Na última quarta-feira (5.11) quatro integrantes do Teat(r)o Oficina, tradicional companhia paulistana, estiveram no Fórum Criminal da Barra Funda, zona Oeste de São Paulo, para prestar esclarecimentos sobre uma suposta “incitação ao crime”, cometida em apresentação de 2012, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Curiosamente, a denúncia não foi feita por docentes da universidade, nem por algum aluno que tenha assistido a peça ao vivo, mas pelo padre goiano Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente do Grupo Pró-Vida, baseado em Anápolis.
A partir de um vídeo publicado no Youtube, visto pelo padre dois anos depois da montagem do espetáculo, mais precisamente em julho último, o sacerdote decidiu fazer uma denúncia ao Ministério Público de São Paulo, que condenou a produtora Ana Rúbia, os atores Tony Reis e Mariano Mattos Martins, e Zé Celso a pagarem, cada um deles, um salário mínimo como pena alternativa.
A decisão do Ministério Público baseia-se na acusação do padre de que os envolvidos usaram a arte para incitar o crime ao cometer agressões a um boneco usado em cena. Para Ana Rúbia, em posicionamento consensual entre os quatro integrantes “a arte não mascara a realidade, a desnuda”. Contrários à interpretação do padre e do Ministério Público, eles recusam-se a acatar a pena e o imbróglio parece estar longe de ter fim.
À seguir, um retrospecto dos fatos que culminaram nos desdobramentos recentes.
A Greve da PUC-SP
Em novembro de 2012, na contramão da tradição democrática construída pela PUC-SP, o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, autoridade máxima da universidade, nomeou ao cargo de reitora a professora Anna Cintra, candidata menos votada pela comunidade acadêmica. No começo dos anos 1980, a PUC-SP construiu um processo de votação em que professores, funcionários e alunos tem a mesma força. Na chamada “Democracia Puquiana” todos podem votar diretamente para reitor, com 33,3% de representatividade por categoria. No entanto, o voto majoritário não foi suficiente para eleger Dirceu de Mello, professor da faculdade de Direito, que tentava a reeleição. Exercendo sua autoridade e o direito ao voto decisivo, a despeito da vontade da maioria, o arcebispo empossou a candidata Anna Cintra.
Com a indiferença de Dom Odilo à vontade da maioria, os alunos iniciaram uma greve que perdurou por mais de um mês, até o final daquele ano letivo. Apesar de ter articulado a acadêmia em torno de uma movimentação cultural forte, a greve perdeu força e Anna Cintra segue como reitora até o presente momento. Foi nesse período de movimentação política, entre debates, manifestações, reuniões e festas, que o diretor do Teat(r)o Oficina, José Celso Martinez Corrêa, hoje com 77 anos, foi convidado para apresentar um espetáculo teatral na PUC-SP.
O espetáculo
Baseado na obra do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht (1989 – 1956), a peça Acordes é carregada de um humor explosivo e personagens de forte simbolismo, como uma ferrenha defensora de dogmas católicos seculares. No trecho de Acordes montado na PUC, Zé Celso, Tony Reis e Mariano Mattos Martins contracenaram com um boneco de quase 3m de altura, chamado pelo diretor de “Dona Benta”.
Antes de chegar à PUC, Acordes estava sendo encenada havia alguns meses na sede do Oficina, no bairro do Bixiga, centro de São Paulo. Alunos e professores da PUC-SP, que haviam visto o espetáculo, decidiram convidar a companhia para apresentar um excerto da peça durante a greve. No dia 28 de novembro de 2012, os quatro integrantes do Oficina e cerca de 200 alunos participaram da encenação, no interior da universidade. Ao ironizar o rigor dos posicionamentos morais e éticos de “Dona Benta”, não tardou para a alegoria ser associada, pela multidão, ao Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, o antecessor do Papa Francisco, famoso por suas posições conservadoras. “Na peça, a cena é um ‘circo de horrores’. Os atores vão provocando o boneco, pra ver se ele tem alguma reação positiva. Como ele não reage ou, quando reage, o faz de uma maneira não participativa, ele vai sendo picotado”, explica Ana Rúbia – de fato, o boneco foi sendo cortado, aos poucos, até ser completamente mutilado, daí a interpretação do padre goiano de “incitação ao crime”.
Segundo Fernando Castelo Branco e Fernanda Carneiro, advogados do Oficina, a entrada do boneco quase foi impedida pelos seguranças da PUC, mas, depois, autorizada. Em julho de 2014, uma ação da reitora Anna Cintra iniciou uma investigação interna, visando a participação de professores da PUC na apresentação de Zé Celso. A apuração foi suspensa, em agosto último, após pressão de alguns setores da comunidade acadêmica.
Presidente do Grupo Pró-Vida, o padre Luiz Carlos Lodi da Cruz defende a luta contra a legalização do aborto, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e outras pautas progressistas. Recentemente, ele escreveu um artigo sobre as eleições, no site do Grupi Pró-Vida, em que a presidenta reeleita Dilma Roussef (PT) aparece como um “grande mal a ser combatido”. Mas engana-se quem acredita que Aécio Neves (PSDB) tenha recebido o tratamento de candidato ideal. Nas palavras do padre, no mesmo artigo: “O adversário de Dilma declara-se contra o aborto, embora não seja um ‘pró-vida de carteirinha’. Debatendo com Eduardo Jorge (PV) em 26 de agosto, em vez de propor a educação para a castidade, Aécio repetiu a velha e equivocada tese de que a anticoncepção preveniria o aborto”.
Segundo Castelo Branco, o advogado do Oficina, a acusação de incitação ao crime não se sustenta. “É um atendado contra a liberdade de expressão e manifestação. É o pensamento de uma situação absolutamente desconsiderada pela própria igreja”. Para Ana Rúbia, o desacato à pena imposta pelo MP é inquestionável para os integrantes do Oficina, inclusive em defesa da liberdade artística como um todo. “Pagar a multa seria, implicitamente, aceitar a culpa. Nós não cometemos nenhum ato passível de crime. Essa posição não é em nome da companhia, é em nome da arte! A arte desnuda a realidade, não serve como máscara.”
Nossa reportagem tentou esclarecer maiores detalhes com o padre goiano, mas a assessoria do Grupo Pró-Vida afirmou que ele não estava no local e que “dificilmente conversaria conosco, pois ele costuma dar entrevistas exclusivamente para órgãos de imprensa religiosos”.
Em março de 2014, na edição 88, publicamos uma entrevista com Zé Celso, na qual foram feitas as fotos que ilustram essa reportagem. Confira a íntegra.
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