No dia em que a reportagem da Brasileiros encontrou Claudia Raia, ela estava envolvida em uma tripla missão. Ao meio-dia, no estúdio do produtor musical e ex-integrante do grupo A Cor do Som, Mú Carvalho, na Barra da Tijuca, a atriz colocava voz em um CD de rock. A canção foi usada no último capítulo da novela das sete da Globo Ti Ti Ti, na cena em que sua personagem, Jaqueline Maldonado, volta à ativa com sua antiga banda, Boletim de Ocorrência, ao lado das amigas Divina Magda (Vera Zimmermann), Teresa Batalha (Drica Moraes) e Gigi (Maria Zilda). Em seguida, a atriz iria para o Projac para gravar três cenas. À meia-noite, começaria a terceira parte do expediente: o ensaio da coreografia da comissão de frente da Beija-Flor na academia de dança Carlinhos de Jesus. Enquanto você lê estas páginas, já sabe que todo o esforço da multiartista Maria Claudia Mota Raia, uma campineira de 44 anos e 1,80 m de altura, valeu a pena
Na terça-feira, 8 de março, Claudia estava entre os 4 mil integrantes da escola de Nilópolis, que levantou a Marquês de Sapucaí com um samba-enredo em homenagem ao cantor e compositor Roberto Carlos. Vestida de cristais, com uma fantasia que representava todas as divas do Rei, ela saía de um rádio nos braços dos bailarinos, como materialização dos sonhos do menino Roberto. Na noite seguinte, já estava na quadra da escola comemorando o título de campeã do Carnaval 2011. Enquanto isso, os telespectadores assistiam às derradeiras cenas da personagem Jaqueline, uma “perua tarja preta”, quer dizer, surtada, por quem o Brasil se apaixonou.
Inspirada na obra de Cassiano Gabus Mendes, a novela escrita por Maria Adelaide Amaral alcançou a média de 36 pontos de audiência – chegando a superar a trama das nove – e foi um dos assuntos mais comentados na internet e nas redes sociais. A bordo de um figurino extravagante, que incluía sapatos salto 12, calças saruel, turbantes e toneladas de bijuterias, Claudia Raia roubou a cena, a ponto de, em certos momentos, a história de sua personagem ganhar mais espaço que a dos outros três protagonistas: Murilo Benício, Alexandre Borges e Malu Mader.
E não foi só isso. Ao longo de oito meses de gravações, enquanto emprestava seu corpo e seu talento de comediante à tresloucada amante de Jacques Leclair, a atriz pôde extravasar e ganhar fôlego para encarar um terremoto em sua vida pessoal: o fim de seu casamento de 17 anos com o ator Edson Celulari. No dia 18 de março, quando a surtada Jaqueline terminou a história berrando um rock em cima do palco, era a própria Claudia Raia quem soltava as suas bruxas. Com fôlego de gata, ela nem pensa em descanso. Já está em fase de pré-produção do musical Cabaret, com direção de José Possi Neto. Confira a entrevista.
Brasileiros – Como começou sua história na Beija-Flor?
C.R. – Essa é uma relação de amor que já dura 27 anos. O Anísio Abraão David (bicheiro e presidente de honra da Beija-Flor) foi padrinho do meu primeiro casamento e desde então eu nunca deixei de frequentar a escola. Neste ano, o Edson (Celulari) e nosso filho Enzo (14 anos) tocaram na bateria. Nossa filha Sophia (7 anos) era um dos anjinhos que estavam ao lado do Roberto Carlos. Eu saí na comissão de frente, representando todas as mulheres das músicas dele.
Brasileiros – Qual das mulheres cantadas por Roberto Carlos você gostaria de ser?
C.R. – Todas! Eu amo o Roberto. Minha música favorita é Como é Grande o meu Amor por Você, que eu e o Edson cantávamos para o Enzo desde a gravidez. Eu também fui locutora dos especiais de fim de ano do Roberto. Até que a certa altura eu disse: “Roberto, eu te amo, mas me libera dessa tarefa. Dia 23 de dezembro é meu aniversário e faz três anos que eu passo essa data trabalhando!” (risos).
Brasileiros – Agora que Ti Ti Ti acabou, você vai estrelar o musical Cabaret. Não teme comparações com a Liza Minelli?
C.R. – Eu persigo esse papel há 20 anos. Eu sei que a referência que o público tem do personagem é a Liza Minelli e que as comparações serão inevitáveis. Mas estou disposta a encarar. Convidei o José Possi Neto para tentar fazer um Cabaret novo, que tenha o melhor da peça (escrita por John Van Druten) e o melhor do filme (dirigido por Bob Fosse). A estreia será em outubro, no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo.
Brasileiros – Como uma bailarina clássica tornou-se vedete de musicais?
C.R. – Nasci dentro de uma academia de dança e dediquei minha vida, praticamente, toda a ela. Minha mãe foi bailarina e maestrina. Minha irmã é coreógrafa. Durante 25 anos, nossa família teve uma rede de dez escolas de dança na região de Campinas, no interior de São Paulo. Na adolescência, cheguei a fazer carreira internacional como bailarina clássica, até que fiquei muito alta e tive de abandonar a carreira. O musical surgiu como uma alternativa. Comecei fazendo A Chorus Line e, para a minha surpresa, cada vez que eu abria a boca o público morria de rir.
Brasileiros – Foi aí que você se descobriu comediante?
C.R. – Eu não sabia que era engraçada e não me achava atriz. Mas depois de A Chorus Line fui fazer um quadro no Viva o Gordo e peguei o jeito. Lá, eu trabalhava com Jô Soares e outros mestres, como o Cecil Thiré, o Max Nunes, o Wilton Marques, a Célia Biar, o Milton Carneiro e o Paulo Silvino. Foi a minha grande escola de interpretação. O problema é que, no mundo todo, a comédia é tida como um gênero inferior ao drama. Tanto que o Jerry Lewis nunca ganhou um Oscar, o que é absurdo.
Brasileiros – Você começou a ser chamada para fazer personagens gostosonas em novelas, como a Ninon, de Roque Santeiro, e a Tancinha, de Sassaricando.
C.R. – Sempre fui uma mulher bonita, chamativa, gostosona. O que eu fiz foi tentar conduzir minha carreira para não me tornar refém disso. Pensei: se eu for querer fazer musical americano, não vou chegar a lugar nenhum, porque a nossa cultura é o teatro de revista. Melhor, então, partir para a comédia. Felizmente, nesse caminho eu encontrei o Jorge Fernando (diretor) e o Silvio de Abreu (autor de novelas), que me ajudaram a me tornar a nova vedete do Brasil. Com eles, eu fiz várias novelas e musicais, como Não Fuja da Raia, Nas Raias da Loucura…
Brasileiros – Naquela época, apesar do sucesso de público, você era criticada por ter um visual carregado.
C.R. – Eu era uma adolescente nos anos 1980, ou seja, eu vivi plenamente a época dos exageros. Eu usava tudo grande e colorido – brincão, batom vermelho, ombreiras – porque era a moda. Com o tempo, fui cortando os excessos e me tornando mais mulher. Até que um dia o Daniel Filho (diretor) virou para mim e disse: “Claudia, agora você está do seu tamanho”.
Brasileiros – Não é irônico que a Jaqueline de Ti Ti Ti tenha se tornado popular exatamente pelo visual exagerado que você lutou para apagar?
C.R. – A Jaqueline é muito mais histriônica e exuberante do que eu (risos). As pessoas ligam para a Globo para saber onde encontrar as roupas, os sapatos e o esmalte que ela usa. No Vídeo Show até fizeram uma reportagem chamada Jaqueline Fashion Week. A equipe foi até Taquara, um bairro popular daqui do Rio, e flagrou as garotas usando turbante, faixa na cintura e calça saruel. Parece que a Jaqueline se tornou uma Viúva Porcina pop.
Brasileiros – Qual a importância da Jaqueline em sua carreira?
C.R. – A Jaqueline é a personagem mais unânime que fiz desde Tancinha, de Sassaricando. Com uma semana de novela, as pessoas já me paravam na rua para cumprimentar, chamando a personagem pelo nome. Jaqueline é um personagem tragicômico. Ela não aguenta solidão, é uma verdadeira mendiga de afeto. Isso dá a possibilidade de ir para qualquer canto. Como diz Maria Adelaide Amaral, a Jaqueline é uma “perua tarja preta”.
Brasileiros – Existe lugar para gente tarja preta em uma sociedade onde tudo é catalogado, rotulado, classificado?
C.R. – No mundo real, dificilmente quem está fora do padrão é aceito. Mas eu vejo inúmeras pessoas tarja preta por aí, meio escondidas, tentando dissimular o que são realmente. O que mais tem hoje em dia é gente tentando se encaixar em um formato de vida retrógrado. Só que as pessoas tarja preta estão aí e se identificam com a Jaqueline. Dizem que ela é adorável e que, se existisse de verdade, casariam com ela. Ela tinha um enorme coração e desejava ardentemente ser amada. Ao mesmo tempo em que trazia um lado dark, de roqueira mal dormida e inadequada. Era completamente louca, mas fascinante.
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Brasileiros – Você já se sentiu cobrada por ter uma família de comercial de margarina?
C.R. – Quando eu e o Edson éramos casados, a imprensa nos comparava à família da Angelina Jolie e do Brad Pitt. Mas não existe essa história de família de comercial de margarina. Todas têm problemas, e a minha não tinha como ser diferente.
Brasileiros – De alguma forma, uma personagem tão divertida te ajudou a encarar a barra pesada do fim do casamento?
C.R. – A Jaqueline não eliminou meu sofrimento, mas certamente fez essa fase da minha vida se tornar mais leve. O trabalho te fortalece, te ergue, faz a gente tirar força de onde você acha que não tem. Houve dias que eu vinha para o estúdio me arrastando, numa tristeza profunda. E, minutos depois, eu tinha de entrar de cabeça nessa personagem tão intensa. O meu luto está sendo vivido a cada fase e é muito importante que a recuperação seja assim, step by step.
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Brasileiros – Você não bebe, não fuma e não se droga. Como é que você despiroca?
C.R. – Eu já sou despirocada (risos). Tenho amigos que falam que eu pareço adolescente, que tenho a alegria de uma criança. Quando todo mundo está alegre de bêbado, eu entro na mesma onda, só tomando água com gás. Se a galera tá fumando maconha, eu entro na mesma vibe, mesmo estando de cara limpa. Meu amigo Luiz Fernando Guimarães brinca dizendo que, além de me divertir e tirar sarro como todo mundo, eu sou a única a lembrar de tudo no dia seguinte.
Brasileiros – Dá para imaginar a Claudia Raia fazendo Lady Macbeth ou a Alaíde de Vestido de Noiva?
C.R. – Acho que sim. Por que não?
Brasileiros – Por que você faz muito mais musicais que teatro.
C.R. – Eu faço musicais porque tenho fôlego e energia para isso. Quando as minhas pernas estiverem fraquejando, vou fazer teatro falado. Gostaria muito de fazer Nelson Rodrigues e Shakespeare. Inclusive eu e o Edson tínhamos o projeto de fazer A Megera Domada), mas não deu tempo.
Brasileiros – O que a fascina tanto em musicais?
C.R. – Além da própria linguagem e da atmosfera de sonho, a possibilidade de explorar minhas potencialidades. Há dois anos estou fazendo aulas com um novo maestro, o Marconi Araújo. Minha voz subiu uma oitava e meia e quatro notas. Isso me dá a possibilidade de fazer novos papéis. E ainda tem muitos musicais que eu quero fazer: Wicked, Sunset Boulevard, Woman of the Year…
Brasileiros – Alguma vez você já foi tão pressionada ou criticada por causa de um papel que pensou em desistir da carreira?
C.R. – Essa coisa de desistir não é para mim, não. Eu já passei por pressões muito fortes de crítica e de preconceito. Mas como boa capricorniana, sou perfeccionista e raspo até o fundo do tacho. Prefiro morrer a desistir.
Brasileiros – Como você lida com a possibilidade de seus filhos se tornarem artistas?
C.R. – Super bem. Eu quero que eles sejam felizes. Eles sabem que nem o pai nem a mãe são frustrados, pois somos aquilo que quisemos ser. O Enzo compôs uma canção chamada Patricinha. O Jorge Fernando topou incluí-la na novela, com o Enzo cantando e tocando bateria. Aí, a Sophia também quis participar. No final, a Maria Adelaide criou para ela a personagem Laura K., uma blogueira mirim, que veio concorrer com a Beatrice M. (personagem de Clara Tiezzi).
Brasileiros – Quer dizer que os dois já estão seguindo os passos dos pais?
C.R. – Nem tanto. Por enquanto, o Enzo planeja estudar música em Berkeley, nos Estados Unidos. Já a Sophia é muito nova. Eu digo a ela que ainda é muito cedo para trabalhar e ela reclama: “Mãe, você está travando a minha carreira” (risos). Como mãe, eu prefiro que ela continue só estudando e brincando. Sinto que ter começado a trabalhar muito cedo prejudicou a minha infância e a adolescência. Na época em que eu morava no exterior, tinha de fazer lições e provas por correspondência para não perder o ano na escola. A carreira de bailarina era quase um celibato.
Brasileiros – Falando nisso, você assistiu ao Cisne Negro?
C.R. – Sim, e fiquei emocionada. Esse filme mostra um pouco da pressão que todos nós, artistas, vivemos. O ator é treinado para viver entrando no personagem, mas se não tiver estrutura emocional, acaba engolido. Quando se está em cena, a emoção do personagem desencadeia todo um processo químico: o coração dispara, as pernas ficam dormentes, as lágrimas brotam. É tudo de mentirinha, mas a entrega é tanta que a gente termina exausto. Eu faço terapia há muitos anos e isso me ajuda a não entornar o caldo.
Brasileiros – Você tem medo de envelhecer? Acha que a idade pode afetar sua carreira?
C.R. – A gente vive em um País que tem preconceito com idade, isso não dá para negar. Mas eu não acho que a minha carreira esteja pautada exclusivamente no meu physique du rôle. Nunca tive problema em ficar feia, gorda ou desdentada para fazer um papel. A Donatela, de A Favorita, tinha rugas, cabelo ensebado e jeitão de matrona. Eu não tinha tempo de malhar, pois gravava 18 horas por dia. Quando vi, estava dez quilos acima do peso. É claro que eu não gostava de me olhar no espelho e me ver gorda. Mas olhando para trás, eu vejo que a Donatela foi um dos melhores personagens da minha carreira.
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