos de coleta de lixo sugerem uma estrutura municipal ausente. As lixeiras transbordam. As eleições rendem aos moradores algumas ruas asfaltadas por candidatos às vésperas do pleito eleitoral, sedentos por votos.

Tabatinga é o epicentro de uma região (o noroeste amazônico) caracterizada pela diversidade sociocultural, informa a antropóloga Elena Welper, que desde 2001 desenvolve trabalhos junto aos índios da região. Sua população urbana local é fruto da miscigenação de amazônicos e migrantes nordestinos, que há algumas décadas abandonaram a floresta. A cidade é hoje um caldeirão de raças, habitada por colombianos, peruanos, índios ticunas e brasileiros de diferentes partes do País. Adicionalmente, é frequentada por índios de diversas etnias (Kulina, Mayoruna, Marubo, Matis, Kanamari, e também por índios colombianos, Witoto, Kokama, entre outros). Ainda hoje há índios vivendo em isolamento, no interior de florestas vizinhas, no município de Atalaia do Norte.

Apesar de praticamente siamesas e unidas territorialmente, Letícia e Tabatinga mantêm suas identidades. Ambas se entendem e se misturam nos bares, restaurantes e comércio, apesar de fiéis às suas línguas nativas. Em Letícia, ordem é uma palavra de ordem. O município é limpo, organizado e seu comércio ostenta lojas com uma variedade que lhe assegura também grande parte da freguesia brasileira. Em qualquer dos países compra-se em ambas as moedas, pesos e reais, no mesmo fôlego. Em Tabatinga, tudo se assemelha a um cenário. Quando se ajustam os óculos, a realidade e suas precariedades se evidenciam. Tabatinga não tem aparentemente economia própria, além do cultivo indígena em pequena escala. Há algumas posições no funcionalismo público, pois o Exército, a Marinha e a Aeronáutica mantêm bases na cidade. Postos estes que incluem uma universidade estadual, um Banco do Brasil, uma Caixa Econômica e um acanhado comércio.

PELA EDUCAÇÃO DOS ÍNDIOS
Antropóloga com formação em etnologia indígena, Elena Welper trabalha desde 2002 com os índios Marubo do Vale do Javari, no município de Atalaia do Norte (AM). Ela começou seu trabalho com a ajuda do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), uma organização não governamental que, na época, iniciava um projeto de educação indígena nas aldeias do médio Rio Ituí.

Brasileiros – Quanto tempo você passou entre os Marubo?
Elena Welper –Minha primeira visita aconteceu em julho de 2002. Desde então foram seis temporadas de campo, com períodos que variaram de um a seis meses de trabalho em aldeias e cursos de formação de professores indígenas, realizados pelo CTI, em Tabatinga.

Brasileiros – Qual era a natureza do seu trabalho?
E.W. –Era de orientação pedagógica dos professores indígenas Marubos da aldeia Rio Novo voltada para a alfabetização em português e elaboração de material didático. Eram profissionais que estavam concluindo os cursos de formação de professores indígenas da Secretaria do Estado de Educação do Amazonas (Seduc) e davam aulas há poucos anos em suas próprias comunidades. A minha ida para lá atendeu a uma demanda dessa comunidade que pediu um professor “de longe” para ensinar português e matemática. Eles já estavam alfabetizados em sua língua.

Brasileiros – Qual foi a sua maior dificuldade?

E.W. –Nos dois primeiros anos, foi em relação à continuidade das atividades. A primeira temporada, com duração prevista de seis meses, foi interrompida logo após o primeiro mês devido à morte de um aluno, Amadeus, de apenas 9 anos, vítima de hepatite B e D. Ele era a quarta vítima dessa doença, apenas nessa aldeia, e infelizmente não foi a última. Oito meses depois, outro jovem morreu da mesma maneira traumática. Essa morte precipitou o abandono da aldeia, e as atividades na escola foram novamente interrompidas.Brasileiros –Qual o tamanho dessa aldeia?
E.W. –Quando cheguei, a aldeia Rio Novo tinha cerca de 90 pessoas. Hoje, são pouco mais de 60 habitantes.

Brasileiros –Há algo sendo feito no sentido de melhorar esse quadro?
E.W. –Desde que foi constatada a contaminação por hepatite B e D na população indígena do Vale do Javari, em 2002, muitas ações e missões emergenciais, incluindo sorologias e exames clínicos, foram feitas, mas infelizmente não houve nenhum progresso. A assistência à saúde continua insatisfatória, e, num certo sentido, inexistente, pois além da hepatite B e D, a população indígena do Vale vem sofrendo anualmente com epidemias de malária, tuberculose, desnutrição infantil e leishmaniose. Para piorar a situação, há o uso indiscriminado do paracetamol, um medicamento totalmente contraindicado para pessoas com problemas hepáticos.

Brasileiros – Alguns médicos que trabalham na região consideram essa situação como um genocídio. Você partilha dessa opinião?
E.W. –Se não um genocídio, é um etnocídio, pois a doença pode a qualquer momento chegar em povos sem contato sistemático com a sociedade, conhecidos como “índios isolados”, que além de pouco numerosos possuem baixíssima imunidade. Em outras palavras, etnias ainda hoje desconhecidas, habitantes da terceira maior área de proteção etno-ambiental do Brasil, podem ser as próximas vítimas.

A vida noturna é palpitante, com bares e restaurantes funcionando de segunda a segunda. Uma situação que faz com que Petrópolis, com seus 350 mil habitantes, pareça um colégio de freiras. No meio da Amazônia? Talvez por isso mesmo. Se isso pode ser parte da verdade, outra é que em nada a noite pode ser comparada, por exemplo, com Copacabana. Até porque o turismo é praticamente inexistente. Mesmo que moças e mulheres por ali tentem desta maneira sua sorte, prostituição não faz parte desta realidade onde a sexualidade é naturalmente manifesta e uma energia sensivelmente presente. O que provavelmente guarde uma relação estreita com o alto índice de gravidez precoce e partos realizados mensalmente no hospital.

Há muitas crianças por toda parte. Claudete é diarista e trabalha para alguns dos médicos. Tem 26 anos e quatro filhos. A mais velha, com 12 anos, cuida dos pequenos enquanto a mãe trabalha. Uma história recorrente. A diferença no seu caso talvez seja a capacidade de enfrentar as adversidades com um sorriso no rosto e muita disposição em aprender, viver e ver os filhos na escola.

Navega-se pelo Rio Amazonas partindo do porto de Letícia, na Colômbia. Um estreito canal conduz barcos e canoas, dependendo do poder aquisitivo dos viajantes, ao rio que levará os passageiros a diferentes destinações, na Amazônia colombiana e brasileira. O rigor no momento da compra das passagens com anotações de nomes e identidades não se repete em nenhum outro momento da viagem. Malas e bagagens viajam como cada um de nós, livres de empecilhos, depois de pagos os tíquetes. Por aquele rio, vasto e caudaloso, nenhum patrulhamento, em 24 horas de navegação. Com sua porosidade natural, o rio é de todos.

FRONTEIRAS DA SAÚDE
Depoimento de Pedro Rocha Pitta, que foi médico do Hospital de Tabatinga
“Estive em Tabatinga por quase um ano, desde que me formei em medicina até dezembro de 2008. Fui em busca de aprimorar minha prática na atenção básica, que não é a ênfase do ensino médico no Brasil hoje. A cidade é essencialmente urbana, mas é cercada por rios e matas – a selva, inóspita, é quase impenetrável. Tem sol e chuva em demasia e é povoada por migrantes nordestinos atraídos pela borracha, por índios brasileiros, peruanos, alguns colombianos e sulistas em empregos públicos temporários, meu caso. A pirâmide etária, com muitas crianças e grávidas e pouquíssimos idosos, mostra um pedaço do Brasil ainda mais atrasado. Trabalhei no único hospital da cidade, o único do alto Solimões. Um hospital administrado pelo Exército e que atende a toda população. Não são poucos os conflitos entre as necessidades de saúde e as prioridades do Exército. Os governos estadual e municipal tampouco assumem a saúde no município, evidenciando uma negligência criminosa. A população sonha em concretizar e efetivar soluções definitivas, como construção de maternidade e hospital civil, e a contratação de um número maior de médicos para atenção primária e especialistas nas áreas críticas.
No hospital, há uma infraestrutura razoável para o atendimento, mas algumas áreas são sobrecarregadas, como a obstetrícia, pediatria, anestesiologia e cirurgia, que contam com apenas um especialista. As cirurgias e as cesarianas são realizadas apenas em urgências. Também não existem métodos de diagnósticos de complexidade, como tomografia computadorizada, nem de alguns recursos laboratoriais relativamente básicos. Há casos bastante graves que necessitam de remoção. Há muitos encaminhamentos para Manaus, mas nem sempre os pacientes podem ir, pela falta, principalmente, de apoio para o longo percurso (mais de 1.000 quilômetros aéreos ou 1.600 quilômetros pelo rio) e pela falta de abrigo ao chegar lá. A atenção básica é exercida por alguns médicos do hospital à tarde, como um segundo emprego, contrariando os princípios do Sistema Único de Saúde
(SUS) em que o médico de família deve estar na unidade básica integralmente. Há casos de médicos estrangeiros sem autorização do Conselho Federal de
Medicina. Pouquíssimos médicos do restante do Brasil querem vir para cá, por desconhecer as situações locais, pela distância, pela absoluta falta de estabilidade, projetos sérios e estruturais a médio e longo prazos e crescimento profissional (se o prefeito perder a eleição ou o profissional exigir melhores condições de trabalho, o emprego está perdido). Algumas diferenças culturais são marcantes, como uma perceptível falta de cuidado e autocuidado, principalmente com as crianças, asprimeiras a manifestarem os sintomas da pobreza e do descaso. Me espantei com a quantidade de mortes evitáveis de crianças por desnutrição, responsabilidade compartilhada pela brutalidade gerada pela miséria das famílias, dos profissionais de saúde que não detectam precocemente essas situações, dos governos invisíveis e inoperantes.
A região é fértil em muitos sentidos, iniciativas consistentes irão dar bons frutos, certamente. Há gente trabalhadora e séria ansiosa por mudanças. Há muito trabalho a fazer, mazelas históricas, complexidade humana, cultural e geográfica, pouquíssimas soluções a curto prazo e muitos horizontes abertos. A proximidade e a vivência de questões que transcendem a saúde trazem reflexões enriquecedoras. Os processos e buscas proporcionam constante aprendizagem. Tenho muito a agradecer às pessoas que acolheram e confiaram no trabalho de quem está começando.”

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