Testemunhas oculares

De tempos em tempos a história do Brasil parece ganhar corpo e é revisitada com vigor no mercado editorial. Um bom exemplo foi o que aconteceu ano passado por ocasião do aniversário de 200 anos da chegada da Família Real por estas plagas. Foram publicadas dezenas de livros a respeito do assunto, com novas interpretações para o fato. Essas obras costumam ter uma característica típica: o historiador apresenta os acontecimentos e discorre sobre eles. O escritor Jorge Caldeira, autor de Mauá, empresário do Império, saiu da rota tradicional e organizou, com um grupo de pesquisadores, um livro com 173 depoimentos de “testemunhas oculares da história”.

Contemplando os 500 primeiros anos de existência do País, Brasil, a história contada por quem viu (Editora Mameluco) reúne relatos feitos por personagens célebres e anônimos. Eles tratam de eventos-chave, como a Proclamação da República e a ditadura militar, até detalhes comportamentais de grupos fundamentais de nossa formação, como índios, negros e imigrantes. Há, por exemplo, a descrição minuciosa por um articulista da época da primeira leva de japoneses que desembarcaram no Brasil pelo navio Kassatu Maru, no início do século XX. Há também relatos inusitados, como as explicações do monarca português d. José para o veto à criação de mulas em território brasileiro. Nesse particular, o relato do Barão de Pindamonhangaba para uma pequena dor de barriga de d. Pedro I a caminho da Declaração da Independência é imbatível por seu caráter hilário: “Já havíamos subido a serra quando d. Pedro se queixou de ligeiras cólicas intestinais, precisando por isso apear-se, para empregar os meios naturais de aliviar seus sofrimentos…”. A visão é sempre a de quem depõe e, por isso, a parcialidade do autor precisa ser vista de maneira crítica. Até porque não é possível se ter um olhar definitivo sobre a história.

O grande volume de textos é organizado de forma cronológica e antes de cada depoimento há uma introdução contextualizando a temática, facilitando a vida do leitor. Além de trazer um testemunho inédito sobre a Guerra dos Emboabas, a compilação oferta também alguns depoimentos que acabaram se tornando clássicos na história nacional. Esse é o caso, por exemplo, da reprodução feita por Euclides da Cunha de prédica do sertanista Antônio Conselheiro alertando para a transformação do "mar em sertão" anos antes de tornar-se o mártir da Guerra de Canudos. Mais à frente, podemos encontrar a tristemente famosa, "às favas, senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência", manifestada pelo então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, a respeito da edição do Ato Institucional número 5 pelo governo dos militares. Como há uma pluralidade de autores, é natural haver uma oscilação na qualidade dos textos. Há escritos de luminares da literatura portuguesa, tais como Gregório de Mattos e Machado de Assis, duelando com figuras coadjuvantes. Embora os testemunhos sejam em sua grande maioria de cunho político, há alguns que fogem do tema. O futebol, por exemplo, ganha espaço em três textos: o escritor Lima Barreto discorre sobre a hegemonia do esporte; há o relato do goleiro Barbosa sobre a derrota para os uruguaios na Copa de 50; crônica de Nelson Rodrigues prevê a magia de Pelé após um amistoso do Santos. A música, com depoimento de Caetano Veloso sobre o surgimento da bossa nova, também tem seu quinhão. Ressalte-se também o grande número de textos jornalísticos, como a entrevista com Lampião e o editorial sobre a situação econômica do País na década de 1980. Para quem gosta de história, é um prato cheio!


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