UM DIA NO CAIS, João Antônio
Armazéns, guindastes, navios imensos, bondes, caminhões. Bares, boates, hotéis, vozerio nas calçadas. A zona do cais de Santos, um dos maiores portos do mundo. Nesse cenário em que marinheiros, crianças, mulheres, se agitam dia e noite, João Antônio viveu um mês. E trouxe, de lá, este conto-reportagem.
O menino equilibra a sacola na bicicleta.
De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta, e vem furando para as luzes na zona do cais!
– Êpa!
Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Esta quase sòzinho* com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.
Cinco da manhã. As vassouras de piaçava correm nas mãos dos dois garçãos, peitos de fora, calças arregaçadas, tamancos. Batem, esfregam o chão da calçada do Bar Café Restaurante Chave de Ouro.
A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro ôlho aceso fica no rabo da manhã. E fica.
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O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Agüenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou a paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados.
O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas.
– Vai lavar roupa, sua fedorenta!
Rita Pavuna e Odete Cadilaque se pegam. Duas das que zanzam batalhando na noite, conluiadas nos trampos, nas arrumações para surrupiar fregueses e levantar a grana, ainda que devem aturá-los. É lei – malandra que é malandra, no cais, não deve ir com trouxa. Toma-lhe o milho no jeito, debaixo de picardia e manha. Carne é carne e peixe é peixe.
Mas por umas ou por outras, de ordinário, se enfarruscam num desentendimento. E as duas acabam se encarando. Como inimigas. Salta um desacato:
– Vai lavar roupa, sua nojenta!
Seis e meia e somem as luzes dos trilhos dos bondes. Últimos músicos cabeludos, guitarras elétricas a tiracolo, passam em grupo, devagar. Entram no botequim, se chegam para o balcão. Pedem média, pãozinho, manteiga. E é como se não houvesse fregue. Briga de mulher pode ir quente, gente do cais não faz fé.
-Nem vem louca, que não tem. Vai cuidar da tua vida! Desguia. Sai da minha avenida.
Canalhas, cínicas igualmente e ligadas, mancomunadas na catança dos otários. Mas Rita Pavuna e Odete Cadilaque se apartam num desses tempos quentes. Uma querendo comer a outra pela perna, pela grana de algum freguês. E se afastam. Horas, horas. Cada uma para o seu canto e uma não quer nem ver a cara da outra. Piranha não come piranha.
– Me deixa. Qu’eu não sou parente nem da sua lavadeira. Vê lá. Ih,Manoel, como você tá por fora…
Chamar de Manoel é descaso. Xingo, menosprezo, deboche. É desconsiderar.
Abandona a turra. Rita, culpada, se larga para outros lados. Deixa a parceirinha falando sozinha. Mais tarde, na virada dos ponteiros, as duas se voltarão, se entenderão depressinha. É aparecer um bom gringo, presa da boa, e irão em cima juntas, juntinhas. Aí irmãs, outra vez. Jogarão açúcar ao freguês e lhe morderão até os últimos.
(…)
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