Se você mora em São Paulo e ainda não viu, corre que dá tempo: às três da tarde desta quarta-feira, vai passar de novo, no Cine Livraria Cultura do Conjunto Nacional, o documentário “Tancredo, a Travessia”, de Silvio Tendler, uma verdadeira aula da história recente do Brasil.
Nada melhor, em meio ao baixo astral do noticiário, do que ter uma boa história para contar, e poder falar de um primoroso trabalho do nosso cinema produzido por um diretor que se dedica com garra e gosto ao que faz.
Tendler começou este trabalho em 1985 quando foi a Brasília para registrar a posse que não houve de Tancredo Neves na Presidência da República. Exatos 26 anos depois, encontrei-o em pé na saída do cinema, recebendo os cumprimentos após a exibição do filme no festival “É Tudo Verdade”, em São Paulo, na noite de segunda-feira.
Com sua inseparável bengala e o sorriso maroto de menino que cresceu sem ficar bobo, o mesmo diretor dos filmes sobre JK e Jango, duas obras primas do cinema documental brasileiro, agora completa sua trilogia com Tancredo, contando a história política do país por meio dos seus principais personagens, desde Getúlio Vargas chegando ao poder em 1930.
No filme de Tendler, vemos passar meio século de Brasil em pouco menos de duas horas – nos momentos decisivos, com o mineiro Tancredo de Almeida Neves sempre presente.
Ministro da Justiça de Vargas quando ele se suicidou, em 1954, e primeiro-ministro de Jango, o presidente deposto pelos militares dez anos depois, Tancredo foi eleito de forma indireta, em 1985, para fazer a transição entre a ditadura e a democracia. A trajetória ao mesmo tempo vitoriosa e trágica de Tancredo simboliza um modo brasileiro de fazer política.
Reclamaram a Silvio Tendler que estão faltando críticas a Tancredo nas dezenas de depoimentos de políticos e jornalistas colhidos pelo diretor, entre eles o do autor deste Balaio.
Nem por isso o filme pode ser chamado de chapa-branca, pois não se propõe a fazer nenhum juízo de valor sobre o personagem central, limitando-se a contar o que aconteceu como nas boas reportagens.
O neto de Tancredo e seu secretário particular na época, o hoje senador Aécio Neves, aparece em vários momentos do filme pelo bom e simples motivo de que estava a seu lado nos momentos decisivos entre a vitória, a posse frustrada e a morte.
Ainda bem que o filme não estreou em março do ano passado, como estava previsto, quando foi celebrado o centenário de nascimento de Tancredo, porque certamente Tendler seria acusado de fazer campanha para Aécio, como aconteceu com o filme de Fábio Barreto sobre a vida de Lula.
Conciliador e moderado ao extremo, com perdão pelo contraditório, Tancredo o tempo todo foi um personagem fiel a si mesmo para provar que a política é a arte do possível em que não se deve apressar o rio que corre para o mar.
Tancredo levou tão a sério os cuidados, evitando as ondas grandes e os tubarões, que acabou morrendo na praia ao final da sua longa agonia, que começou na véspera da posse no Hospital da Base em Brasília, passou pelo Incor de São Paulo e terminou no cemitério de São João del Rei, onde nasceu, levando multidões às ruas.
Eu acompanhei esta saga nas três cidades como repórter da Folha de S. Paulo e posso dar o testemunho de que meu amigo Silvio Tendler, com quem trabalhei na campanha de Lula, em 1994, foi absolutamente fiel aos fatos. O filme informa e comove ao mesmo tempo, na medida certa.
Na questão mais polêmica da caminhada de Tancredo rumo ao poder, a sua eleição indireta pelo Colégio Eleitoral após a derrota da Emenda Dante de Oliveira, que defendia as eleições diretas, em 1984, o filme deixa claro o que de fato ocorreu, desde o primeiro comício: Ulysses Guimarães seria o candidato de consenso se o povo pudesse eleger seu presidente e, Tancredo, era o “plano B” para disputar no Colégio Eleitoral. Os dois sabiam disso, mas é claro que não admitiam em público.
“Tancredo, a Travessia” é um documentário para ser mostrado nas escolas, claro, mas mesmo quem viveu aquela época deveria ver este filme para relembrar alguns episódios e evitar que os mesmos erros se repitam.
Por exemplo, os dirigentes e parlamentares do PT, que se recusaram a votar em Tancredo, em 1985, e depois recusaram o apoio de Ulysses, no segundo turno da campanha de Lula em 1989. A gente sempre sai destes filmes achando que a história poderia ter sido diferente
O festival “É tudo Verdade” vai até domingo. São ao todo 92 filmes, produzidos em 26 países, sendo 18 deles nacionais. Não percam.
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