Eu sempre me surpreendo quando encontro com os meus entrevistados pela primeira vez. Com Tiradentes, nascido e enforcado Joaquim José da Silva Xavier, foi a mesma coisa. Sem barba e com o cabelo bem curtinho, foi difícil reconhecê-lo ali no boteco da praça em Ouro Preto. E mais, todo desdentado. Do canino para trás, um vazio secular. “Naquela época, éramos todos assim. Sem dentes. Tanto aqui, como em Portugal e até Paris. Estou a saber que em Portugal, até irem os dentistas brasileiros para lá, arrancavam-se os dentes”, justifica ele, explicando sua alcunha de Tiradentes. E me confidenciou que nunca foi cabeludo e muito menos barbudo. “Tudo cresceu na prisão”, onde ficou aguardando durante quase três anos as ordens de Portugal (de D. Maria I, a Louca, mais precisamente).
Nesta conversa franca (como diria a Playboy) com a Brasileiros, ele fala de sua vida e morte, dos amigos Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, das traições. Fala de uma amante carioca chamada Perpétua e de um projeto para canalização dos rios Andaraí e Maracanã, no Rio de Janeiro. Além de dentista, foi minerador e militar. Mas pediu demissão porque nunca subiu postos. Foi sempre alferes, patente inicial do oficialato na época. Pouco mais do que um cabo. Era – e ele sabe disso – o mais insignificante de todos os revolucionários. Só que no caso, a corda não arrebentou para o lado do mais fraco. A corda o matou.
E fez algumas revelações surpreendentes: Cláudio Manuel da Costa não teria se suicidado e sim sido assassinado e a chamada Inconfidência Mineira queria separar Minas de Portugal e, pasmem!, do Brasil. Queria ser um país independente.
Brasileiros – O senhor pediu demissão militar por não conseguir promoções. O senhor era incapaz?
Tiradentes – Incapaz é a puta que te pariste.
Brasileiros – Quase três anos depois, o senhor seria enforcado como revolucionário. O único. Consta na história do Brasil que o senhor não era nada! Todos eram grandes latifundiários, altos militares, intelectuais vindos de Coimbra e de Sorbonne. E o senhor apenas arrancava dentes.
Tiradentes – Eu fui e sou o Mártir! O dia da minha morte (21 de abril) é feriado até hoje. E tenho muito orgulho da minha profissão de estomatologista. Ninguém comenta o meu trabalho no Rio de Janeiro, na canalização dos rios Andaraí e Maracanã. Só saio nas fotos com a corda no pescoço. Para tu teres uma ideia, quando o governador Visconde de Barbacena mandou prender todo mundo, eu nem estava nas Minas Gerais.
Brasileiros – Não??? Onde o senhor estava?
Tiradentes – Na casa da minha namorada Perpétua Mineira, no Rio de Janeiro. A fornicar, como convinha. Sempre gostei muito de sexo. Por isso a vasectomia. Soube da merda lá, na casa dela, dias, semanas depois. Não tínhamos internet.
Brasileiros – O senhor teve filhos com ela?
Tiradentes – Não, já disse, eu já era vasectomizado. Preste atenção à conversa!
Brasileiros – Mas, então, por que dizem que os seus descendentes foram considerados infames?
Tiradentes – Sei lá, acho que a dona Maria I, que foi quem assinou a sentença, devia estar muito louca. Nunca tive descendentes.
Brasileiros – Mas teve o seu corpo esquartejado e sua cabeça ficou num poste em Ouro Preto.
Tiradentes – Ouro Preto?
Brasileiros – Perdão, Vila Rica.
Tiradentes – Tudo mentira. Meu jovem, eu fui enforcado no Rio de Janeiro. Como é que iam me esquartejar e trazer os pedaços para Vila Rica? Sabes quantos dias levava a viagem a cavalo? Imagina! Aqui em Vila Rica salgaram o chão da minha casa para nada crescer ali. O que iria crescer na sala? Coisa de portugueses. A verdade é bem outra.
Brasileiros – E qual é a verdade?
Tiradentes – O circo que armaram no Rio de Janeiro, que era para mostrar que com Portugal não se brincava. Eu sei que tu não vais acreditar, mas a leitura da sentença demorou 18 horas, contando as aclamações à Rainha e o desfile em carro aberto, no carro do corpo de bombeiros, com direito a fanfarra e toda a tropa carioca. Um espetáculo digno de um enterro daquele meu outro conterrâneo, o Tancredo Neves. Enfim, uma palhaçada. E essa palhaçada toda só serviu para deixar a população mais puta com a coroa.
Brasileiros – E os demais inconfidentes?
Tiradentes – Primeiro, fomos todos condenados à morte. Depois de três anos de negociação, lobby mesmo, só eu que me fodi. Desculpe a expressão. O resto foi para o degredo, expulsos do país, onde morreram.
Brasileiros – Um deles, o Claudio Manuel da Costa, grande poeta do arcadismo, se suicidou na prisão.
Tiradentes – Na época, correu uma fofoca braba de que ele teria sido assassinado. Naquele tempo, eram proibidas as missas para os suicidas. E para o Cláudio as igrejas rezaram foram várias, em toda Minas Gerais.
Brasileiros – Ele não teria se enforcado?
Tiradentes – Sim, como o Vladimir Herzog. A foto seria igual. Ele teria usado cadarços do calção, amarrado numa prateleira onde teria apertado o laço, e teria forçado com um braço e o joelho. Acho meio difícil conseguir se enforcar assim. Tu não achas?
Brasileiros – Mas por que ele teria sido assassinado?
Tiradentes – Frequentava o palácio do governador. Sabia muito. O Visconde de Barbacena tinha medo que ele falasse mais do que o necessário durante as torturas. Enfim, jamais saberemos a verdade. Dizem até que ele teria se matado porque estava deprimido.
Brasileiros – Ele sofria de depressão?
Tiradentes – Conversei muito com ele na véspera. O dia da morte dele foi 4 de julho. Comemorava-se neste dia o ano 13 da independência americana. E nós ali presos. Não era depressão, era pensar que no Norte já estavam livres da Colônia, dos ingleses. Todo dia 4 de julho a gente enchia a cara aqui em Minas. Era um exemplo.
Brasileiros – Quem eram os inconfidentes?
Tiradentes – Tinha de tudo. Desde os estudantes que voltavam de Coimbra e de Paris bradando Liberté, Egalité, Fraternité, ou la mort! Esses jovens foram logo cooptados pelos latifundiários, pelos milionários mineiros que não estavam mais a fim de mandar milhares de arrobas de prata por ano para Portugal. Fora o ouro e os diamantes. Não havia nenhum sentido de brasilidade na coisa, não! Era para transformar Minas Gerais num país independente de Portugal e do Brasil. Já estava tudo resolvido. A capital do novo país seria São João del-Rei e o primeiro presidente o Tomás Antonio Gonzaga. Depois de três anos, teria eleições. Uma República encravada no meio do Brasil. Claro que ia dar merda.
Brasileiros – Quer dizer que o interesse primeiro era a grana e o poder.
Tiradentes – Claro, né, mané? Exatamente como hoje. Sai São João del-Rei, entra Brasília.
Brasileiros – E sobre a traição, o que o senhor tem a nos contar?
Tiradentes – Joaquim Silvério dos Reis Montenegro Leiria Grutes, é o cara. Rapaz, o gajo era português, comandante do Regimento de Cavalaria, fazendeiro, proprietário de minas e… falido. Tava fodido e muitíssimo mal pago. Na época diziam – consta, né? – que seria gay e participava de umas festinhas no Palácio. Dizem, ninguém prova. O governador também era bem afetado, o Barbacena. Ele tinha chegado um ano antes e cobrado cinco toneladas de ouro para a Corte. Era a tal da derrama. O Joaquim delatou tudo para ele, entregou o nome de todos nós, as datas, tudo, certo que obteria o perdão das suas dívidas. Já ouviu falar em delação premiada? Conhece bem, né? Invenção desse filho da puta. Sabia que a mulher dele, a dona Bernardina Quitéria, era tia do Duque de Caxias? Olha a turma…
Brasileiros – Ele foi expulso do País também?
Tiradentes – Nada! Ficou perambulando por aí, chamado de traidor. Sofreu vários atentados de morte. Até fogo chegaram a colocar numa casa dele. Morreu só em 1819, em São Luís do Maranhão. Dizem que havia morado um tempo em Portugal e depois voltou com a turma de 1808. Como você vê, sempre perto do poder. Um filho da puta de marca maior. Um autêntico aldradão. Os seus restos mortais foram enterrados no interior da igreja de São João Batista, na capital maranhense. Depois o túmulo foi destruído.
Brasileiros – E a Marília de Dirceu, conheceu?
Tiradentes – Não queria falar nela. O Tomás a tomou de mim. E nem se chamava Marília, como ele não se chamava Dirceu. Não quero falar nela, mas dizem que virou mulher macho na velhice. Eu queria era voltar um pouco atrás e ler-te um coisinha sobre a morte do Cláudio Manuel da Costa.
Brasileiros – Por favor.
Tiradentes – O pesquisador e colaborador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Joaquim Norberto de Souza e Silva assim escreve em sua obra História da Conjuração Mineira, de 1860: “Ah! e que longa agonia não sofreu ele, como indicava a posição de seu cadáver tendo uma liga por baraço (corda), pendente de um armário, com um dos joelhos firmado sobre uma das prateleiras e o braço direito forcejando debaixo para cima contra a tábua na qual prendera o baraço, como procurando estreitar o fatal laço que zombara da gravidade de seu corpo, já tão debilitado pelos anos e trabalhos!…” Incrível, né? Tinha 60 anos.
Brasileiros – Parece que já vi essa foto.
Tiradentes – E tem mais: na tarde do mesmo dia em que o Cláudio Manuel foi preso, mataram no sítio da Vargem a sua filha, seu genro e outros familiares. E ainda roubaram todos os seus bens. É, meu filho, o Brasil continua o mesmo… Senhor, estás com o segundo molar cariado! Deixai-me ver isto. Posso arrancá-lo?
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