Os refugiados chegaram então à Europa e nos lembraram de que há refugiados. A história da humanidade está repleta de episódios de desenraizamento de coletivos humanos que, por vezes às centenas de milhares, saem em busca de abrigo, fugidos de suas casas e de sua terra.
Antes dessas vagas de seres humanos vindas da África e do Oriente Médio aportarem em terras europeias, os refugiados e os deslocados internos já contavam dezenas de milhões de pessoas. Não havia nisso nada de novo.
Mas o fato de que a questão dos refugiados é tão crônica e tão profunda que mal cabe falar em crise não impede que só a tenhamos descoberto quando chegou a isto que alguém poderia chamar o coração do mundo. Na verdade, sequer a descobrimos de fato porque apenas lhe percebemos esta ponta saliente.
Ainda resistimos a perceber os milhões que lotavam e ainda lotam os campos de sofrimento na Síria, no Líbano, na Turquia, na Jordânia, no Iraque, no Irã e em tantos outros lugares. Estes eram e ainda são como aquela árvore do exercício de filosofia, que, ao cair, não fazia barulho porque não havia ali quem pudesse ou quisesse ouvir.
Eram milhões de pequenas e grandes tragédias, conhecidas da história, mas invisíveis para nós. Quando elas nos chegam enfim, somos tocados em nossa humanidade e por algum tempo temos consciência do que deve ser o sentimento de perda, de confusão, de incerteza que acompanha cada indivíduo que foi impelido pelo medo a buscar a sobrevida em outro lugar.
Por um tempo apenas. Porque logo a nossa sensibilidade se sentirá cansada, exausta e porque logo as notícias da desgraça já não serão novidade que venda. O sofrimento se recolherá então aos lugares do mundo em que não estamos e que nos são invisíveis.
Hoje, no entanto, ele escapou aos nossos pontos cegos e se impõe ao nosso olhar. A sua observação não nos ensina apenas a empatia. Se soubermos jogar um olhar crítico, perceberemos também a pegada que nos diz serem também os homens os responsáveis pelas tragédias dos homens. E perceberemos a tendência à mentira por que os homens negam as próprias responsabilidades. E perceberemos também como mesmo a tragédia se transforma em moeda de troca e objeto de jogo.
Nestes dias de clarividência e de empatia, o meu olhar projetou em direção ao passado as cores do sofrimento que enxergo hoje. Entre os episódios que me visitaram com sua potência está o dos refugiados judeus que, ao longo da Segunda Guerra Mundial, tiveram que abandonar tudo, casas, países de nascimento e nacionalidade, histórias pessoais que voltavam no tempo por gerações e que haviam forjado identidades e códigos culturais profundamente enraizados nos territórios em que viviam. Vislumbrei a enormidade daquele sofrimento e vi nele a imagem refletida dos refugiados que hoje vemos atravessando mares e lotando trens.
Talvez a força com que essa tragédia particular me golpeou tenha a ver com as notícias dos refugiados palestinos, alguns forçados a abandonar suas casas e sua terra em 1948, outros em 1967, e tantos de seus descendentes, vivendo todas essas décadas em campos de refugiados na Síria, que se viram obrigados agora mais uma vez a vagar em busca de novo abrigo.
O fato de um povo de tantos refugiados ter se permitido construir a própria casa, a própria segurança, expulsando da terra os seus donos históricos e fazendo deles refugiados talvez seja um bom indicativo do que vale o homem. Isto, somado ao fato de que um povo que enfrentou a ameaça do desaparecimento enquanto tal tenha construído um Estado que hoje opera justamente a tentativa de apagamento da identidade palestina, é o que torna difícil não imputar a Israel um crime especialmente imperdoável.
De fato, no Oriente Médio, não há como abordar o tema dos refugiados sem começar pelos cinco milhões de palestinos que estão nessa condição. E os mesmos Estados que têm perpetuado o seu drama ao longo das últimas sete décadas são responsáveis hoje por este novo agravamento.
E junto com os palestinos, estão sendo jogados no desterro e na incerteza sírios, iraquianos, líbios etc.
Se quisermos buscar os responsáveis e prestarmos atenção aos discursos de alguns líderes ocidentais, teremos a impressão de que de algum modo os refugiados resultam de desastre natural, ou que fogem apenas dos vilões de plantão.
Ainda quando, por exemplo, se reconhece hoje a responsabilidade de um grupo como o Estado Islâmico pela fuga em massa das pessoas, o surgimento desses grupos é percebido como geração espontânea ou como responsabilidade também dos vilões de plantão.
Os norte-americanos, cujo discurso parece sempre ser o portador de todas as verdades, não confessam qualquer relação entre a sua intervenção ilegal no Iraque e o caos que se instalou ali. Tampouco aceitam a responsabilidade pelos mortos, que contam ao menos um milhão, e pelos milhões de deslocados e refugiados. E muito menos parecem perceber que o Estado Islâmico, que espalha terror e destruição no Iraque e na Síria, e mais refugiados, é resultado direto daquele seu empreendimento de exportação da democracia.
Os franceses não parecem muito mais dispostos a reconhecer que a sua aventura na Líbia, no afã de mostrarem-se ainda aptos a distribuírem bofetadas imperiais, provocou um desastre quase sem precedentes na velocidade de sua execução, e mais refugiados.
Outros Estados, ainda que não sustentem com a mesma graça o discurso da ética e de todas as outras coisas boas, escondem-se atrás das próprias sombras quando se trata de suas responsabilidades em relação aos processos que vêm resultando em crises humanitárias gravíssimas.
Esse é o caso, por exemplo, da Turquia e da Arábia Saudita quando não parecem perceber a conexão entre o seu apoio ao Estado Islâmico e outros grupos na Síria e a destruição que vai expulsando os milhões. E é o caso da Arábia Saudita com as suas justificativas vazias para a destruição sistemática do Iêmen, que também produz refugiados.
Todos esses não são apenas responsáveis, ao menos em parte, pelas tragédias de desterro e de abandono. Eles o são também pelo que os fluxos de refugiados representam em termos de perda de diversidade étnica, religiosa, cultural que vão acometendo a região e em termos de apagamento da história de convivência que se estendia por milênios.
Ao apoiarem ou deixarem livre curso a grupos cujo credo é a eliminação de todo o diferente, ao afirmarem em permanência a explicação sectária para os conflitos, ao favorecerem a nova fragmentação dos territórios de acordo com critérios de um nacionalismo identitário exacerbado, esses atores operam o esfacelamento do tecido social, que dificilmente poderá se recompor, com o objetivo quiçá de fazer avançar as próprias agendas políticas.
*Salem Nasser é professor de Direito Internacional da FGV Direito SP.
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