O fazendeiro “seu” Vicente nunca se desligou do modo de vida do interior paulista. A prova mais evidente desse apego sempre foi o chapéu de boiadeiro, usado no dia a dia. Ainda assim, ele incentivou o filho José Renato Catapani, o Tite, a abraçar uma atividade que, a rigor, é oposta ao sereno e, por vezes, modorrento cotidiano das fazendas: pilotar o mais rápido possível nas pistas.
Não se sabe se, no íntimo, “seu” Vicente aprovou de imediato a escolha do garoto, nascido na mansidão de Limeira. Mas deu a maior força ao descobrir no filho a vocação para a pilotagem.
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Tite relembra: “Eu estava com a turma no kartódromo de Ribeirão Preto, debaixo de uma barraca comemorando a minha pole position. Foi quando meu pai se aproximou e disse, orgulhoso, no seu sotaque caipira: ‘O meu Tite é uma flecha!’”.
Claro que os amigos começaram a brincar, a pegar no pé e a chamar o jovem piloto de “Flecha”. Em vez de bronquear, Tite mandou pintar diversas flechinhas no capacete. Era uma maneira de homenagear o pai e divertir os amigos. Tornou-se também uma profecia: tal como uma flecha certeira, a carreira de Tite atingiu o alvo.
No decorrer de 12 anos de pilotagem, ele foi campeão brasileiro de kart (em 1968, disputando curva a curva com os lendários Maneco Combacau e Carol Figueiredo), vice-campeão de Turismo Divisão 3 (1970) e venceu algumas das principais provas do automobilismo brasileiro. Lembremos de apenas algumas, entre as mais longas e difíceis: 250 Milhas de Interlagos (1970, pilotando sozinho); 6 Horas de Tarumã (1973, em dupla com Alex Dias Ribeiro); 200 Milhas de Interlagos (1973, com Luiz Pereira Bueno); 25 Horas de Interlagos (1973, com Mario Patti e Arthur Bragantini) e 500 km de Interlagos (1974, de novo, sem dividir a direção).
Tite tinha 14 anos quando o piloto Ciro Cayres, um dos grandes nomes da primeira metade dos anos 1960, foi visitar a fábrica de rodas de uma tia do garoto, a Rodobras. O campeão estava a bordo de uma cintilante Maserati 450S, com motor de oito cilindros. Ciro percebeu que os olhos juvenis miravam a máquina, maravilhados, e, boa-praça, convidou Tite para dar uma voltinha. “O Ciro pisou fundo na Via Anhanguera”, recorda, rindo. “Foi emoção demais.”
Em 1964, Tite já estava acelerando em um kart Mini. Mostrou talento. Foram seis anos nos carrinhos. Ao longo desse período, disputou uma prova em um carro DKW e fez seu debut em Interlagos, em 1966, dirigindo um Fusca “envenenado”, em uma prova para estreantes. Foi o primeiro a cruzar a linha. Ganhou, mas não levou: “Acabaram me desclassificando pelo diâmetro do escape, com 2 cm a mais”.
A morte do irmão, Carlos “Kaká” Alberto, em 1968, em um acidente de automóvel, deixou a família desnor-teada. Duríssimo. A pista de Interlagos também fechou para reformas. Quando reabriu, em 1970, era a hora de trocar em definitivo os karts pelos carros.
“Seu” Vicente foi com o filho até a Equipe Jolly Gancia – sempre nos pódios daqueles tempos – para negociar a participação de Tite na escuderia. Pilotar uma Alfa Romeo GTA da Jolly era sonho de qualquer piloto brasileiro. Pois Tite Catapani fez bonito. Foram apenas oito provas dirigindo para a equipe, mas ele venceu a primeira etapa do Sul-americano (em dupla com Piero Gancia) e recebeu a bandeirada em primeiro nas 250 Milhas de Interlagos, e em segundo, em Curitiba, perdendo apenas para o potente Porsche 910 de Mário Olivetti.
Dos tempos da Jolly, ele recorda, sempre brincalhão, de outra intervenção de “seu” Vicente: “Era um treino e reclamei para o chefe dos mecânicos, o Giuseppe Perego, que a minha Alfa não estava andando tanto quanto as outras da equipe. O Giuseppe me tranquilizou, dizendo que faltava taxa de compressão no cabeçote do motor. Meu pai ouviu tudo quietinho e, na saída de Interlagos, perguntou: ‘Filho, onde a gente compra a tar da taxa?’”.
Com o fim da Equipe Jolly Gancia, Tite Catapani correu por outra escuderia poderosa, a Bino Ford, conseguindo resultados alentadores e animou-se a comprar uma Lola T-210. Havia pouco, Emerson Fittipaldi conquistara a Copa Brasil dirigindo aquele carro inglês. De cara, Tite subiu ao topo do pódio em Interlagos e Tarumã (Rio Grande do Sul). Viveu uma época formidável dirigindo “a Lolinha”. Seu empenho foi reconhecido quando recebeu, em 1971, o Prêmio Victor, na categoria Revelação, instituído pela revista Quatro Rodas. Quem fez a entrega foi Colin Chapman, o primeiro dono da Lotus, aquele que costumava atirar o boné no momento das vitórias – e tirou o chapéu para Tite Catapani.
A interrupção da carreira nas pistas foi compulsória. Convocado pela Equipe Bino Samdaco, de Luiz Antônio Greco, Tite largou no I Rally da Integração, dirigindo uma perua Ford Belina, tendo Arthur Mondin como navegador. A prova era uma odisseia: 3.300 km, ligando Fortaleza (CE) ao Chuí (RS). Na prática, uma travessia do País. Tite conta: “Lá pelas tantas, troquei de pilotagem com o Arthur. Fomos pegos de surpresa por uma neblina fortíssima, saímos da estrada e capotamos. Tive de me submeter a uma cirurgia para a retirada do baço e fiquei seis meses no estaleiro”.
Só no final daquele ano, 1971, o piloto pôde voltar a rodar com a “Lolinha”, participando de duas etapas da Taça Brasil. Depois, embarcou o carro para a Argentina, onde, em dupla com Wilson Fittipaldi Jr., disputou os 1.000 Km de Buenos Aires. Tite também correria outra prova internacional, os 1.000 Km da Áustria, no autódromo de Zeltweg, dessa vez dirigindo um Porsche 908/2, em dupla com o velho amigo Luiz Pereira Bueno. Era uma etapa do Campeonato Mundial de Marcas e o carro chegou a ocupar a 4a posição, antes que Helmut Marko – que fazia dupla com o nosso José Carlos “Moco” Pace em uma Ferrari da equipe oficial da fábrica – cometesse uma barbeiragem e lhe desse um “chega pra lá”. Já então, Tite havia sido contratado pela bem-sucedida Equipe Hollywood.
O ano de 1973 foi oscilante. Na vida pessoal, tudo ótimo: Tite uniu-se a Ana Cristina – mãe de seus três filhos (um rapaz e duas moças) -, com quem está casado até hoje. Nas pistas, contudo, aqueles meses transcorreram em meio a crises no automobilismo brasileiro. Vivia-se o clímax da crise do petróleo e, por conseguinte, as corridas eram vistas por alguns como desperdício de gasolina. Além disso, uma determinação afastou os carros importados das disputas, incluindo a amada “Lolinha”.
Como quase todos os pilotos de ponta, o nosso Catapani foi participar da categoria Turismo Divisão 3, destinada a automóveis de linha, fabricados no Brasil, mas devidamente preparados. Versátil, venceu provas longas, tanto pela Equipe Hollywood quanto, mais tarde, pela Manah, sempre em carros Ford Maverick. Depois, aderiu à Fórmula Super V, embora, nos intervalos dos campeonatos, continuasse a disputar provas de Turismo. Sua última corrida na categoria foi em dupla com o autor deste texto. “Chegamos em 5o lugar, nas 6 Horas de Interlagos.”
Aos 62 anos, José Renato Catapani permanece amando a velocidade. Basta vê-lo acelerar sua motocicleta BMW 110 cilindradas para ter certeza disso. Ainda é o Flecha, como o definiu “seu” Vicente, lá se vão 45 anos. A influência do pai continua marcante. Tal como “seu” Vicente, Tite jamais abandonou o amor pela vida no campo. Ele tem uma fazenda no interior de São Paulo, onde cultiva laranjas; e outra no Mato Grosso, na qual cria gado. Só não usa chapéu de boiadeiro.
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