Ela tem uma estrela. Ela tem duas estrelas. Uma na nuca, numa tatuagem acanhada, e outra no nome:
– De onde vem seu nome?
– Tenho sangue indígena, dos índios do Sul mesmo. Bugre. Até onde sei tem dois significados: um é estrela [e por isso ela fez a tatoo]; e o outro é superpomposo [fala mudando de entonação]: “primeiro raio de sol da manhã”, um negócio assim… (risos)
Ela não é estrela – ainda. É atriz. E modelo. E já foi jornalista. E diz que quer ser cantora também. É uma guria, de 25 anos. Aos cinco, jurava que seria cientista. “Maluca”, ressalta. “Cientista maluca.”
Ela é protagonista do novo filme de Beto Brant (co-dirigido por Renato Ciasca), eleito o melhor longa no Festival do Audiovisual de Recife, realizado no final de abril. Em maio, ele estreou em Porto Alegre e em junho chegou às telas de São Paulo e Rio de Janeiro. Chama-se Cão sem Dono e é baseado no romance Até o Dia em que o Cão Morreu, relançado este ano pela Companhia das Letras. O livro é do namorado da atriz-modelo: Daniel Galera, um moço de 27 anos considerado uma das boas revelações entre as letras da nova geração. Ele nasceu em São Paulo e cresceu na capital gaúcha, cidade natal dela. Os dois moram em São Paulo (cada qual no seu teto) poucos anos faz.
A película foi rodada no Sul. Seis semanas de filmagem e dois meses de ensaios. É uma história de amor e abandono. Enxuta. Centrada no relacionamento de um jovem casal de namorados. Ela faz a Marcela. Júlio Andrade é o Ciro. E tem o cão também, Churras.
Ciro não é de muita conversa. Vive sozinho num apê, com seus tragos e baforadas. Não tem telefone, nem computador. Cético, isolado e solitário, relaciona-se basicamente com o porteiro, o cachorro e seus pais – de quem depende financeiramente, pois o canudo do curso de Letras (ele faz bicos como tradutor) recém-terminado não lhe rende nem muita prata, nem muita perspectiva. “Diz tanta coisa sobre a nossa geração”, conta a protagonista.
– Você vê isso na juventude? Indiferença, falta de desejo?
– Essa apatia generalizada, essa preguiça da vida, né? Tudo parece possível, mas ao mesmo tempo não é. Queima a cachola, dá nó nos circuitos.
– Como assim?
– Talvez seja algo que já falaram: uma ressaca do que os nossos pais lutaram, aquela coisa do “eles já fizeram tudo”, a perda de utopias. Mas tem também o bombardeio desordenado de informação. A minha geração sofreu um impacto que ainda tenta absorver, da internet, do celular etc.
– E ao mesmo tempo em que se está conectado com centenas de pessoas existe essa coisa do filme, retratada no Ciro, que é a solidão total…
– Absoluta, ele é a negação dessa geração conectada.
A solidão de Ciro é amenizada com a presença de Marcela, modelo que quer construir uma carreira e planejar o futuro – algo impensável para seu namorado. “Se fizerem uma análise psicológica profunda, talvez descubram que ele sofre de síndrome do pânico, mais um ataque de ansiedade da nossa sociedade”, diz a atriz.
Um jovem casal formado por uma modelo e um tradutor, um cachorro, Porto Alegre de pano de fundo. Pode parecer tudo autobiográfico demais. Mas não é – e isso tanto o tradutor (e escritor) como a modelo (e atriz) já explicaram. Ele não morava sozinho quando escreveu o livro e, formado em Publicidade, nunca havia trabalhado com tradução. Ela, por sua vez, ainda não era modelo. O cachorro, sim, existia. Mas era dos pais dele e se chamava “Boomer”, como aquele do seriado dos anos 1980 transmitido pelo SBT. “A coisa bizarra é que o Boomer, um beagle, morreu pouco depois que o Daniel terminou o livro”, revela a ex-jornalista.
Ela virou modelo somente aos 21 anos – tarde para o ramo. “Vou te dizer que eu não me vejo como ‘A Mulher Bonita’, entendeu?” No colégio, achava-se feia. “Em família, sempre fui ‘a inteligente’ e não ‘a bonita’”, diz. “Comecei a falar com dez meses, ler com três anos, com cinco já conversava como adulta e aos 16 entrei na faculdade.” Guria precoce. Mas só descobriu a própria beleza quando ganhou o título de “Segunda Princesa” num desfile das olimpíadas da escola. Isso aos 15 anos. O mundo dos books e agências entrou na vida dela por conta da insatisfação com o jornalismo – profissão que exerceu durante algum tempo, chegando a trabalhar por três anos na MTV gaúcha – e do conselho de um amigo:
– Por que você não faz uns bicos de modelo? – disse ele.
– Tá louco? Não tenho altura [ela mede 1,70 metro, que é considerado pouco para as passarelas], aparência, 21 anos, já tô velha pra isso – ela retrucou.
– Olha sem preconceito; você pode fazer trabalhos para a área de calçados, que é forte aqui no Sul.
Trinta e cinco
Pois bem. Lá foi ela bater numa agência com a cara, a coragem e os próprios pés – diminutos 35. “‘Bombo’ no setor calçadista gaúcho”, garante, esborrachando-se em gargalhadas. “Faço muito trabalho por causa dos meus pés.”
O debùt no mundo da modelagem, porém, passou longe de catálogos de sandálias, saltos e sapatos. Foi uma turnê de seis meses pela Ásia – três meses na Tailândia, três na China – acertada pela Ford Models. Depois, trabalhou uma temporada em Milão, onde decidiu ser atriz. “Tive um insight.”
– É mesmo? Como foi esse insight?
– Estava nas montanhas, à beira da lareira, vinho, amigos. Totalmente relax.
– E aí teu inconsciente veio à tona e te disse “seja atriz”…
– “Seja atriz” (risos).
A “revelação” se deu no fim de 2004. No ano seguinte, ela aportava em São Paulo. Com o book na mão e matriculada num curso de interpretação. Em paralelo, rolava a história do filme. Ela e Daniel já conheciam Beto que, de início, chamou-a para fazer assistência de direção. Ela só se transformou em Marcela porque foi recrutada para a oficina de atores da Globo. “Fiquei numa encruzilhada entre ir para a Globo, no Rio, e fazer a assistência”, lembra. “Como tinha decidido ser atriz, abri o jogo para a equipe do filme e eles acabaram me convidando para ser a protagonista.”
É a estréia na nova carreira – e isso com apenas quatro meses de aulas de interpretação. Bom começo. Tão bom que lhe rendeu o prêmio de melhor atriz nos festivais de Recife e de Cuiabá.
– Que tal tua primeira atuação?
– Fiz o melhor que pude. Gosto muito do resultado. Mas sei que não posso ter tanta pretensão. Estou começando, as pessoas não me conhecem ainda, né?
É. Mas então está apresentada: Tainá. Tainá Müller dos Santos, modelo, atriz, ex-jornalista e futura cantora (no filme, ela manda muito bem numa versão de Moonshiner, da Cat Power). Para facilitar: apenas “Estrela”.
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