Os passantes jamais poderiam imaginar e nem mesmo os vizinhos eram capazes de desconfiar. Mas aquela casa de fachada discreta da Rua Tristão Gonçalves, a antiga Rua da Vala, na cidade do Crato, interior do Ceará, é habitada por estrelas do cinema, como Vivian Leigh, que viveu Scarlett O’Hara, Rossana Podestà, a intérprete de Helena de Tróia, Jane Frazee, que foi namorada de Roy Rogers, e muitas outras atrizes internacionais. Pura ficção? Absolutamente. Todas estas personagens vivem ali, incorporadas em uma só pessoa: Telma da Rocha Saraiva.
Ainda menina, ao assistir a seus primeiros filmes e ver, folheando as páginas da revista Cena Muda, as fotografias das atrizes do cinema, Telma, encantada, decidiu criar seu próprio roteiro, assumindo a identidade das estrelas e desempenhando todos aqueles papéis ao mesmo tempo. Filha e irmã de fotógrafos, descobriu no “quarto escuro” – o laboratório fotográfico de seu pai – a chance de construir e viver suas fantasias, sem perceber que estava iniciando uma carreira inédita de fotógrafa-pintora.
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Hoje em dia, época de imagens digitais tão efêmeras quanto banais, poucos têm idéia, pelo menos aqueles com menos de 50 anos de idade, de que uma das formas mais difundidas do retrato até algumas décadas atrás foi a da fotopintura, isto é, o retrato preto e branco do cliente ampliado sobre papel e “colorizado” posteriormente.
Esta técnica não significava simplesmente tornar a foto colorida. Seria algo simples demais, não haveria a menor graça – onde estaria a necessária fantasia? Conforme o talento do artista, no caso o fotógrafo-pintor, o retratado ou retratada poderia se tornar quase uma outra pessoa ou pelo menos alguém mais bem-apessoado ou apessoada, livre das inevitáveis rugas e imperfeições da pele, da falta de brilho nos cabelos, das orelhas de abano e até da indesejada papada.
De quebra, era possível inventar acessórios que nunca tivera: gravatas ou écharpes multicoloridas, óculos ray-ban, relógios ou pulseiras reluzentes e muitas outras intervenções mágicas que a arte e a técnica da época permitiam. Ao colorizar fotografias, os fotógrafos-pintores, dando asas às suas fantasias e intuindo às do fotografado, tornavam reais, sobre um pedaço de papel, os desejos impossíveis de cada um.
É verdade que muitas vezes, como hoje acontece com quem exagera nas operações plásticas, o reconhecimento imediato da pessoa ficava dificultado. No entanto, o importante era que o cliente sempre saía satisfeito e pendurava sua fotopintura na parede da sala de visitas.
A primeira fotopintura de Telma Saraiva foi de seu filho, que se viu transformado, repentinamente, em um valente pirata. Em seguida, após ter aprendido muito e se aperfeiçoado na arte e no ofício com seu pai, pressentiu que estava pronta para a missão e mergulhou em seu universo de fantasias. Tomada pelo espírito de uma personagem, entrava no estúdio, vestia-se, penteava-se e maquiava-se de acordo, iluminava-se com uma luz de Hollywood, acionava o retardador de disparo de sua câmera e, mirando-se em um espelho estrategicamente posicionado, assumia a pose e a alma da estrela de cinema do dia.
Após o clique, revelado o filme e ampliada a fotografia, sentava-se diante do cavalete e aí iniciava seu trabalho de pintora, sacramentando a transfiguração. Após dois dias de intensa concentração e pinceladas na face, nos lábios e cabelos, eliminando e acrescentando detalhes, ei-la, a Telma Saraiva, para quem somente a vida real nunca bastou, transformada em estrela de cinema.
No entanto, enganam-se aqueles que imaginaram que estes passes de mágica bastariam. Para completar seu universo de fantasias, Telma precisava de um ambiente adequado e tratou de fazer de sua casa um cenário onde todas aquelas estrelas de cinema se sentissem à vontade. Terraços, corredores, salas de visitas, quartos, banheiros, cada canto da casa tem um estilo eclético e exuberante onde um cenógrafo de ópera italiana não teria muito a acrescentar.
“Não gosto do funcional, da linha reta, gosto do Luís XV, do colonial.” Não há dúvida. Espalhados pela casa, os móveis evocam épocas e lugares distintos e distantes, ora em madeira forrados de veludo vermelho, ora de ferro forrados de plástico estampado de diversas cores. Nas paredes há espelhos, castiçais, arranjos florais, além de uma enorme imagem de Jesus Cristo. E retratos e mais retratos de seus filhos, talvez o único vínculo de Telma com a vida real.
Hoje, aos 76 anos, ainda bela e vaidosa, ciente de que tem de cuidar de suas inúmeras aparências, Telma Saraiva, sentada em meio aos holofotes e diante do fundo infinito de seu estúdio, recorda com nostalgia os mitos de sua juventude. Não se dá conta de que a dimensão alcançada pelo seu trabalho, resultado de uma infinita e ousada imaginação, a colocou, igualmente, em um pedestal.
Isolada no sertão do Cariri, avançou nos conceitos da auto-referência tão em voga hoje em dia e nas possibilidades técnicas do que hoje chamamos de “tratamento da imagem”. Certamente, Cindy Sherman, a artista plástica norte-americana conhecida por seus auto-retratos conceituais, e um dedicado operador de photoshop não fariam melhor. Ou, ao menos, com a mesma dose de emoção.
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