Tropicália em régua e compasso

o artista gráfico baiano Rogério Duarte em retrato feito no início dos anos 1960 (foto: MAM-RJ / Divulgação)
o artista gráfico baiano Rogério Duarte, em retrato feito no início dos anos 1960 (foto: MAM-RJ / Divulgação)

Um retrato multifacetado do artista gráfico, poeta e compositor Rogério Duarte. É o que revela a mostra Marginália I, em cartaz até 26 de agosto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Composto por 70 itens, entre pôsteres cinematográficos, capas de discos e livros, poemas, cartazes, fotografias e documentos pessoais, o mosaico diverso e multicolorido reunido no MAM atesta o quanto, a partir da segunda metade do século 20, a trajetória de Rogério tornou-se indissociável de alguns capítulos históricos para a cultura do País. Não por acaso, estão na mostra peças emblemáticas, como o cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra-prima do Cinema Novo de Glauber Rocha, lançado em 1964, e capas de obras fonográficas divisoras, como os álbuns homônimos lançados por Caetano Veloso (1967) e Gilberto Gil (1968), dois embriões do tropicalismo enquanto gênero musical.

Unanimidades à parte, Marginália I é também um convite ao público para ir além do usual fetiche estético desses trabalhos consagrados. A mostra, que também contempla a publicação de um livro de mesmo nome (Editora MAM-RJ), amplia a compreensão sobre o artista e permite ao público fazer uma leitura mais diversa do que foi a tropicália. O movimento, circunscrito por muitos como mero fenômeno musical e não como uma ação coletiva, aglutinou outras frentes culturais para capitular uma série de convenções e estatutos que foram derrubados com a adesão e interlocução de outros grandes personagens, como o artista plástico Hélio Oiticica, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o poeta Waly Salomão e o romancista José Agrippino de Paula.

Com curadoria do designer gráfico alemão Manoel Raeder e colaboração do músico Diogo Duarte, que é filho de Rogério, Marginália I traz à tona registros esquecidos, como o material gráfico de Apocalipopótese, evento multimídia realizado pelo baiano na área externa do MAM carioca em 1968, e trabalhos que revelam outros interesses do artista, entre eles a estrutura metálica Musicúpula, espécie de teia geodésica que acolherá, em 12 de agosto, uma jam session com canções e temas instrumentais compostos por Rogério – aos 13 anos, ele descobriu a paixão pela música ao decifrar os acordes de um cavaquinho e, aos 17, tornou-se devoto das seis cordas do violão, com o qual compôs mais de 300 peças musicais.

Aos 76 anos, Rogério Duarte reside em Salvador. Com a saúde debilitada, ele preferiu não comparecer à abertura da mostra, realizada no final de junho passado. No entanto, pretende participar da jam session conduzida pelo filho Diogo, que deve reunir amigos de sua geração e antecederá o encerramento de Marginália I. Mesmo recluso, por ocasião da mostra, Rogério gentilmente falou à Brasileiros. Em princípio, as respostas ao roteiro de perguntas enviado ao mestre baiano seriam entregues por e-mail, mas chegaram à redação por meio de um arquivo de áudio em formato MP3, com o registro de sua voz grave e pausada. Entre outros temas, discorridos com extrema lucidez, Rogério também se opôs às interpretações rasas do tropicalismo. “Eu considero que essa é mais uma história mal contada da cultura brasileira. Houve vários tropicalismos e posso até ter sido um dos mentores do movimento, mas eu era muito mais engajado em sua totalidade, que incluía a música, a literatura, o cinema e outras coisas mais.”

O bode de Rogério com essa visão estreita disseminada, sobretudo com o culto tardio ao movimento na Europa e nos Estados Unidos, ganha tom enfático quando ele responde sobre como reagiu ao chamado “enterro da tropicália”, ato simbólico interpretado pelos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil no último episódio do programa Divino, Maravilhoso, apresentado pelos conterrâneos na extinta TV Tupi em 27 de dezembro de 1968, 14 dias após o decreto do AI-5. “Não tenho nada a ver com o parto ou com o enterro desse tropicalismo da mídia musical representado por Caetano e Gil. Eu estava no Rio de Janeiro (o programa era gravado na sede paulista da emissora) e nem soube do enterro. Muito tempo depois é que fui saber dessa atitude de ambos.”

Mas engana-se quem enxerga nesse depoimento um ranço do artista gráfico com relação a seus pares de movimento. Ao tratar da recente polêmica que envolve a apresentação da dupla baiana em Israel, prevista para acontecer em Tel Aviv no dia 28 deste mês de julho, e que tem sido alvo de insistentes pedidos de boicote em defesa da Palestina, Rogério desconversa e sai em defesa das liberdades individuais dos velhos amigos. “Não tenho opinião a respeito. Isso faz parte da carreira de Gil e Caetano, que devem ter seus motivos, que procuro respeitar, e não os julgo.”

Ao longo da gravação, a voz que surge dos alto-falantes beira o gutural e expressa opiniões difíceis de divergir. Em alguns momentos, ela paira em silêncio para, depois, desencadear fragmentos de uma história complexa e tortuosa. Poucos artistas personificam como Rogério o misto de perseverança e desencanto experimentado pela geração que viveu no Brasil dos anos 1960 e 70. Em meio à crescente movimentação de oposição ao golpe civil-militar de 1964, Rogério tornou-se alvo preferencial da ditadura. A resposta dos militares à estética de choque desencadeada pelos tropicalistas veio de forma atroz e com a mesma eficácia da repressão destinada a núcleos de resistência – o Centro Popular de Cultura, os CPCs da União Nacional dos Estudantes (UNE), e instituições como a Editora Vozes, reduto católico de intelectuais, como Leonardo Boff e Frei Betto, que defendiam a chamada Teologia da Libertação, de orientação marxista. Aliás, duas frentes de colaboração regular de Rogério na primeira metade dos anos 1960, ocasião em que ele migrou da Bahia para o Rio de Janeiro: no CPC, ele foi artista gráfico do núcleo de propaganda; na Editora Vozes, atuou como diretor artístico.

O exercício de atividades como essas, consideradas subversivas pela ditadura, fizeram com que Rogério, ao lado do irmão, o engenheiro Ronaldo Duarte, protagonizasse um dos primeiros episódios que tornaram pública a prática crescente da tortura. A caminho da missa de sétimo dia do secundarista Edson Luís, morto por militares no restaurante estudantil Calabouço, crime que motivou a chamada Passeata dos Cem Mil, Rogério e Ronaldo foram presos em 4 de abril de 1968 e submetidos à tortura por uma semana. O episódio é relatado com amargo lirismo no capítulo intitulado A Grande Porta do Medo, do livro Tropicaos, lançado pela Editora Azougue, em 2003. Nele, Rogério relata como ele e o irmão, de maneira alternada, um observando o sofrimento do outro, foram submetidos a toda sorte de sadismos dos torturadores. “Os fios elétricos nas costas, na boca, nas axilas. Os fósforos apagados nas costas, o café quente derramado no sexo. É preciso não contar como se tudo tivesse acontecido. É preciso estar ali todo o tempo necessário, é preciso morrer de medo e regar a flor do medo que nascerá sobre o túmulo até a aparição do fruto, mesmo que seja o fruto dourado do ódio, porque as sementes… Que posso eu dizer das sementes ou que haverá o fruto e as sementes a não ser com a loucura de minha esperança?”, assim descreve Rogério, em Tropicaos, a visão do irmão Ronaldo sendo torturado.

Loucura e esperança foram consequências diretas da tortura enfrentada por Rogério, que não se furtou a denunciar o episódio para a imprensa do País e foi silenciado pela ditadura do general Médici com uma internação compulsória, entre 1969 e 1971, no Pavilhão Psiquiátrico do Engenho de Dentro, uma das três unidades fluminenses do assombroso hospício Pinel. “Houve uma brutal interferência, uma ruptura na minha vida a partir desse episódio, mas não deixei de viver ou trabalhar. Depois disso, continuei fazendo capas de livros para a Editora Vozes, até que tive de me refugiar da perseguição militar.” Outra breve pausa de silêncio e o sopro grave da voz de Rogério volta para revelar o local onde, vivendo na clandestinidade, mergulhou em uma busca esperançosa por elevação espiritual. “Eu tinha a mata do interior da Bahia como minha Sierra Maestra particular (Rogério faz alusão ao refúgio das tropas de Fidel Castro e Che Guevara nas cordilheiras cubanas). Foi na Serra da Violeira que me refugiei. Em minha vida, desde a infância, a busca espiritual sempre foi uma constante. Por uma questão de necessidade de sobrevivência, ingressei no movimento Hare Krishna e dele faço parte até hoje. Sou um estudioso da cultura védica.”

Essa faceta mística desencadeada por Rogério entre a segunda metade dos anos 1970 e a década seguinte, o fez questionar a funcionalidade de continuar exercendo a carreira de artista gráfico, ofício que, para ele, era atrelado a um contexto sociocultural combatido por forças nebulosas, que deram fim ao sonho de sua geração de construir uma sociedade mais justa e progressista. Forças que, segundo ele, ainda são recorrentes. “É impossível se desvencilhar de qualquer coisa que faça parte da nossa vida, a menos que a gente se desvencilhe da própria vida. Na verdade, não acredito que esse tenha sido um momento isolado. O Brasil é um País de muitos momentos sombrios e aquele foi mais um, que tocou profundamente a minha geração.”

A voz de Rogério persegue agora as perguntas finais do roteiro. Hesitante, ele questiona: “Meu Deus, será que vai gravar? Vamos em frente, espero que esteja gravando”. O comentário precede a última questão, que aproveita o gancho da anterior para registrar sua opinião sobre a crescente onda de reacionarismo que, ironicamente, assola o País em pleno século 21, quase 50 anos depois de a geração de Rogério acreditar que tudo poderia ser divino, maravilhoso. Questionado se ele receia que essa retração, simbolizada pela eleição do Congresso mais reacionário desde o golpe de 1964, pode levar o País a reviver os dias trágicos da ditadura, Rogério conclui, pragmático, como a desafiar nossa capacidade de resiliência: “Não sei bem o que significa isso. Não participo muito desse tipo de discurso de padrões, reacionarismo/não reacionarismo. Acho que o buraco é mais embaixo, mas não tenho receios, porque acredito muito na lei da história. Se acontecer, é porque não houve meios de evitar. Então, se vier, teremos de enfrentar tudo novamente. Com o mesmo e até redobrado vigor.”


Comentários

Uma resposta para “Tropicália em régua e compasso”

  1. Avatar de Victor Hugo Oliveira Silva
    Victor Hugo Oliveira Silva

    Primeiramente gostaria de parabenizar a reportagem, que de um jeito claro apresenta esse artista múltiplo de um maneira interessante sem reduzi-lo a nenhuma de suas facetas. Meu nome é Victor Hugo, sou mestrando em antropologia social e o tema de minha dissertação é justamente a trajetória de Rogério Duarte como meio para considerar a relação entre contracultura e espiritualidade no Brasil. Li na reportagem que ele concedeu uma entrevista ao repórter responsável pela matéria. Gostaria de saber se haveria possibilidade de eu entrar em contato com essa gravação, obviamente que não iria publicá-la ou algo assim, senão que ela iria ser mais um elemento a constituir meu corpus de análise. Ficaria imensamente grato a vocês caso houvesse a possibilidade de entrar em contato com esse material, seria de grande importância para minha pesquisa. Um abraço e obrigado pela atenção e pela reportagem!

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