Há três anos, um grupo de cerca de cem homens reúne-se para uma viagem no tempo. Montados em cavalos ou mulas, eles percorrem o trecho paulista do caminho feito pelos primeiros tropeiros na estrada construída pela Coroa portuguesa, em 1733, para ligar o sul ao sudeste do País. São 300 quilômetros e 22 cidades, entre elas Itararé, Taquarituba, Taquarivaí, Paranapanema, Itapetininga, Araçoiaba da Serra e Sorocaba. Descendentes desses personagens do Brasil colônia, eles fazem parte da Associação Intermunicipal Circuito Caminho Paulista das Tropas e esperam tornar essa viagem um evento popular importante. Quando recebi o convite para me juntar ao grupo, não imaginava o que estava por vir. Apesar de ter pesquisado bastante sobre o assunto, eu não tinha idéia da importância histórica desses trabalhadores brasileiros cuja atividade nasceu no Brasil colônia, atravessou a Monarquia, a Proclamação da República e ainda hoje se mantém muito viva na memória dos moradores dos locais por onde passamos.

Em meados do século XVII, o Brasil ainda vivia o auge do ciclo da cana-de-açúcar no Nordeste quando os portugueses passaram a incentivar o desbravamento dos “sertões” ainda inexplorados em busca de ouro e pedras preciosas. Foram os paulistas que fizeram as primeiras grandes descobertas de ouro, principalmente em Minas Gerais, o que significou um grande volume de carga a ser levada para o litoral, de onde partiria para Portugal. Como era muito pesada para o lombo dos escravos e índios, e até mesmo para os cavalos, foram pensadas novas estratégias de transporte.
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Os exploradores precisavam de um animal mais forte e resistente, como a mula, resultado do cruzamento da égua com o jumento. A Coroa portuguesa, temendo a invasão dos espanhóis no Rio Grande do Sul e aproveitando os recursos naturais existentes, estimulou a pecuária naquela região. Para que os animais pudessem chegar a São Paulo, Portugal financiou a construção da Estrada Real, que ligava as cidades de Viamão (RS) a Sorocaba (SP). Com isso, iniciou-se o fluxo de gaúchos e paulistas por toda a região, misturando famílias e provocando a miscigenação cultural presente até os dias de hoje no interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

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  Os homens nas tropas Os homens responsáveis pelo transporte das mulas eram chamados tropeiros. Eles foram os grandes responsáveis pela integração brasileira, dando continuidade ao trabalho iniciado pelos bandeirantes. Ser tropeiro significava ter uma profissão de excessivo labor, mas também de forte sensação de liberdade. Por passarem a maior parte do tempo viajando solitários, tinham na viola uma grande companheira, o que foi muito importante para a difusão da música caipira. Eram também transportadores de cultura, levando notícias, encomendas e novos costumes pelas cidades por onde passavam. Nos pousos, à noite, em volta da fogueira, contavam causos e declamavam poesias, prática muito comum até os dias de hoje. Para realizar uma viagem de quase dois mil quilômetros em cerca de quatro meses, eram necessárias também muita responsabilidade e disciplina. Em cada tropa, havia três posições disputadas entre os tropeiros: o madrinheiro, o tocador e o arreador. Não havia mulheres. Os madrinheiros eram meninos de até 15 anos que encabeçavam as tropas. Durante a viagem, iam montados numa égua onde se pendurava o cincerro, uma espécie de sino que conduzia os outros animais. Nos pousos, eram os responsáveis pela comida. A culinária tropeira, que hoje tanto se aprecia, era especialidade dos meninos. Os pequenos chefs preparavam o famoso feijão tropeiro, o virado (feito de farinha de mandioca), o arroz de carreteiro, a paçoca de carne (feita de farinha de milho) e o café. Tudo feito em uma fogueira chamada trempe, formada por três estacas de madeira fincadas no chão em forma de triângulo, onde se penduravam as panelas. O tocador tinha a função de cuidar da tropa. Responsável pela bagagem, esquematicamente dividida entre os animais, ele fazia a viagem a pé e descalço, orientando o trajeto. Entre suas tarefas, estava descarregar os animais no pouso e prepará-los para cada nova jornada, juntando todos os burros com o som do cincerro da égua madrinheira. O arreador era o dono da tropa ou o seu representante. Sempre bem vestido e o único calçado, ele ia montado numa mula bem arreada. Era o administrador, o chefe. A ele cabia observar o trabalho dos outros, mas também consertar arreios, ferrar os animais, fazer curativos e tosas. Era o responsável pelas compras e pagamentos nos ranchos, além de negociar a carga.

A viagem Comecei a viagem seguindo a tropa de jipe, mas não resisti por muito tempo ao convite para seguir montada. Viajar em cima de uma mula e conversar à vontade com os tropeiros durante a jornada era bem mais interessante. Primeiro aceitei uma carona na égua Fada, guiada pelo menino Gabriel. Em cada uma das 22 cidades que cruzamos, alguns tropeiros se revezaram para carregar as bandeiras que homenageavam nosso País e as cidades participantes. Durante mais de 200 quilômetros, fomos acompanhados por uma cadela, que apelidamos de Tropeira. O menino Gabriel foi muito valente ao me levar até o início da fila para fotografar, montada de costas na Fada, os tropeiros entrando em Taquarivaí. Se antigamente eles andavam por regiões ermas, trombavam com índios e vilarejos recém-criados, em nossa aventura passamos por assentamentos do Movimento dos Sem Terra (MST), grandes plantações e também por casas simples com moradores sentados em cadeiras na calçada, que nos deixavam usar seus banheiros ou nos ofereciam água. Mais adiante experimentei o trote macio da mula Bolívia, do seu João Ventura, organizador da comitiva de Sorocaba e um ótimo contador de histórias. Durante toda a viagem ele foi me ensinando o que era o tropeirismo, principalmente em nossa parada na Fazenda Ipanema. Nesse dia, acordamos às 5 horas da manhã para preparar o café junto com o seu Anselmo, cozinheiro de mão cheia da comitiva de Itararé, que cozinhou um delicioso virado paulista para acompanhar o café preto. Ficou claro que a palavra tropeiro transcendeu sua função primária. Hoje, significa todo homem que tem alguma relação com a cultura gaúcha, a campineira, o interior do País, a terra, o transporte, a circulação de informações, a força e a coragem do brasileiro. Características expressadas em suas vestimentas, como o lenço e a bombacha, e em hábitos como o chimarrão e a culinária típica. A última cidade do nosso percurso, Sorocaba era, no século XVIII, uma vila no entroncamento de diversos caminhos abertos antes mesmo da criação da Estrada Real. Os tropeiros paravam ali para descansar os rebanhos, também de gado e cavalos, e logo começavam a realizar negócios com os animais. Dali facilmente se subia para a Bahia ou se ia para as regiões das minas. Aproveitando-se desse movimento, a Coroa portuguesa passou a cobrar tributos por animal que passasse por pedágios instalados ao longo da estrada. A partir de 1750 institucionalizou-se um encontro anual na cidade para a realização do que se tornaria uma grande e agitada feira, que existiu durante quase 150 anos. Durante dois meses, eram comercializados jóias, doces, serviços de ferreiros, etc. Encontrava-se de tudo, como acontece ainda hoje nas feiras existentes no centro e no norte do País. Havia também muita diversão, com apresentação de circos, companhias teatrais, músicos, bailes e jogos. Mesmo sem todos esses festejos, a nossa bem-sucedida viagem também terminou em Sorocaba, com um emocionante desfile pelas ruas do centro da cidade. "Triste vida a do tropeiro, Que nem pode namorar; De dia reponta a tropa, De noite toca a rondar." (Quadra popular)

Questão de honra

Os tropeiros eram tidos como homens de extrema confiança, respeito, moral e boa conduta nos negócios. Esses eram honrados, literalmente, pelo fio do bigode, arrancado e colado nos documentos. Entre o código de ética deles estavam:

  • Nunca deixar uma porteira aberta;
  • Respeitar a propriedade alheia;
  • Saudar a todos que encontrar no caminho;
  • Nunca entrar na casa de alguém pela porta da cozinha, bater sempre na porta da frente;
  • Respeitar as mulheres;
  • Ser leal aos companheiros;
  • Ser correto nos negócios;
  • Honrar a palavra dada.
O último carro de boi


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