Dez e meia da manhã. Tinoco estava terminando de se vestir quando o encontrei no último sábado de agosto em seu quarto no “New Life”, um apart-hotel em Piracicaba, a 160 quilômetros de São Paulo, onde se apresentaria à noite no Teatro Municipal, com a banda de rock caipira “Os Pamonheiros”. Parecia cansado. Depois de fazer um show em Pirajuí na véspera, ele rodou com Zé Carlos, seu filho, motorista e empresário, mais 220 quilômetros até chegar aqui por volta da meia-noite. Num posto da estrada, fez um lanche rápido, que foi seu jantar: misto-quente e suco de milho.
Aos 88 anos, Tinoco está habituado a essas andanças entre estradas, palcos e picadeiros, que começou com o irmão Tonico quando tinha 15 anos; mas nessa noite não conseguiu dormir direito. Levantou-se cedo, como de costume, com o raiar do sol, tomou café e remédios, e deitou-se de novo. Dona Nadir, sua inseparável companheira de viagens, com quem está casado faz 56 anos, desta vez não veio com ele. Na mesma hora em que Tinoco se apresentava em Pirajuí, ela foi operada para a retirada de um tumor do pâncreas, no modesto Hospital São Cristóvão, na Mooca, zona leste de São Paulo.
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Só quando lhe perguntei se ele ainda cantava apenas por gosto ou por necessidade – “as duas coisas” respondeu-me Tinoco – é que fui entender por que não estava ao lado da mulher nessa hora. José Perez, o Tinoco, um dos maiores nomes da história da música popular brasileira, ainda está em atividade porque precisa, e trabalha pesado para sobreviver. Com 73 anos de carreira, completados duas semanas antes da nossa conversa, ganha apenas R$ 1 mil por mês do INSS, aposentadoria que não dá para pagar suas contas, os remédios e as dívidas que se acumulam desde a morte de Tonico, em 1994, com seus cachês cada vez menores.
Autor junto com Tonico de mais de 1.200 músicas gravadas por eles e outros cantores em milhões de discos – ele não sabe dizer quantos – recebe de direitos autorais a fortuna de R$ 2 mil a cada três meses. Pelo contrato com a Nossa Caixa, ganha R$ 2.500 por show para se apresentar nos sorteios semanais da Loteria Estadual, mas tem de arcar com todas as despesas (transporte, hospedagem, refeições e impostos). No ano passado, para complicar sua situação, levou uma mordida de aranha venenosa na perna que o deixou cinco meses sem andar, sem poder trabalhar.
Por isso, ainda tem de rodar de 1.500 a 2.000 quilômetros para fazer de dois a três shows a cada fim de semana, apresentando-se em teatros, circos, rodeios, festas de casamento ou batizados, o que aparecer, com o cachê cobrado de acordo com o freguês. Em Piracicaba, por exemplo, como os músicos da banda “Os Pamonheiros” são seus amigos, aceitou receber R$ 1 mil por sua participação no show, além de hospedagem e comida. O filho ainda tentaria salvar o dinheiro gasto com combustível. Alguma coisa está errada, pensei comigo, quando eu recebo por palestra bem mais do que pagam para um artista do porte e da história de Tinoco.
Fora da grande mídia e do star-system, há tempos não ouvia falar de Tinoco, desde que escrevi, em 1985, para a Folha de S. Paulo, uma reportagem sobre os 50 anos de carreira dessa dupla que se tornou um símbolo do Brasil caipira. Quem o reencontrou e me falou dele foi minha filha Mariana, jornalista da melhor qualidade, durante uma reportagem sobre longevidade para o SBT Repórter. Nem sabia que ele ainda estava trabalhando. Por isso, foi com grande alegria que reencontrei no hotel em Piracicaba um Tinoco altivo, cabeleira branca de índio velho contador de causos, feliz com o show que iria fazer à noite, apesar do abalo com a cirurgia de dona Nadir.
Sem perder tempo, sentamo-nos à mesa da saleta do apartamento. Para meu desespero, pois o gravador estava sem fita, que meu parceiro fotógrafo, Carlos Silva, tinha ido comprar, Tinoco começa a falar sem pausas. Conta num embalo só sua vida, desde o comecinho, na zona rural de Pratânia, município hoje com sete mil habitantes, antigo distrito de Botucatu, no interior paulista. Filho de Salvador Perez, descendente de espanhóis da região de León, lavrador errante em terra alheia, e de Maria do Carmo, descendente de índios, terceiro de nove irmãos, Tinoco pouco foi à escola e não queria saber de trabalhar na roça.
Com João, o Tonico, irmão quatro anos mais velho, começou de menino a cantar, compor e tocar cavaquinho – “inventava modinhas”, como ele diz. Na estrada desde adolescente, quando está em São Paulo quase nunca sai de casa. Só pensa em descansar ao lado da mulher, em seu modesto apartamento na Mooca, no mesmo prédio em que Tonico morreu, ao cair da escada.
Criado no meio do mato vizinho a uma comunidade indígena, entre onças, jacarés, tatus, porcos do mato, cobras e capivaras, “tudo quanto é tipo de bicho”, conta que não tinha nem folhinha em casa e nunca sabia que dia que era.
O fotógrafo Carlos Silva finalmente chega com a fita para o gravador, que não foi fácil de encontrar. Em várias lojas, lhe falaram que isso não se fabrica mais. Tinoco ri. Eu já estava com a mão doendo de fazer anotações no meu caderno. O homem fala muito rápido, alterna prosa com pedaços de músicas de sucesso, vai e volta na história, falando sem parar sobre a sua longa vida, sem esperar por perguntas. A certa altura, resolve cantar versos de uma das suas primeiras modinhas, como se estivesse se apresentando:
“Abre a porta e a janela
Venha ver quem é que eu sou…”
Vamos lá. Melhor ligar logo o gravador para preservar a riqueza da linguagem rural deste Brasil antigo e profundo, que Tinoco não perdeu – um mundo em que ainda não existia televisão e o presidente do Brasil chamava-se Getúlio Vargas. Começamos no ponto em que ele falava da falta de bagagem para ficarem mais tempo na cidade durante a primeira viagem a São Paulo, em 1942. Pensei que lhes faltassem roupas, mas a bagagem era de outra natureza.
Tinoco: Quando nós fomos gravar o primeiro disco, já o diretor brecou nós e disse: “Pode parar, pode parar, que com isso aí nós fecha a gravadora aqui. Não pode!”… O primeiro versinho dizia:
“Vou na 48, está querendo alguma coisa?
Eu soube pela notícia
Que homem casado é que nem raposa”
O homem da gravadora falou: “Pare, pare, e some daqui!”, e expulsou nós de lá. Ele chamava Ernani, era da Continental, e era só ele lá. Era gerente, contratava, advogava, mandava em tudo…
Brasileiros: O Capitão Furtado queria que Tonico e Tinoco ficassem uma semana cantando na Rádio Difusora. Mas o senhor me falou que não tinham bagagem, explica isso…
Tinoco: É que nós não tinha bagagem musical. Nós nem sabia que tinha compositor no mundo. Fazia nós mesmos as nossas músicas. Então, eu e o Tonico, nós começamos a fazer música de tema de vida em São Paulo. Depois, começamos a viajar de trem, nós corremos o Brasil. Tinha essas músicas que nós gravamos, tudo tema de vida, que nós recolhemos da vida.
Brasileiros: Conta um pouco como eram essas viagens, as dificuldades…
Tinoco: Eu com o Tonico, nós viajava de trem. Década de 40, 50, não tinha estrada como hoje. Era tudo estradinha que ia de uma cidadinha para outra, ia de cavalo, carroça e carro de boi. Não tinha condução nenhuma. Nós viajava para o interior de trem e ia até onde dava o dinheiro. Quando descia na estação, juntava 20, 30, 50 pessoas. Eu parava e falava – o Tonico, não falava nada: “Vocês conhecem o Tonico e o Tinoco?” Eles dizia: “Nós temos o disco deles, nós gosta deles, mas nós nunca viu eles”. E eu falava: “É nós mesmo… Ele é o Tonico e eu sou o Tinoco!, vocês quer que nós cante uma moda?” Nós cantava umas três, quatro modas, pegava o chapéu de palha e corria na roda. Nestas andanças a gente levava um canecão para beber água. Em qualquer rio do Brasil era só baixar e beber água, era tudo limpo. Nós não tinha onde comer, não tinha onde dormir, então bebia muita água e quando passava num pé de laranja pegava logo um monte. Às vezes, quando via uma casa que tinha galinha no terreiro, eu chegava lá e dizia assim para o dono: “Quanto que vocês cobra para cozinhar um arroz para nós dois e matar um frango ou uma galinha? Parece que eu tenho marcado até hoje o preço na cabeça: era de 2 a 3 mil réis, e tinha que pagar adiantado.
Brasileiros: Conta pra gente alguma coisa que o senhor viu nessas viagens e que acabou virando música.
Tinoco: Numa dessas vezes que a gente tava esperando a comida, tinha um véinho sentadinho assim numa casinha bem pobre e eu vi uma violinha pendurada pelo lado de fora. Eu falei para ele assim: “Puxa, o senhor tá com uma violinha bonita aqui em cima e tá triste… ” O véinho falou: ” É… Eu já tive muita alegria na vida, mas de tanto tirar leite e trabalhar na enxada, fiquei com os dedos tudo duro, assim ó, tudo encarangado, não dá mais pra tocar!”. Então nós tiramo na hora aquela música que fala assim:
“O meu pai já ta véinho, não pode mais trabalhar
Brincando com o seu netinho, passa o tempo a recordar
Quando pega na viola pra tristeza disfarçar
Canta moda do passado e depois pega a chorar”
Brasileiros: O primeiro programa em que vocês cantaram foi nos domingos à tarde, na Rádio Difusora, em 1942…
Tinoco: Era duas horas de programa. Nós cantava no programa do Capitão Furtado, que era sobrinho do Cornélio Pires. O nome dele mesmo era Orivaldo Pires e o programa se chamava No Arraiá da Curva Torta. Nós ganhava 75 mil réis cada um, que dava para sustentar uma família, dois filhos e a mulher… O Capitão Furtado que batizou nós. Ele falou que José Perez, que era eu, e João Perez, que era o Tonico, não era nome de cantor, não ficava bem. Na hora, ele virou para nós e falou: você vai ser o Tinoco e você vai ser o Tonico. E aí ficou esses nome…
De repente, Tinoco, que não consegue ouvir direito minhas perguntas, nem está muito interessado nelas, muda de assunto, dá uma volta no tempo e recorda novamente sua infância naquela terra perdida entre São Manoel e Botucatu.
Tinoco: Tem uma história que eu preciso contar… Eu ainda mamava, morava na Fazenda Cintra, devia ter uns dois anos. O pai tocava café na época, tinha força… Depois ele caiu doente… Naquele tempo, quando o pai ou o filho mais velho que mandava na casa ficava doente, o patrão despachava, despachava da roça e da casa. No dia seguinte, tinha outra família na casa, como aconteceu para nós.
Brasileiros: Era assim mesmo, o empregado ficava doente e o fazendeiro colocava a família na estrada?
Tinoco: É porque não tinha médico, não era que eles eram ruim, não… E nessa altura o pai ficou não sei quanto tempo doente, eu era pequeno. Mas eu alembro, eu alembro que eu tava mamando ainda, depois não tinha nada o que comer. A mãe acabou o leite, e ela pediu para a vizinha da colônia, que tinha criança, para dar de mamar pra mim. A primeira mulher que eu fui mamar era branca, eu não quis pegar… Porque a mãe tinha a teta preta, que a mãe era escura, e aquela mulher era branca. Então eu refuguei, eu não quis… Apanhei na bunda pelado, ela socou assim, então eu mamei, olhando se a mulher ia bater mais ainda… O Tonico acho que tinha uns seis anos, ele era mais velho, pegava uma lata e ia buscar sobra de comida na colônia. Na nossa casa não tinha fogão, não tinha cama, só uma caminha para o pai, e o pai ficava sem comer, sem beber, e não sei te contar como que a gente viveu…
Brasileiros: Com que idade o senhor começou a trabalhar, ajudar o pai na roça? Chegou a ir para a escola?
Tinoco: Na roça eu comecei a trabalhar acho que quando eu tinha uns 12 anos. A gente não tinha nem folhinha para contar o tempo direito… Quando eu mudei numa fazenda grande, lá que tinha escola, era da dona Deca de Barros (da família do ex-governador paulista Adhemar de Barros). Eu já tocava cavaquinho. Aprendi sozinho. O Tonico tocava violão, depois comprou a viola… Compremo, mas num paguemo, não tinha dinheiro… O homem ficou com dó de tomar de nós… Quando aprendi ler e escrever igual a professora, fui mandado embora… Falaram que já tava bom… Não tinha primeiro ano, não tinha segundo, como hoje… O resto nós aprendemo na facurdade do mundo.
Brasileiros: Esse negócio de cantar e tocar caquinho ajudava a arrumar namorada?
Tinoco: Quando eu fiquei mocinho, tinha uns 15, 16 anos, era duro de arrumar namorada. E eu reparei que quem tinha um cavalo arrumava namorada fácil. Era que nem ter um carro hoje… E o que eu inventei? Comprei um reio, chamava repente, um par de espora e descarço mesmo ia no baile. Eu riscava a espora para a menina ver que eu tava com o cavalo, e ela dizia assim: “Cadê o cavalo?” Aí eu falava assim: “Eu amarrei longe daqui…” Até que uma gostou do meu jeito, ela chamava Emilia. Nós namorava embaixo do pé de ipê, porque lá os pai não descia, só a mãe para lavar a roupa… Então os namorado descia para namorar lá. Um dia ela demorou e eu caminhei para a casa dela, assim para encontrar logo um lugar, sabe? Me deu uma dorzinha de barriga… Eu invés de sair do trilho, só fiquei de costas, e dali a pouco ela me bateu no ombro: “O que você esta fazendo aí?” Aí eu falei: “Cagando um pouco!”. Ela vortou para casa correndo e nunca mais quis saber de mim!
Brasileiros: Vocês começaram se apresentando em circos e, mesmo depois de famosos…
Tinoco: …tudo o que a gente começou bem na vida ganhemo no circo. Cheguemo a sustentar de 12 a 15 família de artista. Eu comprei dois circos, nós era uma companhia de teatro. Tonico e Tinoco teve essa família do circo mais de 30 anos. Nós tinha 20 e tantas peça sertaneja, fizemos o enredo do Chico Mineiro, Tristeza do Jeca. Cada música que pegava no rádio nós fazia uma peça com aquele enredo da moda. Voltava nas cidades 15, 20 vez com o circo e cada vez era uma peça diferente.
Brasileiros: Quem se apresentava com vocês nesses circos?
Tinoco: Quando eu comecei a cantar em circo, dei a mão para outros artistas. Eu pegava uma dupla boa, nós abria o espetáculo num lugar, e eles abria em outro lugar. Sempre levei uma dupla além da família do circo. O Milionário (da dupla com José Rico), trabalhou comigo no circo. Ele sempre fala que eu ajudei ele a criar os cinco filhos que ele tinha. Trabalhou uns cinco anos comigo até aparecer o Zé Rico.Tudo passou pela minha mão…
Brasileiros: Quando Tonico e Tinoco comemoraram 50 anos de dupla, me lembro que fiz uma reportagem grande com vocês na Folha de S. Paulo, e você me contou como foi o dia em que cantaram juntos pela primeira vez em público…
Tinoco: …foi no dia 15 de agosto de 1935 que nós ganhemo nosso primeiro pagamento. Tinha uma festa na igreja de Aparecidinha (um bairro de São Manoel, cidade vizinha a Botucatu), e nós comecemo a cantar umas moda no único botequim daquele lugar. O povo da igreja ouviu e a festa veio de mudança para o botequim para ouvir nós. O dono ficou tão contente que deu uma gasosa (refrigerante da época) para cada um, foi nosso pagamento. A gente não conhecia aquilo. Eu tinha 15 anos, o Tonico, 19. Inda deu que engasgemo com aquilo, deu farta de ar porque ferveu tudo aqui dentro, foi só tosse para todo lado…
Tento avançar um pouco na história, mas Tinoco tem muita dificuldade para ouvir o que os outros lhe falam. Não se queixa, até agradece a quem cuidou dele. Faz tempo que ele começou a sentir este problema, conseqüência do barulho provocado pelo som nos palcos.
Tinoco: Perdi um tímpano, mas já está feito outro… Eu fiz no CEMA lá na Mooca (tradicional hospital da zona leste de São Paulo), eles me cuida há mais de 40 anos. O tratamento é de primeiro mundo. O meu problema no ouvido está cheio no mundo. Cantor, músico, maestro, pessoa que fica muitos anos nesse barulho, o tímpano não foi feito para isso, acaba o tímpano. Você vê o Nelson Gonçalves, também morreu surdinho, surdinho, de tanto barulho. No palco eu uso o retorno do som para poder ouvir, é o ponto. O ponto fica lá no fundo da orelha. O Tonico morreu, mas deixou a voz dele pra mim, a segunda voz, e eu canto em cima a primeira voz como sempre foi. É como se ele estivesse vivo. Tentei dois parceiros, mas não combina, não fica o padrão Tonico e Tinoco. Então eu faço o meu show sozinho e canto em cima do som da voz dele. Mas o meu fraco, a minha praia é fazer teatro. Porque eu gosto, a minha professora foi a Dercy Gonçalves… Ela contava coisa da vida dela, e eu conto da minha… da primeira namorada… Eu conto 80 anos para trás como era a vida, quase 90 anos para trás…
Brasileiros: Uma coisa que eu gostaria de saber, Tinoco, é se hoje o senhor canta porque gosta de cantar, porque te dá alegria ou porque precisa para pagar as contas e sustentar a família?
Tinoco: (depois de breve silêncio) É… É as duas coisas… Porque quando o Tonico morreu, nós tinha 30 compromissos e eu fiquei com todos esses compromissos. No quarto dia que ele tinha morrido eu mandei rezar uma missa para ele na Mooca e fui fazer o primeiro show sem ele em Goiás. Eu cumpri os 30 shows sozinho. Mesmo com o nome Tonico e Tinoco na propaganda, os contratantes me cortaram a metade do cachê. Então eu fiquei com as despesas das duas firmas, a minha e a dele, e ganhando menos. Aí eu fiquei no vermelho, ainda estou no vermelho, mas vivendo porque Deus está me dando saúde para fazer tudo o que eu faço. Faço com alegria, não reclamo nada, não tenho mais nada para pedir para Deus. Só agradecer o de tudo o que ele me dá até hoje. Quando a turma pergunta se é só vocês três nas viagem, eu falo que nós estamos em quatro: o Tinoco, o Zé Carlos, a Nadir, que é a mãe do Zé, e Deus, eu falo assim. É o que eu falava quando era eu mais o Tonico. Mas só vocês dois estão viajando? Não, são três: Tonico, Tinoco e Deus… Nunca aconteceu um arranhão para nós, nada. Pela primeira vez eu vou falar uma coisa que eu nunca falei para a imprensa. Numa andança dessa bem longe, para o lado de Ourinhos, era uma rota cheia de cerrado lado a lado. Era uma hora da tarde e nós tava dois dia sem comer, e fazendo moda na estrada. Aí eu na direção e o Tonico cochilando do lado, eu vi um velho barbudo andando na beira da estrada. Aí eu emparelhei nele e falei: “O senhor quer montar aqui? Tem lugar, monta no automóvel”. Ele não respondeu e eu então perguntei: “O senhor vai para onde?” Aí ele falou: “Tanto vou para lá como vou para cá”. Quando eu fui olhar, ele sumiu… Não tinha como sumir. Eu parei o carro não tinha por onde sumir, era longe os pés de café da estrada.
Eu falei comigo: “Deus está com nós!”. Eu vou pôr esta história no meu livro, eu estou escrevendo um livro… Você vai falar primeiro do que eu no meu livro…
Brasileiros: Muito obrigado. E já tem título o livro?
Tinoco: Não… Olha, tem que ser uma coisa assim de todo mundo… É do mundo porque Tonico e Tinoco o Brasil inteiro ama, de um a cem anos. Cada país tem a obra de Tonico e Tinoco, eles vêm buscar aqui no Brasil. Então é uma história do mundo, aí tem que pôr um nome… A gente pensou em colocar Show da Vida, mas como já tem o Fantástico, aí vai dar rolo…
Brasileiros: Quem é o teu público hoje?
Tinoco: O meu público 90% é juventude. Me beijam, me abraçam, tira foto, criança arrasta a mãe e o pai para me dar a mão, isso é uma coisa de Deus também. No mês passado, um menino de dois anos, em Araraquara, fez o avô me levar na casa dele para cantar “Moreninha Linda” junto com o menino. Ele não sabia nem falar direito… . Daí uns 15 dias lá em Brasília uma menininha de um ano quando me viu cantar, ela fazia assim com a mão ó, me chamando. Então os pais me levaram para cantar com ela na casa deles lá na fazenda. Eu peguei na mãozinha dela, ela me olhava, não sabia nem andar…
“Moreninha linda do meu bem querer
É triste a saudade longe de você…”
Brasileiros: A minha filha Mariana falou que é uma história muito bonita de como o senhor conheceu a dona Nadir, a sua esposa. Conta pra nós…
Tinoco: Ela foi me assistir num circo na Vila Alpina (bairro da zona norte de São Paulo), onde eu fazia o Chico Mineiro. Naquele tempo eu usava bigode… E eu olhando aquela menina bonitinha, eu falei “nossa, pena que é novinha!” Daí que acabou o espetáculo ela mandou um menino me chamar. Ela deu 2 mil réis para o menino me chamar lá na frente pra prosear com ela, e eu não sabia. Eu falei pro menino: “Não vou, não. Avisa ela que não vou”. E ele: “Vai, sim, se não ela me pega de volta esses 2 mil réis que ela me deu!” O menino pegou a minha mão e me arrastou até ela. Então por causa de 2 mil réis nasceu o nosso amor… Só que o pai quando soube, comprou um revólver novo, que era para não falhar quando ia me matar. O homem era calabrês, seu Tomas. Aí a Nadir me avisou: “O pai vai te matar. Eu falei para ele: não faz isso pai, o senhor não sabe quem é o Tonico e quem é o Tinoco. E ele me respondeu: ‘Eu vou na Rádio Nacional e mato os dois!’”.
Brasileiros: E ela tinha que idade?
Tinoco: Tinha 14 anos. O pai era calabrês e a mãe era espanhola, a mistura de raça que é fogo… Hoje é ela que comanda tudo, toma conta de toda bagagem nossa, dos remédios, mas a essa hora ela está na UTI… Ela operou o pâncreas ontem…
Brasileiros: …e o senhor está aqui trabalhando em Piracicaba?
Tinoco: … eu estou aqui cumprindo meus compromissos. Mas eu deixei tudo prontinho, o melhor médico do Sírio Libanês está cuidando dela e eu estou sempre falando com a turma que esta lá com ela no São Cristóvão. Você imagina que ia ficar 50 mil por dia na UTI, o que o hospital cobra lá. Eu fui falar que não tinha condição: “Não tem como, doutor, então eu vou lá para Barretos, lá eles vão operar de graça”. Ele falou: “Não, você vai operar aqui, não vou cobrar nenhum tostão, ninguém vai cobrar um tostão”. Eu tenho plano de saúde, mas não cobre nada, não cobre. Está ruim esse negócio. Quando você precisa de um hospital, você vai ver como está a crise dentro dos hospitais no Brasil.
Brasileiros: E o senhor, mesmo com a mulher doente na UTI, vai fazer o show hoje?
Tinoco: É… Vou… Ontem, eu fiz também… O artista que tem responsabilidade ele cumpre, eu sempre cumpri. Quando morreu a minha mãe, o pai, tudo morreu no braço da Nadir. Quando ela inteirou 18 anos, eu perguntei pra Nadir: você vai estudar o quê ? Ela falou: “Quero ser enfermeira”. Então eu pus ela na Cruz Vermelha, ela foi enfermeira padrão, estudou para cuidar da minha saúde… Por isso que eu estou novo assim. Eu investi na saúde para mim também. Olha aqui, eu mato a cobra e mostro o pau, olha aqui o que ela faz (mostra a caixinha de remédios com gavetas indicando o horário e a dosagem de cada um).
Brasileiros: Desses anos todos, qual foi a história que mais te marcou, que o senhor nunca vai esquecer?
Tinoco: Eu vou contar uma história que ainda nós não era Tonico e Tinoco, mas marcou muito. Nós morava num sítio em Guarantã, sempre fomos pobres alegre, cantando, problema nunca pegou. O pai deu um cavalinho pra nós, chamava Maneiro, de tanto que ele andava bem, não chacoalhava. Era para levar as crianças em Botucatu quando tava doente, porque quando dava sarampo num menino dava em toda família. O ordenado que o patrão dava era geral, pelo trabalho da família toda. O pai ganhava 120 por mês e ficou devendo 400 na venda lá de Guarantã de um homem que chamava Marioto. Não ia pagar nunca, não tinha como. Aí um dia esse Marioto apareceu lá no terreiro da nossa casa e falou com o pai: “Eu vou levar o seu cavalo embora porque você não pode pagar, vou levar em troca da dívida”. Meu pai falou que esse cavalo é para levar as crianças quando precisa para Botucatu, mas não teve jeito. Então o meu pai arriou o cavalo e deu na mão dele, e ele foi puxando o cavalo, deu uma voltinha assim, o pai chorando, e eu peguei na perna do pai. Eu não estava chorando por causa do cavalo, eu chorei de ver o pai chorar. Aí todas as crianças grudou no pai. Daí nem dois mês, nós soubemos que o cavalo morreu… morreu de saudade da família. Deu mais um tempo, o Marioto também morreu. Ninguém rogou praga, ninguém falou nada. Essa história está completinha, eu vou pôr no meu livro.
Brasileiros: Para quando é o livro? Já está adiantado? É o senhor mesmo que vai escrever ou o Zé Carlos está ajudando?
Tinoco: Eu só comecei, e aí a mulher foi ter que operar, eu fiquei correndo de lá para cá. Eu vou me empenhar. Já avisei o filho que para o ano eu vou parar com essas viagens, as viagens me cansa. Cantar, não, mas as viagens me cansa. E toma todo o tempo dele também, ainda mais com essa operação da mulher…
É tempo de dar uma parada na conversa. Tinoco se emociona ao falar de dona Nadir, chora sentido, mas diz que é coisa do remédio que tomou. Quando volta a falar, nem lhe pergunto mais nada, faz um desabafo.
Tinoco: Eu quero fazer esse livro, contar tudo coisa da minha carreira, e poder comer todo dia em casa e ela também… E o Zé, ele é novo (o filho tem 46 anos), ele vai viver a vida dele com os filhos dele, eu vou viver com a mãe. Eu ganhando para comer e beber na minha casa, vou ter mais tempo de vida e ela também… Aí se me aparecer um show pagando bem até que eu vou, não muito longe também, porque é só o filho que dirige, ele também cansa. A gente passa mal comendo muito fora, restaurante, churrascaria. De primeiro você comia em qualquer casa de comer igual na sua casa. Hoje, hoje não, eu não sei por que, mas mudou. Eu gosto de arroz, feijão, abobrinha, ovo frito, verdura e carne. Carneiro é o que eu mais gosto, mas não tendo carneiro, vai até tatu…
Ouça a música “Tristeza do Jeca”, do programa Ensaio, da TV Cultura:
Por falar nisso, está passando já da hora do almoço. O pessoal da banda de rock vem buscar Tinoco e avisa que a passagem de som no teatro está marcada para as quatro da tarde. Bem que Tinoco tenta escapar, sugere mandar só o filho para checar o som, mas Fabiano Mazzilli, o líder do conjunto de quatro músicos, um jovem de 36 anos, que poderia ser seu neto, insiste: “É coisa rápida, Tinoco. Assim que o senhor chegar lá a gente faz…”. Mesmo cansado, ele vai. Tinoco ainda não aprendeu a falar não para ninguém.
Dez para as quatro, lá está ele no saguão do hotel pronto para cumprir o compromisso no horário. Em seu carro preto Polo 2006, explica como agüenta o tranco sem maiores problemas de saúde: “Eu não pito e não bebo. Fumar e beber acaba com a voz. Cigarro encurta o fôlego e o álcool queima as cordas vocais”. Assim, ele já rodou várias vezes por todos os Estados brasileiros sem perder a voz e só não foi ainda a Fernando de Noronha. Insiste comigo para parar de fumar. “Já fiz muitos amigos meus largar o cigarro. Você vai parar também.” Dá a receita: “Quando você tiver vontade de fumar, pensa numa pessoa que você ama muito”. Mas minha mulher também fuma, retruco. Não adianta, ele me dá o xeque-mate: “Então faz ela pensar em você quando tiver vontade de fumar…”.
Quem cuida dele há mais de 40 anos é o dr. Fúlvio Pileggi, um grande nome da cardiologia em São Paulo. Tinoco sofre de hipoglicemia, um problema que provoca sensação de fome e faz baixar a pressão. Toma remédios também para controlar o colesterol, para proteger o estômago e algumas vitaminas. Na primeira consulta, quando sentiu os primeiros sinais de stress, Pileggi perguntou-lhe o que ele fazia. “Eu tenho dois circos, programa de rádio e televisão, ando o Brasil inteiro para cima e para baixo. Sabe o que ele me respondeu? ‘Então não vou te dar nada, você está muito bem, vai morrer em casa’.” Tinoco me dá um cutucão para mudar logo de assunto. “Olha, não se preocupe com a minha saúde. A mãe morreu três meses antes de fazer 100 anos e o pai passou de 100…”.
Às quatro em ponto, ele está na porta do teatro esperando alguém buscá-lo para passar o som. Os meninos da banda se atrasaram, ele não. Zé Carlos, que começou a acompanhar o pai com 10 anos, trabalhando como bilheteiro nos circos, pega no porta-malas as duas maletas tipo 007, que nunca podem faltar. Ali está toda a parafernália eletrônica preparada para Tinoco poder ouvir e cantar: um retorno de ouvido Shure e um MD Sony que toca os playbacks nos seus ouvidos.
Em meia hora dá a missão por cumprida, mas ainda tem de atender um grupo de velhos admiradores que o aguardam perfilados na saída do palco. “Lembra de mim? Dancei catira com o senhor em 1958 lá no auditório da TV Tupi…”, desafia um deles, como se Tinoco pudesse se lembrar de todo mundo que já dividiu o palco com ele. De volta ao carro, dá um balanço da vida. “O que eu fiz, eu fiz. O que não fiz não vou ficar triste nem com raiva agora.” Em quase 90 anos, só passou um dia no hospital. “Me ardia o peito e mandaram fazer cateterismo. Passei um dia no HC (Hospital das Clínicas, de São Paulo) fazendo exames, nunca mais voltei.”
Depois de um breve descanso no hotel, Tinoco é um dos primeiros artistas a chegar ao Teatro Municipal de Piracicaba Dr. Losso Neto, às sete e meia da noite, para o show de lançamento do CD Os Pamonheiros (embora a entrada dele no palco só esteja prevista para as nove). De paletó amarelo-ovo, com um lencinho no bolso e uma imagem pequena de Nossa Senhora Aparecida na lapela, camiseta preta, calça e sapatos brancos, leva um tempão até chegar ao camarim. No caminho, solícito, dá entrevista a um repórter de TV e tira fotos com fãs. “Venho aqui desde a década de 40. Acho que Piracicaba é a cidade que mais visitei. De antigamente, tinha o Teatro São José, as ruas eram de terra e o povo ainda amarrava os cavalos na porta…”.
Sozinho no camarim, entrega-se às lembranças. “Em Pratânia, agora tem uma Casa Cultural Tonico e Tinoco na cidade e uma casinha cultural lá onde a gente morava com os índios e os bichos. Nós comia até cobra, era só cortar a cabeça e tirar a espinha onde corre o veneno. Os índios eles não chegava perto de nós. Eles não sabe o que é ter amigo. Na Casa Cultural tem tudo da nossa vida, retratos da família, um monte de disco, móveis antigo, recorte de jornal”, ele vai me contando, enquanto toma um suco de laranja sem gelo. Faz frio em Piracicaba: 10 graus.
Tinoco recorda os bons tempos, os 20 anos em que ele e Tonico comandaram o programa Na Beira da Tuia, primeiro na rádio e depois também na TV Bandeirantes. Todas as terças-feiras iam a São Paulo para gravar os programas da semana e depois pegavam de novo a estrada. De lá foram para a Rádio Record, onde sempre abriam o programa à noite com a gravação da bênção da mãe, Maria do Carmo: “Deus abençoe vocês, Tonico e Tinoco, fiquem com Deus”. Tinoco não faz a menor idéia de quantos milhões de discos a dupla já vendeu. Só lembra vagamente que foram 80 long-plays, com 12 músicas cada, e mais de 300 discos de 78 rotações, com duas músicas, “quase tudo gravado na Continental”.
O show demora a começar, a memória do velho artista viaja, volta a 1963, quando Tonico ficou tuberculoso e foi obrigado a tirar sete costelas e um pulmão. “Com um pulmão só ele cantou mais 31 anos, foi um milagre.” Pergunto se ele reza muito. “Não, rezar não rezo. Converso com Deus, sempre só pra agradecer.” Fala de Getúlio Vargas, com quem se encontrava quando vinha a São Paulo e ficava hospedado no Palácio dos Campos Elíseos nos tempos em que o governador era Adhemar de Barros. Não tem boas lembranças da primeira viagem de avião, de São Paulo para Andradina, quando foram obrigados a fazer um pouso de emergência num pasto.
Chega a hora de entrar no palco. Espera mais um pouco na coxia e caminha lento para os aplausos do teatro lotado. Declama de improviso alguns versos em defesa dos rios, das águas, dos peixes, da vida, introdução para a música “Lamento de um Rio”, que gravou no CD da banda de rock caipira. Entre uma música e outra, conta à platéia que sua mulher, com quem se casou faz 56 anos, está no hospital, fala que “viver em São Paulo está muito caro, aqui é melhor”, pede uma cadeira para contar mais histórias. “Vou contar uma coisa…”, começa e não termina mais, até a banda dar os primeiros acordes de “João de Barro”, um dos clássicos de Tonico e Tinoco, que o povo acompanha cantando e batendo palmas.
O público vibra com “Chico Mineiro”, outra canção eterna, apresentada na versão clássica e em ritmo de rock. Nesta hora, Tinoco se levanta da cadeira e anda de um lado para outro do palco. “Acham que é só por alegria, mas se passo muito tempo parado o pé fica doendo, nasceu com defeito…”, confidencia-me Tinoco ao sair do palco, meia hora depois, missão cumprida. É hora de trocar de roupa, guardar os aparelhos de som nas maletas e pegar a estrada de volta para casa. Vida que segue.
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