O ateliê do multiartista Nuno Ramos – pintor, escultor, músico, cineasta e escritor – parece o interior de uma baleia. Muitas de suas maiores obras estão ali, desmembradas e embrulhadas, como escombros à espera de ganhar vida novamente. Há pedaços de avião, de barco, formas misteriosas, placas de metal, cadeiras de barbeiro, enormes telas de madeira, longos panos de todas as cores e texturas. Em dois pontos, fornos encimados por panelões, com os quais ele prepara o material para suas novas obras, amplas pinturas feitas com vaselina derretida, tinta e colagem com os mais variados elementos.
Em meio a tudo isso, ele parece absolutamente à vontade, sem a ansiedade bíblica de um Jonas, mas com o entusiasmo de um experimentador. Bem ao fundo, perto da “cauda” do galpão no Cambuci, em São Paulo, há um sofá surrado e respingado por diversas cores. É a aconchegante sala de visitas onde acontece a entrevista. Por ser mais conhecido como artista plástico, Nuno surpreendeu o mercado editorial ao vencer o Prêmio Portugal Telecom duas vezes, primeiro com o livro Ó, na categoria principal, em 2009, e depois com Junco, na categoria poesia, em 2012. Sermões já é seu sétimo livro. Em linhas gerais, traz a história de um filósofo fornicador, que mergulha desesperadamente no sexo durante uma estadia em Ouro Preto e aos poucos vê seu corpo e sua libido minguar até um final inesperado.
Brasileiros – Esse livro tem um jeito de catarse, de jorro mesmo, e me fez pensar menos no Drummond, seu mestre confesso, e mais em autores de poesia exuberante, meio surrealista, como o português Herberto Helder, que faleceu recentemente, e o Jorge de Lima de Canção de Orfeu. Você concorda?
Nuno Ramos – Talvez. Gosto do Helder, mesmo sem conhecer muito, e li o Jorge de Lima nessa nova edição da Cosac Naify. Na verdade, acho o Drummond exuberante, mas como ele é melhor que todos nós, fica muito concreto. O que sinto em mim como defeito é que, às vezes, fica tudo muito abstrato, não dá para saber bem o que o sujeito está falando. Escrevo muito rápido e reescrevo muito lento, não sei se todo mundo é assim. Para mim, o texto vem muito fácil, e depois passo muito tempo refazendo e, ao refazer, sempre tento loucamente tornar as coisas mais palpáveis. Acho que é um livro um pouco como o Ó, em que dei tudo o que eu tinha, foi muito fácil fazer, vinha mesmo, o tempo todo.
Parece, inclusive, muito pessoal.
Tirando a parte da mãe, que escrevi de fato quando a minha mãe morreu (e foi a parte que mexi menos), o restante é bem ficcional. Tem um lado biográfico, que é a idade do cara (Nuno está com 55), é meio um herói rothiano, do Philip Roth, que está no último estertor.
Talvez seja seu livro mais diferente, não é conto, ensaio ou poesia, mas um poema narrativo.
Para mim, é muito surpreendente ter saído assim como poema, de verdade, porque até eu fazer o Junco, tinha certeza de que não ia fazer poesia na vida. Foi uma coisa muito custosa para mim aceitar que eu não era um poeta, porque era o que eu queria ser quando menino. Eu sentia a poesia como algo abstrato demais, como se não soubesse bem do que eu estava falando. Então fui fazer artes plásticas, que é uma espécie de reversão disso pela matéria, pelo peso, pela concretude das coisas, ainda mais o tipo de coisa que faço, muito em cima dos materiais. Mesmo quando pinto, como você viu ali, aqueles quadros no chão têm 300 kg de vaselina, pesam ao todo 500 kg. Agora, quando fiz o Junco, foi um projeto bem longo, fiz lentamente. Foi uma coisa louca, eu me sentia como que descrevendo o meu lugar poético com uma praia, um pântano, onde as coisas vão meio que se afundando umas nas outras, é um exercício quase zen. Sermões, ao contrário, veio mesmo, mas sem o Junco não o teria feito, perdi um pouco o medo.
E a experiência como compositor e letrista, suas parcerias com o Romulo Fróes, o Clima, a Mariana Aydar e a Nina Becker, não tiveram também uma influência no escrever poesia?
O problema é que faço a letra, mas não refaço. Quando ouço, sempre acho que tem coisa ruim, que deveria ter refeito, mas não consigo retomar aquele momento. Então, é como se fosse uma poesia sem reescrever, que também tem o lado ruim. O lado bom é que solta muito, o Sermões também vem um pouco dessa experiência com canção.
Já que você falou nisso, um aspecto forte do livro é justamente a musicalidade. Você lê em voz alta o que escreve?
Estou aprendendo muito a fazer isso. Ler alto é uma experiência muito forte. Um tempo atrás, um amigo me disse que conseguiu ler Finnegans Wake, de James Joyce, quando leu em voz alta. Não consigo nem em voz alta, mas tentei e achei uma experiência incrível, super interessante, fica mais claro mesmo. O Sermões tem essa ambiguidade, pois sermão tende a ser lido em voz alta. O livro inteiro tem alguma coisa eloquente, tem alguma coisa vocalizada.
E dá a impressão que o personagem tem um certo desespero para falar, quer muito ser ouvido.
Vai ficando cada vez mais, é algo que cresce no livro. Ele realmente está querendo dizer coisas, isso veio em parte de ouvir muito esses malucos que ficam no Centro. Gosto especialmente da enunciação dessa loucura, acho muito bonito mesmo o modo como eles falam, é um tema beckettiano.
Samuel Beckett, aliás, é uma influência decisiva em sua obra toda, não é?
É, e muito. No Pão do Corvo e no Cujo (seus dois primeiros, de contos), a influência é óbvia, eu estava mesmo lendo Beckett na época. Ele tem a astúcia de ser um antitexto que, na verdade, é um modo de acessar a grande literatura. Ele tem um grande ouvido, sua prosa é muito exata.
E aqueles trechos em itálico? Sugerem uma espécie de diálogo esquizofrênico ou algo assim. Tem a ver?
O herói fala sempre que escuta vozes. E não tenho vergonha de dizer que escuto também. A arte tem a ver com umas vozes assim, que você não sabe bem o que são. Sinto que aqueles itálicos entravam como um comentário do poema, um diálogo mesmo. Enfim, acho que é um livro em que estou mais solto, isso é verdade.
Você parece ter ficado bem feliz com o livro.
Fiquei sim, porque ele tem uma conquista de falar de um monte de coisa que eu não tinha falado – de sexo, por exemplo. Aliás, era para ser um livro sobre sexo, mas acabou sendo um livro sobre morte, ou em igual medida. É curioso como uma coisa pega a outra, são dois cachorros agarrados. Na primeira parte, que é mais erótica, pensei em uma certa fusão entre religião e sexo: ele está em cima de um tapete transando, mas sob uma cúpula, que é uma imagem um pouco mais religiosa, e no final ele esporra como se o pau tivesse o tamanho de uma ogiva, quase que comendo a igreja. É gozado ele acabar dentro de uma igreja, porque ele fica pensando em sacanagem, bunda de criancinha, pinto de padre, tem umas blasfêmias.
O curioso é que você faz um contraponto entre o barroco de Ouro Preto e o modernismo de São Paulo, que parece criar uma tensão dentro da própria linguagem no texto.
Isso aí é um pouco biográfico sim, porque estive muito em Ouro Preto talhando umas pedras-sabão, para algumas esculturas que fiz lá. É uma cidade muito bonita, cheia de estudantes. Esse contraponto na verdade mostra uma espécie de perda de potência erótica na personagem. No começo, em Ouro Preto, ele está pegando várias mulheres, mas na cidade modernista, que seria o lugar onde vivo e conheço melhor, ele já está com uma só. Quando ele volta a Ouro Preto, já não tem mulher nenhuma, ele só vai encontrar a deusa hermafrodita quase no além. Aquela luxúria um pouco árabe do tapete com os tigres, sob a cúpula barroca, vai virando um apartamento desolado com uma lâmpada enforcada no alto de um edifício, meio Copan, com aquele Rembrandt olhando para ele, dando uma dura…
Aquele quadro do Rembrant, que é reproduzido no livro, está dizendo isso, que um dia você será velho como ele?
Sim. Acho que os autorretratos de Rembrandt são a experiência de autoconhecimento mais impressionante que conheço, mais do que qualquer coisa que tenha lido, nunca vi nada igual, Van Gogh talvez, no sentido de um “eu” que tem uma densidade, uma profundidade, porra, um cara para enunciar aquilo de si mesmo… Esse livro tem um certo desnudamento pessoal, por isso adotei o parâmetro mais alto que conheço. O Rembrandt é essa voz do eu que já se exteriorizou completamente, que já definiu a carnadura dele. Olho aquilo e acho impressionante, uma coisa sem ilusão, um negócio forte.
E esse bestiário todo de animais que aparecem aos montes? É um pouco uma obsessão sua? Está em toda sua obra.
É curioso, tem até um cara que fez uma tese com a questão da animalidade no meu trabalho. Essa animalidade está mais divertida no livro, pois não é tanto o cadáver do bicho, como no Junco, como o Monólogo para um Cachorro Morto (instalação de 2010). Os bichos estão ali meio pedindo companhia. O animal é uma etapa do espírito, o homem é outra. Acho que os animais são esse princípio ativo que independe da gente, tem uma corporeidade, uma espiritualidade, um circuito óbvio deles que envolve algum nível de linguagem, sei lá se é bom, se é mau, se é grande ou se é pequeno, mas tem. Para mim, é muito atraente, isso vem fácil, porque tem bicho por toda a parte. Até estou fazendo um texto agora, que chama Deus Cavalo, uma espécie de novelinha. Agora, claro, o pai é o Kafka, para mim o animal está nele.
Lembrei daquele conto dos Leopardos no Templo…
Esse eu adoro, cito sempre. Essa metáfora dos caras que vão destruindo o templo até que só começa o rito quando eles destroem. Essa é a definição da arte contemporânea, sempre falo isso. A arte moderna ainda quebrava o templo, agora a arte só começa depois da quebra. Só que quem quebrou já está no ritual, precisa saber disso, se não souber, coitadinho, aí que está mesmo. Então, você precisa jogar. Agora, o que o conto do Kafka não desenvolve é que o ritual mudou, se ele só começa quando quebra, quer dizer que o sacerdote foi alterado, o leopardo mudou o sacerdote, não foi só o sacerdote que mudou o leopardo.
Você aplicaria essa definição para a literatura também?
Acho que para tudo que a gente faz, em qualquer área. A literatura de hoje é diferente do que era há 20 anos, vai mudando, mas você não funciona mais por ação, reação, por oposição, por conflito, você não desperta a inércia cultural que há nas coisas. Essa inércia já está manipulada, já se disfarça, já está em você, ela já se finge de amiga, ela já te dá um patrocínio, o curador já passa a mão na sua bunda, os papéis já se misturaram. Na arte moderna há uma espécie de linha – estou sendo muito esquemático –, mas é uma linha divisória entre a proposição que o artista faz e a reação. Eu gostaria de ter algum acesso à vanguarda, no sentido histórico que ela tem de ser uma espécie de simetria da revolução. Acho legal coisas estranhas, tento estar em um lugar assim. Mas a gente vive em uma época muito ambivalente, precisa entender quando o chão afunda e quando ele não afunda, é meio caso a caso. E tentar fazer essa coisa que é o grande lance da arte, que é um ponto de vista poético, que é realmente o que o artista dá, um jeito de ver o mundo, e espero que esse livro dê isso para alguém, como forma, como possibilidade.
Você acompanha literatura contemporânea?
Muito menos do que eu deveria, tenho até certa culpa disso de ler tão pouco os meus colegas. Recentemente, li a Laura Erber, Os Esquilos, de Pavlov, gostei muito; li a Verônica Stigger, esse de nome impronunciável (Opsanie Swiata), achei bem legal. Gosto dos textos curtos da Vilma Arêas. Gostei demais do Monodrama, do Carlito Azevedo – teve influência naquele pedaço da mãe –, o final do livro acho lindo de matar. Gostei também daquele da Zulmira Ribeiro Tavares, de poesia, Vesúvio, achei um belo livro. E também o Barba Ensopada de Sangue. O Daniel Galera é jovem, ainda virá muita coisa dele. Os autores de fora leio confusamente. Foi muito importante ler Bruno Schulz, eu não conhecia, um negócio que me bateu loucamente. Leio muito esses clássicos e aí mistura com coisa de ciência, com ensaio, eu tenho leituras muito confusas.
Chamou a minha atenção que você cita a Monadologia, do Leibniz (filósofo e cientista alemão, 1646-1716), entre outros livros curiosos que você usou como referência.
É um livro que adoro! Também leio bastante antropologia. Leio entusiasmado e quando acabo, vejo que não entendi bem nada do que li. Mas fico com a cabeça boa, cheia de ideias. Essencialmente, fico lendo coisas meio díspares, passo de uma para outra, acabo confundindo tudo, às vezes tenho uma ideia e anoto. Tenho uma assimilação de leitura entusiasmada e confusa. Nesse sentido, não sou intelectual, noto muito uma diferença em relação aos meus amigos intelectuais que assimilam de forma mais precisa o que leram.
Por que você gosta de quebrar as palavras?
Passo de um ritmo para outro, de uma métrica para outra, da poesia para a prosa. É como se eu tivesse uma partícula anárquica que eu pudesse quebrar o ritmo que estou indo, começar de novo, fazer uma palavra virar um verso, como se me desresponsabilizasse pelo andamento rítmico da coisa e pudesse mudar tanto quanto eu quisesse. Fiquei com medo de ter que dar conta de uma métrica. Acho que era Edgar Allan Poe que falava que todo poema longo tende um pouco para a prosa. William Blake, por exemplo, tende à prosa mesmo, e acho que o meu texto também, tanto que, às vezes, ele vira prosa efetivamente.
Parece uma coisa meio jazzística.
Exato, dar uma quebrada e começar de novo, foi assim que senti. Mas ao longo das releituras fui cortando um pouco esse negócio, começou a ficar meio fresco e tentei voltar para uma coisa mais comum, mas não consegui largar aquilo, o que me permitiu manter o fluxo, de certa forma, sem ficar tão preso a um metro.
Pensando no que você falou, em ler sem entender, você imagina que isso possa acontecer com o seu leitor também, de ler você sem entender, mas curtir do mesmo jeito?
Acho que mesmo a poesia mais geométrica tem um pouco disso. O que fica de um artista é o todo, como visão, como acesso, você não ama um artista por causa de um poema, de um verso, você ama porque ele te dá o todo, a arte é o acesso ao todo, não é o acesso à parte. Quando você vê Mondrian, não está vendo formas geométricas bem divididas, você está tendo uma experiência de música, de dança, de uma arquitetura, de um monte de coisa ao mesmo tempo. Então, esse todo é o que vale. No meu caso, é o que te falei, o meu esforço é de concretude, talvez porque seja isso que me falte. Se fosse pegar um defeito meu, acho que tenho confiança demais na linguagem, por isso sou um pouco retórico.
É por isso que o herói do Sermões vive desconfiando da linguagem?
Sim, justamente porque confio tanto. Aí, é claro, tem exercícios de ódio à linguagem. Eu vou assim… e, de repente, me pergunto, mas que caralho, do que estou falando? Isso desde sempre me acompanha. Reescrever é tentar conectar de volta, botar no chão de novo. E aí, sim, tem um leitor dentro de mim que quer uma coisa menos arbitrária. Não tem obra sem crítica, isso é uma coisa que a nossa época perdeu um pouco, o acesso à crítica. Esse leitor que você fala, na verdade é um critico dentro de mim, não há potência na obra sem essa voz que te critica, que te pede mais. O crítico não é alguém que não te entende, é alguém que quer mais de você. A cultura, como tem de circular logo, perdeu um pouco essa interiorização de uma voz que te critica no sentido de exigir mais.
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