A tragédia dos outros ou sobre a travessia de dois mundos

Os recentes, e persistentes, acidentes com imigrantes africanos que tentam desesperadamente cruzar o mar Mediterrâneo com embarcações precárias em busca do mundo Europeu, consistem em uma das maiores tragédias humanas do século 21. São episódios que necessitam de uma reflexão profunda e ampla (o que não será encontrado aqui), que vá além das críticas diante das políticas da União Europeia para os imigrantes. Precisamos entender de um modo mais aberto o que provoca o distanciamento entre o continente africano e a Europa (ou o mundo ocidental como um todo), transformando o Mediterrâneo em um abismo entre dois mundos.

Tais tragédias me fizeram lembrar quando estive na África do Sul em 2008 – na outra ponta do continente. Perguntei a um jovem moçambicano que era meu guia em uma township de Soweto, como que ele encarava a relação da ONU frente ao continente africano. Pude perceber que ele era um rapaz com uma consciência política apurada e eu estava certo que a sua resposta seria dura, algo como “A ONU não está nem ai para nós”. Naquele momento, eu era apenas um estudante de história que pesquisava acerca do genocídio ruandês e estava ávido para

culpar a ONU pela sua “negligência” frente ao conflito. Mas a reposta daquele jovem me surpreendeu. Deu de ombros à minha pergunta, e me disse com certo desdém “ah, às vezes eles nos ajudam”. O que poderia ter me parecido apenas um equívoco no meu prejulgar da consciência política do rapaz, na verdade me evidenciou um abismo entre nos dois. Um abismo entre dois mundos: o meu e o dele, o nosso e o deles. No nosso mundo, ou pelo menos no mundo ocidental, a ONU é um órgão que deveria lutar pela humanidade, enquanto uma unidade, mas que em muitos casos é sujeita a interesses das grandes potências, agindo de maneira seletiva. No mundo dele, a ONU é um órgão o qual não faz parte de seu mundo, quase que um mecanismo estrangeiro, que serve aos estrangeiros.

Eu poderia prontamente adverti-lo, dizendo que deveria exigir que o continente africano tivesse um lugar mais privilegiado dentro da comunidade internacional e dentro dos órgãos internacionais, mas teria sido em vão. Por quê? Por que ele tem razão.

Para entendermos a percepção de meu jovem guia que me levou para as vielas apertadas da imensa periferia sul-africana, precisamos compreender o mundo africano a partir de um dos seus intelectuais orgânicos: Frantz Fanon. Para Fanon, vivemos em um mundo cindido. Um mundo dividido em dois por muros, por postos policiais, por burocracia, por carimbos, por mediterrâneos. Um mundo em que cada um tem o seu lado. O lado do homem europeu (que é o nosso lado) que “fala em nome da humanidade ao mesmo tempo que massacra este mesmo homem em todas as partes do mundo” e o lado dos outros homens que sofrem a hipocrisia do mundo ocidental. São estes homens, ou os outros homens, que sofrem as contradições de nosso mundo e que fazem de tudo para chegar ao nosso lado. Lançam-se em mares, pulam muros, são fuzilados, são massacrados, andam de um lado pelo outro pelo deserto da humanidade, buscando quem sabe a nossa humanidade.

E nós? Fazemos o que com isso? Ignoramos? Sim, mas até o limite que a nossa falha noção de humanidade nos permita. Às vezes precisamos nos horrorizar. Quem não se horroriza com os milhares de homens, mulheres e crianças que se afogam no desespero, ao tentar cruzar o mar Mediterrâneo? Ou com as milhares de pessoas mortas pelo Boko Haram? Precisamos em alguns momentos dizer entre dentes: “que horror”, ou um “como são bárbaros”, ou quem sabe até comprar uma pulseirinha para mostrar que nos importamos. Precisamos disso para reforçar que a humanidade está em nós, e não nos outros.

Mas quando a tragédia é com nós mesmos, ai nos desesperamos, fazemos passeatas, memoriais, chefes de Estado se pronunciam… gritamos para o mundo após o Charlie Hebdo, ou o acidente com a Germanwings, e estampamos manchetes e mais manchetes pelo mundo inteiro. Mas se a tragédia é com os outros: silêncio e pequenas notas nos jornais.

Mas o mais trágico de tudo e que nos evidência a cisão existente na humanidade é o sentimento de proximidade e distanciamento com as tragédias do mundo contemporâneo. Ao lermos sobre o acidente da Germanwings, ou os atentados de Paris, pensamos: “poderia ser com qualquer um de nós”, mas quando um barco afunda matando milhares de refugiados, sentimos que aquilo não nos é algo próximo.

Porém, vivemos uma ilusão. A humanidade não está em nós. A humanidade está no homem, em sua totalidade e multiplicidade. Enquanto continuarmos a viver em um mundo cindido, nunca encontraremos a unidade humana, que é a sua própria pluralidade.

É a partir dessas tragédias que precisamos compreender o que é o homem em toda a sua magnitude.

Mas não seremos nós que ensinaremos o restante do mundo o que é o homem. São os outros que nos ensinarão o que é o ser humano. E precisamos aprender logo, antes que a humanidade afunde no mediterrâneo com os imigrantes e seus navios, deixando na superfície apenas a intolerância ou a indiferença.

Enquanto isso, nós (do mundo ocidental) continuaremos a viver na ilusão, achando que estamos seguros dentro de avião que acelera desenfreadamente em rota de colisão.

 

*Professor-adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), doutor em História pela PUC-SP com a tese: Etnicidade e luta de classes na África contemporânea: África do Sul (1948 – 1994) e Ruanda (1959 – 1994).


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