A habitação veio para o centro do debate nacional nas últimas semanas. A qualidade da moradia é um elemento central na determinação das condições de vida e no nível de bem-estar de uma sociedade. Em países onde a urbanização foi muito rápida e desordenada, a questão habitacional torna-se um dos mais graves problemas sociais. Nós, brasileiros, sabemos exatamente o que isso significa, só de andar por nossas cidades.
Financiamento imobiliário
O Brasil convive com condições precárias de moradia desde sempre. Os primeiros registros de ações públicas para fazer face às deficiências de moradia e saneamento datam do século XIX, quando o êxodo rural inaugurou os problemas urbanos e o aparecimento de epidemias, particularmente no Rio de Janeiro. A verdade é que, a despeito de iniciativas aqui e ali, de ações mais direcionadas durante o Estado Novo (1937-1945) – quando já se utilizava como fontes de financiamento para a habitação popular os recursos de fundos previdenciários -, muito pouco foi conseguido.
Um passo fundamental foi dado com a criação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), em 1964, junto com o Banco Nacional da Habitação (BNH). Eram os primeiros tempos do regime militar no Brasil e havia plena consciência de que o País carecia de um sistema financeiro estruturado e especializado. A compra da casa própria não pode prescindir de crédito e este tem de ser de longo prazo e em condições diferentes do empréstimo que se toma para comprar uma geladeira ou um carro.
O SFH trouxe uma estrutura institucional bastante completa, estabelecendo uma divisão clara de atribuições entre seus componentes: o BNH seria responsável pelos programas sociais e grupos de renda inferior, enquanto que os demais grupos sociais seriam atendidos pelo Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), formado pelas Caixas Econômicas federal e estaduais, as Sociedades de Crédito Imobiliário e as Associações de Poupança e Empréstimo. Os recursos viriam em parte do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e, para as classes médias, o que se chamou de habitação de mercado, o financiamento seria feito a partir de recursos captados pelas cadernetas de poupança.
Da década de 1960 ao início dos anos 1980, o sistema conheceu uma forte expansão, chegando a financiar mais de 600 mil moradias em seu ápice. Mas aí veio a crise dos anos 1980, a inflação explodiu, o emprego deixou de crescer, a inadimplência aumentou e as formas de corrigir as prestações foram sendo alteradas, afetando a saúde financeira de todo o sistema. O BNH foi extinto em 1986 e suas funções foram distribuídas entre o Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), o Conselho Monetário Nacional (CMN), o Banco Central (Bacen) e a Caixa Econômica Federal (CEF).
O sistema refletiu a crise econômica geral e o financiamento de novas unidades habitacionais sofreu uma queda importante, só iniciando seu caminho para a recuperação depois de consolidada a estabilidade macroeconômica no País, na segunda metade dos anos 1990.
Por mais bem arquitetado que seja o SFH, várias de suas características explicam suas debilidades. Quando a economia vai menos bem, os depósitos em poupança caem e os recursos para emprestar também. Quando as taxas de juros da maioria das operações financeiras diminuem, as taxas praticadas nas operações imobiliárias não acompanham, pois são fixas. O sistema é fechado, ou seja, não há transferências de recursos entre a poupança e outras aplicações financeiras, os recursos são direcionados. Se isso é uma garantia de que sempre haverá dinheiro para o crédito imobiliário, é também uma limitação de trazer dinheiro de outras fontes.
A política habitacional para famílias de baixa renda, portanto, tem sido realizada com base no dinheiro do FGTS. Enquanto existiu o BNH (1964/1986), estima-se que apenas cerca de 33% das moradias financiadas no âmbito do SFH eram as consideradas de interesse social. Ou seja, uma crítica frequente feita ao sistema de financiamento habitacional é a de que ele não consegue atender as famílias mais necessitadas e que, ao longo do tempo, acabou ‘acolhendo’ a classe média. Aí está o nó do problema: as famílias realmente pobres não têm acesso às linhas de crédito, não conseguem cumprir as exigências para se candidatar a um financiamento e nem pagar as prestações. Essas famílias precisam de subsídios.
Junto com o financiamento com recursos do FGTS, vários programas com foco na habitação de interesse social foram criados ao longo do tempo. Alguns de responsabilidade de estados e municípios e muitos deles bem-sucedidos, embora insuficientes.
Déficit habitacional
Com população e cidades crescendo e necessidades de moradia não atendidas, o Brasil tem convivido, ao longo de toda sua história, com um enorme déficit habitacional. O déficit é medido em termos de unidades habitacionais inexistentes ou inadequadas para as famílias, é a medida das carências de moradia. Essas carências se referem à quantidade de moradias que faltam – tendo em conta que as necessidades aumentam quando novas famílias vão se formando – mas também às condições das moradias existentes.
O déficit se compõe de duas grandes dimensões: inadequação e coabitação. São considerados inadequados domicílios improvisados, rústicos ou cortiços. Há coabitação quando mais de uma família vive na mesma moradia. Embora o déficit seja mais trágico nas cidades, não se pode dizer que ele inexista nas áreas rurais.
Falamos em déficit habitacional absoluto quando consideramos o número total de domicílios que está em situação de déficit, ou seja, de famílias que vivem em moradias inadequadas ou que dividem a mesma moradia. O déficit relativo é a proporção de domicílios em situação de déficit sobre o total de domicílios no País. A última estimativa do déficit, realizada pela FGV Projetos a partir de pesquisa do IBGE, refere-se a 2007 e dá conta de 7,2 milhões de famílias morando de forma insatisfatória. Essas famílias correspondem a 12,8% das famílias brasileiras. É preciso dizer que esse valor é substancialmente melhor do que o de dez anos anteriores, quando o déficit relativo chegava a 16,2%.
“Minha casa, minha vida”
O pacote habitacional anunciado pelo governo federal em 25 de março tem como maior objetivo reduzir algo como 14% do déficit habitacional. O programa prevê a construção de um milhão de moradias e contará com recursos federais da ordem de R$ 34 bilhões. Desse dinheiro, quase 80% vão para subsídios diretos às famílias com renda de até seis salários mínimos, como 80% das unidades a serem construídas destinam-se a essas famílias. Do FGTS virão mais R$ 26 bilhões.
Além dos aportes de recursos, o pacote prevê ainda redução de impostos (IPI) sobre materiais de construção e redução de alíquota no regime especial tributário para as construtoras em suas atividades de construção para rendas de 0 a 3 salários mínimos; ampliação do percentual do valor do imóvel a ser financiado pelo FGTS e pelos recursos de poupança; aumento do valor máximo do imóvel que poderá ser financiado pelo FGTS; possibilidade de ‘jogar’ para o final do contrato as prestações não pagas por mutuários que ganham até dez salários mínimos em caso de desemprego; diminuição do custo da regularização fundiária.
Trata-se de um programa muito ousado, tanto no que tange aos recursos destinados como quanto às metas.
É, também, um programa extremamente complexo em termos de implementação. Estão envolvidos distintos atores em sua execução: municípios – de quem se espera terrenos e projetos – estados, empresas privadas. Entre estas, as construtoras deverão ser capazes de realizar os projetos, o que significa conseguir mão-de-obra e implantar métodos construtivos eficientes. E a indústria de materiais de construção deveria garantir que a diminuição dos impostos sobre o produto tivesse como resultado preços menores, coisa que não aconteceu quando houve duas rodadas de ampla redução nas alíquotas de IPI em 2006. Isso tudo não é evidente, apesar de a crise econômica contribuir para a queda dos preços, de uma forma geral.
Desdobramentos
O pacote habitacional vem em boa hora. Quando quase todos os governos do mundo estão ocupados em estimular a economia por meio de recursos públicos, o governo brasileiro apresenta um programa capaz de matar vários coelhos com o mesmo tiro: oferece caminhos para resolver um dos mais graves problemas sociais; promove gastos maciços em uma cadeia produtiva com razoável potencial de geração de renda e emprego; e, com isso, ‘puxa para cima’ a taxa de investimentos nacional. Outro coelho, ainda maior, é o inegável potencial de render dividendos políticos que tem um programa como esses. Apelidado na imprensa de bolsa-habitação, o programa pode gerar evidentes benefícios para a imagem do governo.
Mas isso não tira os méritos da audaciosa iniciativa. Mesmo se o milhão de moradias não ficar pronto em um ano – o que é mais provável -, os efeitos previstos sobre o crescimento econômico e o emprego podem ser bastante palpáveis. Resta observar a capacidade de implementação pelos governos e empresas, seguramente as peças mais difíceis de encaixar no jogo.
Há, ainda, as questões urbanas envolvidas na construção acelerada desse milhão de moradias: onde serão edificadas, quais as reais possibilidades de oferecer infraestrutura adequada, impactos sobre as regiões, os projetos propriamente, e por aí vai. Aspectos cruciais, que seguramente farão parte das dificuldades de implementação do programa.
*Economista, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo
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