Marcha fúnebre, Mahler e dodecafonismo – Até chegar aos 44 anos, quando uma revolucionária cirurgia realizada em Boston, nos Estados Unidos, o fez enxergar, o pianista e maestro Marcelo Bratke fez de seus outros sentidos intérpretes de um universo muito particular. Aprendeu a observar a vida com os ouvidos e fez da música a força máxima de sua expressão. Bratke nasceu com um raro problema congênito que limitou sua visão à quase cegueira e aprendeu a enfrentar as dificuldades aguçando sua sensibilidade. Até riu de si mesmo para driblar as chacotas do ambiente escolar quando adolescente, época em que era chamado “Ceguinho” e ensaiou seus primeiros passos musicais, instigado por um piano que chegou à casa do pai e o fez querer tocar Chopin de ouvido e obsessivamente aprender a Marcha Fúnebre: “Nasci com 2% de visão no olho direito e 8% no esquerdo. Quando eu tinha 13 anos, meu pai se separou da minha mãe e decidiu comprar um piano. Eu o visitava aos finais de semana e um dia o ouvi tocando o Prelúdio nº 4, de Chopin. Pedi a ele para tocar mais vezes e no mesmo dia já havia aprendido metade do prelúdio. Dias depois, a professora dele fez alguns testes comigo e, superexagerada, sentenciou: “Esse menino vai ser um grande pianista”. Eu assistia a muitos filmes de terror e, embora não enxergasse praticamente nada, gostava muito da tensão sonora das trilhas de filmes com o Bela Lugosi e o Vincent Price. Pensava comigo: “Ok, vou me dedicar, mas depois que aprender a tocar a Marcha Fúnebre, eu largo essa professora!”.

Superada a obsessão pelo tema funesto, a guinada para uma árdua profissionalização do jovem aspirante a pianista teria início em uma festa que contou com a ilustre e oportuna presença do maestro cearense Eleazar de Carvalho. Bratke havia aprendido a tocar de ouvido o Concerto em Ré Menor, de Bach – depois de presenciar o maestro João Carlos Martins tocar a peça em um recital na casa de seu pai – e valeu-se de seu melhor artifício para impressionar o regente: “Um belo dia, em uma festa com gente mais velha e muita molecada, vieram me dizer: ‘Marcelo, o maestro Eleazar de Carvalho está na festa. Toque algo para ele ouvir!’. Toquei o Concerto em Ré Menor, de Bach, ele ouviu atento, chegou cerimonioso e disse: ‘Menino, você vai tocar com a Sinfônica de São Paulo, vamos organizar um concerto para sua estreia!’. O grande problema é que eu tocava de ouvido e, já no primeiro ensaio, ele parou a orquestra no meio de uma cadência e disse: ‘Vamos voltar ao compasso 48 e seguir até o fim do primeiro movimento’. Até então, fingi que lia a partitura, mas tive de confessar: ‘Maestro, me desculpe, mas não sei ler, não sei o que é isso de compasso 48. Só sei tocar do começo ao fim. O senhor não pode cantarolar que pedaço é esse?’. Ele simulou com a boca, eu identifiquei o trecho e toquei até o fim. Fiz a estreia e ganhei o prêmio Revelação da APCA, em 1976. Estudava no Mackenzie e, depois do concerto, me tornei um cara famoso na escola. Lembro de uma garota que nunca tinha olhado para a minha cara e veio com o seguinte papo: ‘Pô, eu soube que você mudou, que agora você é pianista’. Minha autoestima explodiu”.

Depois de anos percorrendo o interior de São Paulo com orquestras, em 1982 Bratke foi a Nova York estudar na renomada Juilliard School of Music. Dois anos mais tarde, ele venceu o Concorso Internazionale di Musica, em Tradate, na Itália. O prêmio abriu novas portas na Europa e Bratke decide fixar-se em Londres para estudar piano. Na capital inglesa, seus caminhos se cruzaram com o de familiares do compositor austríaco Gustav Mahler. Novos e importantes passos rumo a uma celebrada carreira internacional são dados: “Fui a Londres fazer audições com a professora de piano Noretta Conci e, por intermédio dela, conheci a Marina, neta do Mahler, que me apresentou à sua tia Anna Mahler, filha do maestro e uma grande escultora. Acabei morando na casa de Anna por um período, mas ela faleceu, em 1988, às vésperas de uma grande exposição que ela faria no Festival de Salzburg (importante festival austríaco na cidade natal de Mozart). A abertura incluía uma grande retrospectiva da obra de Anna, e Marina quis que eu tocasse em sua memória. Fiz o concerto na presença dos maestros Herbert von Karajan, Claudio Abbado e Alfred Brendel – todos meus ídolos que, por conta dessa fatalidade, me viram tocar”.

O concerto em Salzburg e a proximidade com seus heróis reiteraram a conclusão de Bratke de que deveria subverter o aprendizado formal se quisesse evoluir como instrumentista e regente. De volta ao Brasil, encontrou refúgio e uma generosa expansão de horizontes no maestro Hans-Joachim Koellreutter, gênio alemão radicado no País, desde o final da década de 1930, que colocou em polvorosa o ambiente da música erudita brasileira, ao divergir de compositores ultranacionalistas, como Camargo Guarnieri, desafeto intelectual que abominava as intenções de vanguarda e o dodecafonismo defendido pelo alemão: “Voltei para cá e fui estudar com o Koellreutter. Iniciei os estudos de regência e refiz todo o curso de contraponto e harmonia. Como as aulas eram tête à tête, não havia o problema da visão. Esforçava-me para ler e o que não entendia era esclarecido com explicações ao piano. Uma experiência de formação que mudou completamente minha visão da música. Devo muito ao professor Koellreutter. Foi por ele que comecei a me interessar por outras culturas. Ganhei também essa liberdade de não ficar simplesmente na música erudita e construí uma área comum onde posso trabalhar com gente muito diversa, cantoras populares, como a Sandy e a Fernanda Takai, o Julian Joseph, um importante pianista americano de jazz, ou até mesmo um músico de grande força intuitiva, como Naná Vasconcelos”.

REPERCUSSÃO
Internacional Perfomance do pianista é aclamada fora do Brasil

Uma nova visão. Villa-Lobos universal – Se o encontro casual com Anna Mahler ajudou a impulsionar a carreira de Bratke ao posto de um dos mais respeitados pianistas contemporâneos e o encorajou a driblar adversidades para chegar à regência, um novo e emocionante capítulo transformaria sua vida em 2004. Depois de peregrinar por vários centros de pesquisa oftalmológica e enfrentar negativas, devido ao grande risco de torná-lo definitivamente cego, Bratke submeteu-se a uma cirurgia revolucionária: “Aos 44 anos, fiz uma cirurgia, em Boston, que me deu 100% de visão no olho esquerdo e 10% no olho direito. Quando tiraram as bandagens, vi pela primeira vez o mundo como ele realmente é, e essa foi a experiência mais maravilhosa da minha vida. Até hoje tenho grandes surpresas com situações ordinárias. Uma transição que não mudou apenas a minha visão física, mas também a minha visão humanística da vida. A primeira vez que vi o mar, as árvores e o rosto da minha mulher foi mágico. Quando me descobri, também foi muito engraçado, pois cresci ouvindo minha mãe dizer que eu parecia o Alain Delon – um exagero, talvez porque ela gostasse dele – e a Marianita (a artista plástica Marianita Luzatti), minha mulher, dizendo que eu era parecido com o Richard Gere. Não tinha como me certificar, mas tinha absoluta certeza de que não era parecido com nenhum dos dois”, diverte-se.

Depois de redescobrir o mundo à sua volta, Bratke enveredou por um projeto de cunho social que agregaria mais superlativos a sua trajetória de êxitos: a formação de uma camerata com cinco meninos de uma favela do Jardim Miriam, bairro periférico da Zona Sul de São Paulo. O pequeno conjunto foi incumbido de acompanhar Bratke em um concerto no qual ele reuniu, sobre o nome Trilogia do Carnaval, peças de Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e Darius Milhaud (compositor francês que conheceu Villa-Lobos, em 1917). A ideia de unir música erudita a elementos percussivos extrapolou as expectativas do pianista e, com esse mesmo grupo, ele se apresentou pela primeira vez, em setembro de 2004, no Carnegie Hall, em Nova York, para uma plateia de 2.800 pessoas. Êxito de crítica e público, o concerto mereceu uma entusiasmada resenha do jornal The New York Times, com direito a chamada de capa, sob o assertivo título The Two Brazil’s Combine for Night at Carnegie Hall (em tradução livre “Dois brasis se encontram em uma noite no Carnegie Hall”). A junção desses dois universos – erudito e popular – instigou o pianista a seguir adiante com essa soma de linguagens e transformação social por meio da música, para celebrar a obra de Villa-Lobos.

Em 2006, Bratke teve contato com o Programa Vale Música – projeto de educação musical mantido pela Fundação Vale, em Vitória, no Espírito Santo, que agrega 300 jovens – e fez uma primeira viagem à capital capixaba para conhecer de perto a iniciativa. Depois de uma série de audições, escolheu 13 dos mais dedicados alunos para introduzi-los à obra de Heitor Villa-Lobos. Nasceu daí a Camerata Vale Brasil, que, como o próprio nome evidencia, desde o primeiro momento teve total apoio da mineradora: “Essa seria uma orquestra diferente, composta por meninos de 16, 17 anos, que não tinham formação alguma. Muitos tinham aprendido a tocar música na rua – violino, clarineta, percussão – e desenvolvi dentro deles algo parecido com aquele processo que tive quando eu era adolescente. A coisa deu muito certo e fizemos turnês por grandes salas de concerto do Brasil e do mundo, como o Wigmore Hall e o Queen Elizabeth Hall, em Londres, e o Konzerthaus, em Berlim. A Vale nos levou até o Japão, onde nos apresentamos no Santori Hall e no Shirakawa Hall, em Tóquio”.

Em 2007, na ocasião dos 120 anos de nascimento de Villa-Lobos, a Camerata Vale Brasil foi escolhida pelo Ministério das Relações Exteriores para encabeçar o projeto Alma Brasileira, uma campanha do governo brasileiro de abrangência internacional, para difundir a obra do compositor. Além de promover dezenas de apresentações nacionais e internacionais, um boxe foi distribuído a diplomatas do mundo inteiro, contendo um DVD que registrou o concerto inaugural do Auditório Ibirapuera, em São Paulo, em 2008; um CD compilando temas interpretados por artistas eruditos e populares, como Cristina Ortiz e Ney Matogrosso; e um livro, em inglês, narrando a trajetória do maestro carioca que, em vida, levou sua música a 24 países do mundo e regeu mais de 80 orquestras.

Alma Brasileira derivou um projeto ainda mais ambicioso, patrocinado pela companhia aérea TAM, o Villa-Lobos Worldwide, que já percorreu 44 cidades do mundo. Bratke alterna estadias em Londres e São Paulo, e a gravadora inglesa Quartz relançará – na Ásia e na Europa, em oito CDs, até o final de 2012 – a obra completa de Villa-Lobos para piano. O projeto ainda prevê um documentário para a TV, que também ganhará versão em DVD, sobre a vida e a obra do maestro. Bratke ainda se empenha em preencher outra vergonhosa lacuna: tornar acessíveis a músicos brasileiros e de outros países as partituras de Villa-Lobos. Beneficiado pela visão, tem se dedicado à tarefa hercúlea de reescrever toda a obra do maestro para piano: “Os alemães e os americanos, por exemplo, como é que vão tocar Villa-Lobos se não têm acesso às suas partituras? Se quiserem tocar as Bachianas Brasileiras, têm de pegar um avião e vir até o Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, e mesmo as partituras que estão lá são uma calamidade. A obra é muito mal editada e precisa de uma revisão urgente. Os erros do copista e da mulher dele (a pianista Lucilla Guimarães) estão até hoje nas partituras”.

Para alívio dos que zelam pela memória cultural do País, o Villa-Lobos Worldwide segue a todo vapor, sem previsão de encerramento. Uma nova etapa prevê a apresentação da Camerata Vale Brasil em dez presídios brasileiros. Bratke defende que o projeto pode ganhar vários formatos, ir a lugares inimagináveis e conclui com um sorriso e evidente satisfação: “É algo sem fim, que posso levar para o resto da vida”. E por falar em sua vida, a escritora britânica Kate Snell – autora da biografia Diana: Her Last Love, best-seller que narra os últimos dias de Lady Di – soube de sua incrível história de superação do problema de visão e dedicou um extenso artigo no jornal Daily Mail on Sunday, em 2008, onde expôs com rara delicadeza a fascinante história de Bratke e revelou o que, até então, era um segredo guardado a sete chaves no ambiente musical. Kate entusiasmou-se em aprofundar o relato e prepara uma biografia do pianista que deverá ser lançada em 2012.


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