Doido é uma espécie de transe. Quando a luz acende, e só então, o espectador percebe que estava a alguns palmos acima do chão, acima da poltrona, a léguas do lugar comum. É uma celebração na qual o ator materializa o sagrado perante os nossos olhos, na forma de palavras – são palavras de Shakespeare, de Fernando Pessoa, de Dante Alighieri, de Antonin Artaud, de Rimbaud, de Bob Dylan, de Ivan Ângelo e dele mesmo (a lista completa é maior). Breves tesouros sobre o amor, sobre o medo e todas as fragilidades que costumam se disfarçar em arrogância. Parte da magia se deve aos textos que Elias escolheu e combinou, com o olhar abrangente e o faro de ator, historicamente um aliado precioso da dramaturgia. Ele não faz cerimônia ao lançar mão do demasiado conhecido – “Ser ou não ser…”, “Que não seja imortal, posto que é chama…” -, nem teme ser incompreendido; ousa dizer em italiano um pequeno trecho da Divina Comédia. Mistura a imponência do clássico com a graça do contemporâneo (magnificamente representada pela crônica de Ivan Ângelo); alterna a fúria, a congestão e a cambalhota numa sucessão imprevisível. Mas tudo isso ainda correria o risco de virar um kit para a ilha deserta se não servisse de matéria-prima para um ator excepcional.
Elias Andreato, que já foi Van Gogh, Oscar Wilde e uma galeria de grandes personagens, dirigiu atores como Paulo Autran e Marília Pêra, é um mestre do tea-tro brasileiro, e cultuado em seu meio mais do que no grande público. Vê-lo em cena nos oferece uma resposta clara para uma pergunta às vezes antipática, outras apenas justa: “Para que serve, afinal, o teatro?”.
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No mundo dos bilhões e trilhões e das façanhas virtuais, Doido restabelece o extraordinário poder que investe um homem sozinho, quando pronuncia sobre o palco as palavras certas. Não é o púlpito de Barack Obama, cercado pelas câmaras e microfones que amplificam cada gesto e palavra para todo o planeta. É o palco de um teatro pequeno, no interior de uma livraria. O ator fala apenas com as pessoas presentes, menos de três centenas, mas o que ele diz e sua figura recortada na escuridão vão se perpetuar em sua memória, em suas retinas. E como ele conhece bem essa alquimia do teatro, sabe que os objetos mais simples transformam-se em símbolos e sínteses, escolheu com cuidado o material que o acompanha. Curva-se respeitosamente perante os itens de uma diminuta bagagem, composta por um barco de papel, um molho de chaves, as engrenagens de uma caixa de música e uma boneca Barbie. E o instante em que os retira de sua mala – que fora dali poderia ser atribuída a um mascate, mas em suas mãos é obviamente de mágico – para dispô-los cuidadosamente sobre a mesa, o único cenário, constitui o prólogo de uma apresentação que vai vibrar com alta voltagem poética. Suas primeiras palavras, uma prece ao senhor dos palcos, de sua autoria, confirmam que ele pisa ali com a reverência de um fiel, mais do que com familiaridade de um habitué. “… E singra minha nau a mar aberto até eu encontrar o meu ponto de luz”, ele pede. Se obteve mesmo proteção especial, foi mais do que merecida.
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