O título desta reportagem faz alusão a Forró Cheiroso, clássico de duplo sentido lançado em 1987 pela forrozeira alagoana Clemilda e o parceiro Miraldo Aragão. Na letra maliciosa, Clemilda recomenda talco no salão “para o forró ficar cheiroso”, mas o antisséptico tem servido para outros fins na Talco Bells. Surgida, despretensiosamente em 2008, a celebração ao soul e ao funk é realizada quinzenalmente. Nesses cinco anos, tem reunido um séquito de jovens que não ignoram a recomendação “Vá ou arrependa-se!”, expressa nos convites divulgados em redes sociais, e se esbaldam de dançar até as 5h, 6h, com o auxílio de dezenas de tubos de talco, gradativamente esvaziados na pista de dança.
No Brasil, os bailes movidos aos dois gêneros de matrizes negras e irresistível apelo dançante fizeram sucesso na primeira metade dos anos 1970 em São Paulo, Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, onde foram impulsionados pelo Black Rio – movimento surgido em torno de festas volumétricas, como o Baile da Pesada, dos DJ’s Big Boy e Ademir Lemos, que teve mais de 400 edições e chegou a reunir, em pontos itinerantes das zonas sul e norte, uma legião de quase 20 mil soulbrothers.
Egressos da cultura norte-americana, os bailes movidos a soul e funk – cujo principal expoente foi desde o início dos anos 1960 James Brown – também viraram febre na Inglaterra, em um movimento jovem que ficou conhecido por lá como Northern Soul. O termo foi cunhado, em 1968, pelo jornalista musical Dave Godin, que também era dono da loja de discos Soul City, em Convent Garden. Foi ele quem percebeu que seus clientes do norte eram antenados em vertentes mais modernas do soul, produzido pelos artistas americanos.
Capitulados pela febre da Disco Music no segundo quinquênio dos anos 1970, os bailes definharam, restando pequenos núcleos de resistência. Mas desde o início dos anos 2000 vêm sendo alvo de crescente interesse por jovens americanos, europeus e também brasileiros, como Elohim Barros, os irmãos Filipe e Guilherme Luna, Bruno Torturra e Bianca Bertolaccini, os cinco amigos que fazem da Talco Bells uma das festas mais dançantes de São Paulo.
Bruno e Filipe, que são jornalistas, e Elohim, diretor de arte, conheceram-se quando eram funcionários da revista Trip. As afinidades musicais também aproximaram Guilherme, pernambucano, como o irmão Filipe, que veio de Recife com toda a família para viver em São Paulo em 1997. Dez anos mais tarde, a convite do amigo e jornalista Ramiro Zwetsch, do coletivo Radiola Urbana, os irmãos iniciaram a carreira de DJ’s, tocando esporadicamente em uma festa realizada no clube Sarajevo, na Rua Augusta.
Amadores, mas apaixonados pelo hobby, Bruno e Elohim discotecavam esporadicamente em festas de amigos. No mesmo ano, pautados pela Trip, Bruno e Filipe foram para Nova York entrevistar o grupo de rap Beastie Boys. Convidados pela fotógrafa que registrou a entrevista, eles foram a uma festa na casa de um amigo dela, onde a discotecagem era de soul e funk. Para a surpresa de ambos, um dos convidados, em dado momento, sacou do bolso uma embalagem de talco e aplicou doses generosas no piso da casa, para impulsionar a dança. Bruno e Filipe já sabiam da prática nos antigos bailes americanos e de Northern Soul. Foi, então, que fecharam o conceito da Talco Bells: soul, funk e muito talco na pista.
O embrião da festa foi o primeiro evento realizado em 2007, sem a menor pretensão de continuidade. “Tínhamos muitos discos, conhecíamos artistas obscuros e não escutávamos esse tipo de som na balada. Quando muito, duas ou três músicas em um set de hip-hop, mas não havia festas fechadas nesse período da soulmusic e do funk. Filipe descolou o lugar para uma primeira festa. Reunimos mais de 350 pessoas e, lógico, houve muito talco.”
Até o início de 2008, outras três festas foram realizadas com periodicidade irregular, mas, ao entrar um quinto elemento na equipe, ela passou a ser realizada quinzenalmente, além de reunir um número cada vez maior de seguidores. Hostess da extinta Loveland, no bairro paulistano do Itaim, a amiga Bianca Bertolaccini, convidou os quatro DJ’s para fazerem uma edição da Talco Bells na casa noturna, onde ela também produzia a festa De Salto Alto. Meses depois, por intermédio de Bianca, que conhecia o locatário, Francisco Mafra Filho, conseguiram levar a Talco Bells ao mítico – e, então, decadente – Hotel Cambridge, no centro, que em seus dias de glória chegou a abrigar o cantor Nat King Cole.
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No extinto hotel, que depois seria desapropriado para integrar um plano de habitação da Prefeitura de São Paulo, a Talco Bells chegou a reunir 1.800 pessoas. “O Cambridge era pitoresco e tudo funcionava perfeitamente. Os meninos discotecavam no hall onde ficavam os antigos atendentes do hotel e, como o piso era de mármore, a pista virava um sabão. Felizmente, ninguém nunca caiu ou se machucou na festa”, diz Bianca. Para Filipe, uma feliz coincidência potencializaria o interesse do público jovem para a festa. “Acho que algo que contribuiu para despertar novamente essa procura pela soulmusic foi o sucesso que Amy Winehouse começou a fazer em 2008, depois do lançamento de Back to Black.” Não por acaso, Amy é das raras intérpretes e compositoras a produzir obras neste século, que integram o seleto repertório composto por clássicos de Sam & Dave, Wilson Picket, Dinah Washington, Marvin Gaye, Aretha Franklin, Marva Withney, Otis Redding, Funkadelic, The Meters, The JB’s (o mítico grupo de James Brown), entre tantos outros gigantes da música negra americana dos anos 1960 e 70.
Frequentador assíduo da Talco Bells desde os dias de Cambridge, o diretor de arte Anderson Lopes atribui ao ineditismo da proposta o maior apelo da festa. “Comecei a ouvir soul com Otis Redding e coletâneas de Northern Soul. Quando descobri que havia uma festa em São Paulo que rolava só esse tipo de música, comecei a frequentar. A festa é diferente de outros lugares, assim como o Astronete (outro tradicional clube da região central) que, às sextas, têm um espaço dedicado à música negra dos 1960 e 70. Mas não são maioria.”
Para a fotógrafa Rafaela Netto (cujos pés, calçados em um par de sapatos Oxford dourados, aparecem na foto de abertura desta reportagem), as noites no Cambridge também eram garantia de diversão, mas a festa mudaria de perfil, logo depois: “Minha primeira ida a Talco Bells foi na noite em que a festa completou um ano. Um amigo indicou, de última hora, e acabei indo sozinha, meio com medo de ficar entediada. Muito pelo contrário! Eu me diverti muito, conheci pessoas e foi a primeira de inúmeras idas solo. No Cambridge, a maior parte do público era de pessoas que iam à festa pela música e não só pela paquera. Quando a festa foi para a Vila Madalena, talvez por atrair um público diferente, tudo mudou. A festa tornou-se um lugar de azaração, para ver e ser visto. Ir sozinha deixou de ser um hábito.”
Com a determinação de desocupação do Hotel Cambridge pela prefeitura, a festa migrou, no final de 2011, para a Vila Madalena, boêmio bairro da zona oeste, passando a ser acolhida pelo Estúdio Emme, casa noturna de médio porte que garantiu a equipe da Talco Bells condições similares de parceria: “No Emme, teríamos a mesma infraestrutura, os mesmos cuidados com a segurança dos frequentadores e também as mesmas condições financeiras. Somos como uma banda e é caro produzir a festa, mas o retorno é certo. Temos um séquito e uma fórmula garantida. Sempre pensei nessa logística de parceria, pois não precisamos nos preocupar com alvará, brigada de incêndio, estrutura de segurança ou cerveja gelada. Nosso lance é tocar e garantir a diversão das pessoas”, explica Bianca. Depois de uma proposta irrecusável, os cinco soulbrothers da Talco Bells migraram novamente para o centro da cidade e, desde janeiro deste ano, a festa é realizada no charmoso Cine Joia, extinto cinema do bairro oriental da Liberdade, que foi reaberto em 2011 e tem sido palco de dezenas de shows. Como previsto, a festa continua sendo um sucesso e nas últimas edições reuniu um público médio de 800 a 900 pessoas.
Rio, BH e Curitiba: o soul invade as capitais
“O encontro no Quarteirão do Soul é um momento de exceção na vida cotidiana. O vestuário, sua composição aliada à dança faz com que os dançarinos construam um personagem distinto do papel que desempenham no dia a dia. Lá, as histórias que os trajes contam são de orgulho e altivez.” Este excerto integra a tese de doutorado Identidade e Resistência do Urbano: O Quarteirão do Soul em Belo Horizonte. O estudo foi defendido, em 2008, pela geógrafa Rita Ribeiro, na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Por quatro anos, Rita fez uma imersão nos antecedentes históricos do objeto de sua tese, um culto ao soul realizado desde 2004, na região central de Belo Horizonte. Diferentemente da Talco Bells, que é produzida por e para jovens, a festa da capital mineira foi criada pela velha guarda do soul de BH. Teve início quando Geraldo Antônio dos Santos, o DJ Geraldinho, também lavador de carros no quarteirão, colocou para tocar no toca-fitas da Caravan do amigo Valdeci, o DJ Abelha, uma coletânea de soul, enquanto dava um trato no carrão. Os decibéis dançantes instigaram Geraldinho, Abelha e mais cinco amigos a atrair ao local outros pares de velha guarda. Até o fim de 2012, a festa tomou a esquina das ruas Goitacazes, São Paulo e Curitiba. Hoje, o Quarteirão do Soul acontece entre as vizinhas ruas Santa Catarina, Amazonas e Tupis, aos sábados, das 14 às 22 horas. Além dos brothers and sisters do passado, a festa também reúne uma multidão de jovens. No Rio de Janeiro, outra festa com DNA dos anos 1970 acontece desde 2005. É a Soul Baby Soul, liderada pelos DJ’s Lucio Branco e Leandro Petersen, que é filho do saudoso DJ e radialista Big Boy. Morto em 1977 quando o menino era recém-nascido, Big Boy deixou como herança um valioso acervo de milhares de LP’s e compactos para o filho. Autor de bordões adotados por seus seguidores, como “Hello, crazy people!”, Big Boy comandava ao lado do amigo Ademir Lemos o Baile da Pesada, que teve início no Canecão, onde reunia quase cinco mil pessoas – número triplicado depois que a festa migrou para a Zona Norte carioca em bailes itinerantes. A Soul Baby Soul é mensal e também circula em casas noturnas da região central da cidade, como o Teatro Odisseia e o Cabaret Kalesa. Além de Lucio e Leandro, a festa ainda conta com a canja de veteranos, como os DJ’s Sir Dema, do Clube do Soul, e Mário Henrique “Peixinho”, do Baile da Pesada. Há três anos, os curitibanos também têm caído na dança, com a Só o Soul Salva. Não por acaso, a festa adotou uma logomarca que replica o punho cerrado estampado no brasão do movimento Northern Soul – um dos DJ’s residentes, Chris Kelly é britânico e especialista no gênero. A festa surgiu em 2010, por iniciativa da produtora e DJ Isa Todt. Após uma temporada em São Paulo, carente de festas como a Shakesville do clube Astronete, Isa decidiu organizar a Só o Soul Salva. A festa itinerante de nome redentor atualmente é realizada a cada dois meses no clube Vox. Reúne cerca de 600 jovens e, como na Talco Bells, o ritual dançante também é marcado por borrifadas de talco na pista. |
Obcecado por compactos e, entre os quatro DJ’s, o que mais toca temas instrumentais e canções de funk, Elohim defende sua teoria sobre a receita de sucesso da Talco Bells: “O soul e o funk são absolutamente dançantes e a festa não tem essa coisa do carão do hip-hop, de todos dançarem coreografados, os caras com aquela pompa e as meninas forçando movimentos sensuais. O talco na pista ajuda a performance dos mais inibidos. Sabe aquele cara que fica no canto, dá uma chacoalhada no ombro? Ele se sente com ‘alvará’ para a dança, o talco vira desculpa: ‘Pô, deslizei e aconteceu!’”. A opinião de Elohim é compartilhada pelas Talco Girls Maria Fernanda e Verônica, as belas garotas incumbidas de espalhar talco pela pista: “Incrível como as pessoas se soltam, algo bonito de ver. O talco é um show à parte. Quem já conhece a liturgia, espera o momento. Quem não fica surpreso e adora a ideia”, diz Maria Fernanda. Para Veronica, a fórmula “talco e música dançante” é tão infalível que chega a revelar aspirantes a Michael Jackson: “A festa é para quem preza música de qualidade e notamos que o público fica empolgado com o ritual do talco, que possibilita deslizadas e até moonwalkings no salão. É uma festa fina, de clima agradável e bom gosto musical”.
Mas nem tudo é diversão. Fazer acontecer regularmente uma festa do porte da Talco Bells, com equipe tão enxuta, demanda divisão de tarefas e trabalho extenuante. Especialmente para Guilherme, que tem uma grade mais formal de trabalho – ele é advogado e o único dos cinco que é pai. “Tenho um filho de 2 anos e meio, Domenico, e o compromisso regular é um tanto complicado, mas é sempre um prazer tocar na festa. Um hobby dos mais legais. Pesquiso muito e, a cada semana, procuro levar algo novo”, afirma, reiterando prática comum entre os outros três DJ’s, que vivem em constante pesquisa para descobrir novas pérolas musicais. Os frequentadores e seus pés dançantes agradecem.
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