Tradição reinventada

Um lugar que pode orgulhar-se de suas tradições religiosas e festivas é São Luís do Paraitinga (SP). Encravada entre as montanhas da Serra do Mar, a apenas 186 quilômetros da capital paulista, mimosa e encantadora, assemelha-se a um presépio vista de longe. Bem diz Ariano Suassuna: “Às vezes a gente avista, mas não vê”. O desavisado visitante pode pensar que se trata de uma pequena cidade parada no tempo. De fato, São Luís possui o maior conjunto arquitetônico colonial do Estado de São Paulo, com seus casarões, igrejas, ruas calçadas de pedra – tudo tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat) -, que por certo iludem os turistas de primeira viagem, com promessas de antiguidade e nostalgia. Nada mais equivocado.

São Luís do Paraitinga emerge como um corpo coletivo único, em que o arcaico e o contemporâneo, o sacro e o profano, o divino e o carnavalesco são duas faces de uma mesmíssima moeda. O leque de festividades e comemorações é tão amplo, e a população local responde a essas manifestações com tanta e tão igual intensidade, que eu arriscaria dizer que essa cidade é um dos melhores lugares do mundo para se aprender a viver. Para exemplificar, o melhor é partir de duas pontas opostas do leque: a Festa do Divino Espírito Santo e o Carnaval.
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A primeira ocorre no Pentecostes, 50 dias depois da Páscoa, entre maio e junho. Foi trazida há 150 anos pelos jesuítas portugueses e é celebrada todos os anos com pompa e circunstância. Durante nove dias, os fiéis carregam a bandeira vermelha em procissão do Império do Divino para a Igreja Matriz para rezarem a missa e cumprirem promessas que fizeram ao longo do ano. O Império do Divino é uma sala inteiramente montada e paramentada para abrigar o símbolo maior do Espírito Santo, a figura da pombinha branca, cuidadosamente enfeitada pela lendária D. Didi, ilustre luisense há muitos anos responsável pela decoração da festa – dos andores da procissão aos ensaios caprichados com a criançada para a tradicional dança das fitas.

No último fim de semana da festa é servido o afogado, um prato típico da região, feito com carne e batatas, além de arroz, feijão gordo e macarrão. A comida é preparada com a carne de mais de 40 bois doados por fazendeiros e sitiantes ao festeiro, que durante o ano inteiro percorre a região arrecadando alimentos e reunindo fundos para a comemoração. A Folia do Divino, pequeno grupo de músicos que viaja de pouso em pouso nas incursões pelas roças vizinhas e nas casas da cidade, é figura imprescindível na celebração e nas procissões.

Entre o sábado e o domingo há desfile dos bonecões João Paulino e Maria Angu, além de congadas, moçambiques e da emocionante apresentação da Cavalhada de Catuçaba, distrito de São Luís. A procissão final sai numa sucessão festiva de música e ritmos pelas ladeiras da cidade, desde a Igreja da Matriz até a Igreja do Rosário, onde o Mastro do Divino é levantado ao som de fogos de artifício e da Corporação Musical São Luís de Tolosa. Nesse momento é possível sentir a cidade num movimento único de contrição, como se todos os cidadãos luisenses se reunissem num mesmo coletivo devocional e festivo, numa bela celebração de tradição cultural.

Na outra ponta do leque, o Carnaval luisense. Aqui é preciso ressaltar a inovação, a criatividade e a inventividade com que a cidade se empenha na maior festa nacional. Pra começo de conversa, a música de carnaval é própria, ou seja, os luisenses as compõem, cantam e festejam. E o ritmo reinante é a tradicional marchinha, já modernizada e transfigurada numa sonoridade particular, adquirida ao longo de mais de 20 anos de concursos, os concorridíssimos Festivais de Marchinhas Carnavalescas. Coordenados pelo músico e compositor Galvão Frade, esses festivais atraem milhares de foliões à cidade. Já fizeram parte dos júris dos festivais de marchinhas grandes nomes da música brasileira, como Wanderléa, Tetê Espíndola, Chico César, Zeca Baleiro, entre outros, todos seduzidos pela singularidade e criatividade da cidade que, de maneira simples e ao mesmo tempo revolucionária, inventou uma tradição. Munidos de bom humor, os luisenses contam suas lendas e revivem seus mitos com muitas fantasias de chita, adereços, chapéus, cartolas, fitas e muitas, muitas cores. Fazem bonecões seguindo a melhor tradição portuguesa, mas os reconstroem de maneira distorcida, jocosa, divertida e, principalmente, provocativa. Não é possível falar do carnaval luisense sem citar o mais famoso bloco da cidade, o Juca Teles do Sertão das Cotias, e de seu fundador, o artista plástico e carnavalesco-mor Benito Campos. Esse bloco sai no sábado ao meio-dia, sob o sol de “rebentar mamona”, e é nele que a cidade surge novamente como um grande corpo coletivo, oferecendo a todos nós, não-luisenses, a oportunidade de aprendermos a ser mais festivos, mais devocionais e mais brasileiros.




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