Tradição preservada

Dona Maria Geralda, a Dindinha, uma das mais velhas integrantes do reinado - Foto: Guilardo Veloso

Dona Maria Geralda, a Dindinha, uma das mais velhas integrantes do reinado – Foto: Guilardo Veloso

Testemunhar a passagem de um cortejo de congado, tradição religiosa e cultural trazida ao Brasil pelos negros africanos, é mergulhar em parte da nossa história. Por meio dos congados, os primeiros escravos trazidos ao Brasil procuravam reinventar os grandes impérios e reinados africanos, e também louvar ancestrais e santos católicos, em uma profusão itinerante de instrumentos percussivos, cantos e danças. Preservado pelo empenho dos descendentes desses escravos, o congado é um exemplo de como o sincretismo religioso brasileiro resistiu a séculos de transformações, apesar de ter sofrido muita intolerância e até hoje ser alvo da incompreensão de outros credos religiosos.  

Parte significativa dessa história é contada agora no livro O Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, recém-lançado pela Associação Cultural Cachuera!, organização que se dedica ao estudo e à documentação de tradições populares brasileiras. O reinado é uma parte do congado constituída por um grupo de pessoas que se organiza em torno de uma hierarquia formada por reis, rainhas e capitães, cumprindo determinadas funções ritualísticas em festejos de rua.

Em entrevista à Brasileiros o presidente da Associação Cultural Cachuera!, Paulo Dias, preferiu não utilizar o termo “sincretismo religioso”, quando se referiu à mistura cultural do congado. “Entre nós, é motivo de debate o uso dessa expressão, porque ela carrega uma conotação negativa, como se as religiões africanas se disfarçassem sob o catolicismo. Na verdade, o que houve foi uma apropriação de símbolos católicos por parte das comunidades afrodescendentes”, explica.  

Os integrantes utilizam chocalhos, chamados gunga, nos torozelos - Foto: Guilardo Veloso
Os integrantes utilizam chocalhos, chamados gunga, nos torozelos – Foto: Guilardo Veloso

Ao tratar especificamente da história do Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, um dos mais tradicionais grupos de congado, criado na periferia de Belo Horizonte na década de 1920, o livro também toca em questões como o tráfico negreiro, as histórias das línguas e os reinos africanos. Dias explica que isso se deve à força de grandes personagens do grupo, como o capitão-mor João Lopes, morto em 2004. “Ele foi um dos mais célebres capitães do reinado mineiro, um verdadeiro chanceler da tradição. Outra particularidade do Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá é que ele mantém uma língua africana, a benguela, da qual João Lopes era um dos principais conhecedores. Esse reinado é, sem dúvida, um dos repositórios mais importantes da cultura afro-brasileira”, defende.

Ao longo de quase cinco anos, os membros da irmandade contribuíram com a produção da publicação, em oficinas que reuniram adultos e crianças e promoveram atividades como a criação das ilustrações reproduzidas no livro e a redação de relatos sobre o envolvimento com o reinado. Além desses textos de próprio punho, há também depoimentos editados com relatos históricos de alguns integrantes mais velhos. Para Maria Cristina Troncorelli, uma das coordenadoras do projeto, as oficinas foram um diferencial para o resultado final. “Muitos integrantes da irmandade me disseram que elas serviram para despertar o interesse dos mais jovens e das crianças, que se deram conta do tesouro que tinham nas mãos. Isso para mim foi o mais bonito de tudo.”

Para Leda Martins, pesquisadora, professora e doutora em literatura na UFMG, que participa da irmandade há mais de 50 anos, existe uma carência de pesquisas e informação em relação às manifestações negras, mas principalmente do povo banto, etnia de grande parte dos escravos que vieram para o Sudeste brasileiro. “O congado é tipicamente banto. Sabemos muito sobre a capoeira, sobre o candomblé, mas o congado e o reinado são universos ainda desconhecidos, apesar da sua importância histórica.” Além de, com o livro, contribuir para a memória do congado, a Associação Cachuera! também investe na continuidade dos registros, com o apoio de todos os integrantes da irmandade, que tiveram aulas de arquivologia e propriedade intelectual.

O livro é o segundo de uma trilogia sobre culturas populares. O primeiro trata do Jongo do Tamandaré e o próximo abordará o Batuque de Umbigada. O volume sobre o reinado também foi concebido como material didático para ser utilizado em todas as escolas públicas da região onde atua a Irmandade do Jatobá. “Existe uma lei que obriga as escolas do ensino básico a lecionarem a história dos povos africanos e indígenas, mas há pouco material de referência e poucos professores formados nessa temática. A tradição do reinado sofre bastante discriminação, principalmente na própria região. Ele é visto pela Igreja Católica e pelos vizinhos como uma coisa ruim, ligada à macumba, ao diabo”, diz Maria Cristina. Para Dias, a superação desse estigma só será possível por meio da educação. É ela quem vai colocar capítulos esquecidos da história do País, como essa, em seu devido lugar. “A cultura popular tem de ser tratada com dignidade. Ela sempre é falada na ordem do exótico, do folclore, nunca como algo que realmente integre a história da cultura brasileira”, conclui.

Foto: Reprodução Edições Acervo Cachuera!
Foto: Reprodução Edições Acervo Cachuera!
O Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá
Organização Alexandre Kishimoto, Maria Cristina Troncarelli e Paulo Anderson Fernandes Dias
Edições Acervo Cachuera!, 224 páginas


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