“Tucanaram a prisão”

Foto: Diego Rousseaux
Foto: Diego Rousseaux

A crise econômica que domina o País acabou por expor ainda mais as fragilidades do governo Michel Temer. Em vez de o ajuste fiscal e de a PEC do teto de gastos contemplarem a demanda do mercado financeiro e estabilizarem a economia, o que assistimos no último semestre de 2016 foi ao aumento da recessão. Esse quadro não favorece nem os empresários nem a classe trabalhadora, que se vê cada vez mais precarizada pela terceirização e encurralada pelas reformas trabalhista e da Previdência. É o preço que se paga por um governo cujo programa não foi eleito. “Tomaram o poder achando que era só se livrar da Dilma que as coisas funcionariam. Vai levar anos para resolver e superar esse desastre político, institucional, civilizatório”, conclui o jurista Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP).

Entre as consequências apontadas por Bercovici estão a suspensão da Constituição e do Estado de Direito, a desmoralização da política e a quebra da indústria nacional. Para Bercovici, a solução passa por uma nova postura do Estado em relação aos direitos sociais dos trabalhadores e pelo endosso dos empresários às reivindicações populares. “É bom os empresários perceberem que a vida deles está ligada ao mundo do trabalho. Porque senão não só não vai ter quem compre os produtos que eles fabricam como também não vai ter quem trabalhe na fábrica deles”, alerta.

Autor de Constituição Econômica e Desenvolvimento: Uma Leitura a Partir da Constituição de 1988 (Editora Malheiros, 2005), Bercovici analisa, nesta entrevista, o papel do Judiciário no contexto político, as consequências do modo de operar da Lava Jato para o sistema de Justiça, a onda de ódio contra Lula e o PT, a culpa dos bancos e dos tribunais de contas na corrupção e aposta que o próximo bem nacional a ser privatizado será a água.

Brasileiros – A desmoralização da política abre caminho para iniciativas supostamente apartidárias, com candidatos descolados da imagem de políticos tradicionais. Como o senhor vê esse processo?
Gilberto Bercovici – Eu acho isso muito ruim porque na realidade não é apartidário. Na política você tem lados, tem tendências ideológicas. Quando você diz que é apartidário você já está tomando um lado e está querendo esconder o seu, querendo esconder qual é o seu vínculo. Geralmente são projetos conservadores que fazem isso. E essa desvalorização do político, na realidade, é muito ruim para a sociedade porque você permite saídas de força ou tecnocráticas que acabam não tendo nenhum tipo de controle social. É o que o Brasil está vivendo: todo político é taxado de corrupto, incompetente, ineficiente. Fica se esperando, então, que Ministério Público, Judiciário, Polícia Federal, artistas… que alguém tome a frente. Até militares, tanto faz. Se você é juiz, promotor, procurador, militar, se é policial – todo mundo é cidadão e tem direito de ter sua opinião política – e quer fazer política, tem que disputar no voto. Isso não quer dizer que o sistema político seja perfeito, pelo contrário. Mas não adianta ter salvador da pátria ou um mágico, porque isso não funciona, não funcionou em nenhum lugar do mundo. Salvador da pátria sempre terminou pior do que começou. A sociedade tem que ter o debate público, a garantia de pluralismo, de ideias, e as pessoas assumindo o seu lado.

O senhor declarou recentemente que “a Constituição de 1988 acabou”. O que quer dizer?
A Constituição de 88 surgiu na transição do regime militar para a democracia. Não é tão progressista quanto gostaríamos que fosse, mas também não é tão atrasada quanto outros gostariam que fosse. Não é 100% a posição de ninguém, o que é bom, porque mostra que houve uma pactuação para que ela fosse elaborada. Logo após a sua promulgação começa a onda neoliberal, e passa a ser acusada de ser responsável pela ingovernabilidade, o que não é verdade.

Como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do teto de gastos contribui para isso?
Essa emenda suspende por 20 anos a Constituição. A Constituição não está em vigor porque os gastos estão suspensos. O que vale é o que eles estabeleceram, que chamam de Novo Regime Fiscal. Vamos supor que se consiga um dia restaurar o regime democrático no Brasil, que volte a ter eleições legítimas e governantes legítimos. Já seria um avanço. E aí o que se vai fazer com isso? Vai se tentar restaurar a Constituição de 88? Vai se tentar reformar? Vai ter que fazer outra… E o problema todo é que não sei se dá para restaurar ou para voltar porque ela esgarçou.

Que papel tem tido a Operação Lava Jato no modo de operar do Judiciário?
A forma de atuar da Lava Jato é muito estranha para o Direito Penal tradicional, mas não é totalmente fora do sistema porque se baseia e muito numa série de acordos e tratados que o Brasil assinou de combate à corrupção, de vigilância e transparência. Utilizaram-se de instrumentos que as pessoas não conhecem, que não são muito usados, com exagero e com violações. Mas não é tudo deles que é usado de maneira equivocada ou abusiva. Porque não foram eles que inventaram. Eles começaram a usar, muito influenciados pelos americanos, mas com diferenças também. Por exemplo, a delação premiada é algo que vem dos Estados Unidos, mas o Ministério Público dos Estados Unidos não faz o que eles fazem de legitimar o dinheiro roubado! O sujeito delatou e fica com uma parte do dinheiro? Isso não existe. Eles legitimaram a corrupção.

Por falar em violações, qual a sua opinião sobre o uso da delação premiada?
A ideia da delação começou com a máfia, que tem (um código de conduta conhecido como) o omertà: o sujeito não pode falar sob pena de ser morto. Então eles negociavam com aqueles que sabiam que poderiam dar informações e, ao mesmo tempo, protegiam a família, a pessoa mudava de identidade, de cidade. Isso na máfia, e na máfia faz sentido, porque é uma sociedade secreta, é uma maçonaria do crime. O cara que denuncia traiu todo mundo, é diferente. Na corrupção, digamos, tradicional não é bem assim. As empreiteiras fizeram um cartel, mas não são da máfia. Se o Odebrecht fala, não vai morrer, a família não vai ser atropelada na rua no dia seguinte. São graus diferentes de criminalidade, de realização de desvio. Não estou defendendo, mas são graus diferentes. A pessoa fala o que quiser para sair cadeia.

A delação premiada, quando a pessoa está encarcerada, pode ser vista como um tipo de tortura? Os delatores sofrem alguma pressão para delatar outras pessoas?
É tortura, é chantagem, o Estado usando do poder com uma narrativa que já está pronta. Ele não está descobrindo, está usando do poder, aí isso é um abuso. O interessante é que eles começam a usar esses instrumentos que o Direito Penal aqui não estava acostumado, e na Lava Jato isso se espalha. Tanto que os advogados criminalistas só tomaram baile. Eles, que sempre conseguiam fazer as coisas, começaram a perder todas porque é outro tipo de processo, não é mais aquele em que o advogado vai lá e convence o júri. É outro tipo de processo, é outra lógica.

A delação por si só pode ser usada como prova?
A gente não sabe se é verdade ou não, mas o que dizem (sobre a Operação Lava Jato) é: eles já têm as informações, mas elas chegam de forma ilegal, de espionagem. Receberam uma informação que não têm como provar e aí a delação, de certa maneira, “lava” a informação, certifica. Depois, a Lava Jato consegue achar o documento, o e-mail, seja lá o que for, que comprova aquilo. Mas a origem é viciada. Ele não pode dizer de onde tem a informação. É o que os advogados falam. Eu não sei porque não atuo nisso, não atuo nessa área penal. Pode ser até lenda de advogado, mas também não ponho minha mão no fogo por ninguém.

Que abusos a Lava Jato tem institucionalizado?
A prisão preventiva é o maior abuso que existe neste País e ninguém fala. A imensa maioria dos presos no Brasil está em prisão preventiva, só que é pobre e com pobre ninguém está nem aí. O Supremo não se incomoda, o ministro Barroso não chora, o ministro Marco Aurélio, que gosta de soltar todo mundo, não está preocupado. E o ministro Gilmar Mendes agora virou herói da legalidade… Uma coisa que tem que ser dita sobre Gilmar: quando ele foi presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), fez mutirão para tentar desencarcerar (quem estava em preventiva ou que tinha pena cumprida). Preocupou-se com essa questão que ninguém mais se preocupou. A maior parte dos presos está em preventiva e fica lá anos sem justificativa. É a vida das pessoas! Você não pode fazer isso com a vida das pessoas. Você não pode largar o processo num canto e esquecer. Aí o Estado vira o maior fornecedor de mão de obra para as organizações criminosas, que mandam nos presídios.

Então, o que já acontecia com os pobres diante da Justiça está acontecendo com os ricos. Em vez de a punição dos políticos melhorar as condições do sistema, estamos expondo ainda mais a população mais vulnerável?
Mas não é só o que acontece com os pobres, porque com os ricos não vai ser a mesma coisa nunca. Primeiro eles foram para cima do PT. Essa fase está terminando. Não sei o que vai acontecer com o presidente Lula, porque não dá para saber. Se fosse o processo normal, não teria o que fazer, ele não tem nada. Mas como a gente não está no processo normal e tem um juiz que gosta de aparecer, a gente não sabe. Mas, terminada essa fase, a questão é: por que o Gilmar Mendes virou legalista? Por que o Congresso agora resolve tomar as dores (sobre abusos da Lava Jato)? Porque senão não sobra um. Serviu para eliminarem um adversário político.

No caso da condução coercitiva, qual é sua visão?
Tucanaram a prisão. Porque condução coercitiva seria quando você é intimado e não comparece, você é intimado novamente e aí é conduzido coercitivamente, que é para o sujeito não ficar enrolando, não ficar fugindo de prestar esclarecimento. Agora, coerção de quem nunca se negou a prestar depoimento é prisão, não tem outro nome.

O senhor considera que, ainda assim, a Lava Jato é importante?
Olha, não vamos criar mitos. Lógico, ninguém defende a corrupção, o combate à corrupção é permanente. Só que, desculpa, eu não acredito em combate à corrupção que não mexe ou que não chega perto de duas das maiores fontes de corrupção: os tribunais de contas e o próprio Poder Judiciário. É impossível o sujeito desviar milhões sem um banco perceber, sem os órgãos controladores das contas perceberem. O Ministério Público e o Judiciário têm acesso aos dados, à movimentação. Como é que se transfere esse dinheiro? Não pode carregar R$ 100 milhões em uma mala. “Ah, mas a transferência é lá fora.” Sim. Mas alguém está vendo. Os bancos estão vendo e até agora é como se não fosse com eles. Você não consegue fazer nada sem o banco, os órgãos de controle. Não dá para levar a sério (uma megaoperação contra a corrupção) se você não combate quem é conivente. Porque quem lava dinheiro é banco, quem faz transferência é banco, quem permite que altas somas se desloquem de uma conta para outra é banco.

O senhor disse recentemente que o Judiciário custa ao País 2% do PIB. Não é muito caro?
O Judiciário no Brasil custa 2% do PIB, é o mais caro do mundo. Nos Estados Unidos, que são um país que gosta de juiz, que não tem problemas com o Judiciário, é 0,5% do PIB. E são um país mais ou menos do mesmo tamanho do Brasil. E aí é problema não só dos juízes, mas também do Ministério Público e de outras carreiras jurídicas. As pessoas passam nos concursos pelo mérito e não têm o que discutir. O concurso é uma mera forma de seleção, mas a pessoa acha que o concurso outorga o direito vitalício de ser autoridade. Não é bem assim. É uma mera forma de seleção de quem vai preencher determinada função pública, todo mundo é funcionário público. Aliás, isso na Europa e nos Estados Unidos é muito claro, você vai na Alemanha, vai na França, juiz é servidor público. Lógico que ele tem a função dele, tem as garantias, mas é um funcionário público como é o médico que atende no posto de saúde, ou o professor da universidade, ou ainda como é o faxineiro que faz limpeza pública da rua. São todos funcionários públicos, com suas funções e graus de complexidade e que têm de ter sua dignidade no trabalho respeitada.

O juiz é isso, ele não é mais que os outros. Promotor ou procurador é a mesma coisa. Aqui não, aqui o sujeito se acha dono do cargo, é o patrimonialismo sendo explícito. Aliás, é comum falar “Na minha vara”. Não, a vara não é sua. Você exerce a função de juiz naquela vara. Isso é muito comum, infelizmente, no meio jurídico. É muito complicado porque vira e mexe acontece uma série de abusos: pedido de auxílio moradia morando na cidade em que trabalha. Tem auxílio paletó, auxílio funeral, auxílio livro, auxílio não sei mais o quê. Vai criando uma série de compensações salariais que trabalhador nenhum tem direito. A diferença entre o Judiciário e qualquer outro servidor público é que o servidor não decide em causa própria. O Judiciário decide em causa própria e vira tudo direito adquirido. Lógico que não se trata da maioria, mas a gente sabe que tem pessoas dessa carreira que ganham até R$ 100 mil de aposentadoria. Não há previdência pública no mundo que sobreviva a isso. Agora, a reforma da Previdência vai atrás disso? Não. Onde ela vai? Nos pobres. Porque os juízes têm como retaliar, o pobre não. Eu não sei, desde o golpe eles estão numa ofensiva, parece que eles querem que a sociedade viva em função de sustentar seus privilégios.

Quais as consequências de termos um Judiciário tão poderoso?
A maior consequência é que você cria um regime oligárquico, uma ditadura de uma classe que é conservadora. Eles se acham intelectualizados, mas têm absoluto menosprezo pelo resto do País. Menosprezam o setor produtivo, os pobres, todo mundo. Se soubessem como funciona o setor produtivo, não tomavam as decisões que tomam sobre as empresas. Nos Estados Unidos, na Alemanha, a Siemens estava envolvida em corrupção, a Alstom e Volkswagen também. O Judiciário não quebrou as empresas. Você pune o responsável.

O governo Lula atuou para mudar essa situação?
Quem aumentou o salário de todo mundo foi ele. Os salários do Ministério Público e do Judiciário multiplicaram com ele, a carreira no setor público foi valorizada de novo no governo dele. Não entendo esse ódio ao Lula e ao PT por um simples motivo: usam uma retórica dos anos 60, anticomunista, como se o PT alguma vez na vida tivesse proposto ser socialista ou comunista. O PT nada mais é que um partido social-democrata bem light. Bolivariano? Não, espera aí, se fosse bolivariano eu estava feliz. Não é. É bem light. Foi uma lógica que fizeram para ganhar a eleição e que deu certo, de não mexer praticamente nada em privilégio nenhum, pelo contrário. Os empresários nunca ganharam tanto, os bancos nunca ganharam tanto. Lógico, ele permitiu, isso sim e foi correto, que uma parcela da população melhorasse de vida, isso é bom, mas em dois meses esses golpistas destruíram tudo, pá-pum. Aliás, foi tão bom que a economia cresceu a olhos vistos e todo mundo aparentemente estava feliz. Infelizmente, o que o Lula fez não foi duradouro. Quem incorporou os trabalhadores e a democracia deste País, e tentou fazer isso de maneira duradoura, se chamava Getúlio Vargas. A CLT faz 70 anos e só agora estão começando a destruí-la de maneira mais eficaz.

Como veio à tona tanto ódio?
As pessoas deveriam ser obrigadas a conviver com as diferenças desde a escola, para entender que são diferentes, têm posições diferentes, cores diferentes, origens diferentes. De repente as pessoas perderam a vergonha de falar essas imbecilidades, essas coisas de ódio, perderam qualquer limite de educação, de sociabilidade. Isso realmente me assustou muito. Tudo bem você ser conservador ou progressista, mas sempre as pessoas tiveram uma sociabilidade mínima. Agora não, é um ódio e eu não sei se isso vai ser superado, porque tem mágoas fortes de lado a lado. Acho que essa fratura não vai ser muito superada, não. É um ódio que eu nunca imaginei que fosse existir, que não faz sentido. Começou a aparecer em 2010, no processo do mensalão. Em 2013, explodiu. Tudo bem que numa rede social o sujeito se acha acima do bem e do mal, fala qualquer coisa. Mas agora você vê isso em lugares públicos, na rua, nas lojas, nos shoppings, no supermercado…

Sobre a crise no setor industrial brasileiro, como o governo Temer está operando no desmonte da indústria nacional?
Esses golpistas estão acabando com tudo e as pessoas, parece, não estão se dando conta. A Petrobras está sendo fatiada, retalhada e vendida na bacia das almas. A Petrobras foi feita com dinheiro de todo mundo. A lei exige que para qualquer venda de patrimônio público tenha licitação e eles estão fazendo tudo sem licitação, querem vender o gasoduto sem licitação. O Campo de Carcará, vendido sem licitação, deram de graça para a (petroleira norueguesa) Statoil (a estatal se desfez da participação de 66% no Campo de Carcará, na Bacia de Santos, considerado uma das “joias da coroa”, por US$ 2,5 bilhões, como estratégia para cumprir a meta de reduzir seu endividamento). Eles estão destruindo o patrimônio da empresa. No balanço, jogaram o patrimônio para baixo para valer menos e vender mais barato. E tem uma coisa pior: no caso do gasoduto, por exemplo, eles estão tirando o monopólio público e passando para o monopólio privado. Todo o gás do Sudeste vai passar por esse gasoduto e só vai ter um dono, privado. No caso do Carcará, é lógico que é crime de receptação. É como se você adquirisse um Rolex, lá na Praça da Sé, por R$ 5 mil. Só que um Rolex custa R$ 60 mil, e você sabe. Qual o motivo de você vender o Campo de Carcará para a Statoil por um preço que é 20% do valor de mercado? E a Statoil sabe disso, sabe que está comprando um ativo valiosíssimo por 20% do preço e sem licitação. Ou seja, ela não vai depois poder posar de “ah, fui enganada”. Não foi não. Isso tem que ser recuperado sem indenização porque isso é um crime que estão cometendo.

Quem está ganhando com isso, então?
Alguém está ganhando com isso. Não tem justificativa, estão dilapidando o patrimônio. É como se fosse um crime de receptação, é a mesma lógica. É a mesma história da Vale do Rio Doce. Está havendo uma discussão sobre o acordo de acionistas e o Brasil pode perder o controle. Ninguém está sabendo porque o governo faz escondido. Hoje, embora a Vale do Rio Doce não seja mais estatal, quem faz parte do controle são os fundos de pensão e o BNDES, além de Bradesco e outros, e o governo tem ingerência sobre a empresa. Dependendo da nova configuração, o governo perde esse poder. Aí você vende para uma estrangeira qualquer e perde esse patrimônio todo a troco de nada. O mesmo estão fazendo na base de Alcântara para dar de graça para os Estados Unidos. Ou o negócio da Cedae (o governo federal propôs em fevereiro vender a Companhia Estadual de Água e Esgoto para sanar as dívidas do estado do Rio de Janeiro). Já foi o petróleo, já foi a indústria de construção e agora foi a carne. Escreve aí: o próximo setor é o da água. O Brasil tem os dois maiores aquíferos de água doce do mundo: na Amazônia e o aquífero Guarani. Vão vir com a desculpa do saneamento para se apropriar da água. Água é bem comum, é bem de todos.

O patrimônio brasileiro está sendo dilapidado.
A gente está dilapidando todo o nosso patrimônio a troco de nada e ainda com essas reformas da Previdência e trabalhista, que destroem toda a organização do trabalho. Não entendo a reforma da Previdência. Eu aprendi, posso ter aprendido errado, que um dos grandes problemas do desenvolvimento do Brasil era a falta de poupança interna. O País não tinha capacidade de poupança interna por causa dos baixos salários, então tinha que pegar dinheiro de fora para poder ter os grandes investimentos, para ter infraestrutura e se desenvolver. Era por isso que a gente precisava de capital estrangeiro também. Como é que você vai fazer num país que não tem poupança interna? Você destrói o sistema público de previdência e acha que quem está nesse sistema vai migrar para a previdência privada? O sujeito não tem dinheiro para pagar plano de saúde. Como é que ele vai pagar plano de previdência privada? Não entendo o raciocínio. A mesma coisa com essa terceirização radical, essa destruição do trabalhador. Como é que você vai gerar estabilidade no mundo do trabalho? Como é que você vai ter uma fábrica, sendo que os seus funcionários não têm estabilidade nenhuma? Isso não existe em lugar nenhum no mundo. É atirar no próprio pé. Um industrial ou um comerciante defender um negócio desse não faz sentido nenhum. Porque ele destrói a própria fonte de recursos, a própria fonte de geração de riqueza dele. Isso aqui é, sempre foi, uma colônia de espoliação.

A melhora na economia, promessa do presidente Michel Temer e de seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, não se concretizou. O senhor acha que, diante da persistência da crise, existe uma possibilidade de um novo pacto entre empresários e trabalhadores, industriais e trabalhadores?
Não sei se os empresários querem, acho que não. Mas é bom eles perceberem que a vida deles está ligada ao mundo do trabalho. Porque senão não só não vai ter quem consuma os produtos que eles fabricam como não vai ter quem trabalhe na fábrica deles. Porque quando você terceiriza dessa maneira radical, você destrói a estabilidade do emprego, você destrói também o empregado especializado, o empregado qualificado, você destrói tudo, não sobra nada. Como é que você vai montar uma fábrica se você tem um cara que não sabe fazer nada? E que também não está preocupado em fazer alguma coisa, porque o tipo de treinamento dele não vai ter nenhuma especialidade. Aliás, o próprio governo golpista aprovou uma reforma no ensino médio que é isso: você vai saber o básico, vai trabalhar numa mina ou ser peão de uma fazenda. Acho que é esse o plano do País, ser uma fazenda ou uma mina. Acho que a indústria não percebeu que ela está fora do projeto. Não é nem agroindústria, que isso não existe. O Brasil tem agronegócio, as palavras dizem muito, não é agroindústria. Porque tudo que é produto industrializado usado no setor agrícola é importado: defensivo, equipamento, implemento, fertilizante, máquina, o que for. Tudo o que o nosso agronegócio ganha, ele gasta, não gera um processo autônomo de acumulação, pelo contrário.

Qual seria, então, a saída?
A saída é o Estado voltar a garantir os direitos dos trabalhadores e os direitos sociais da população, é o básico. E o Estado voltar a financiar e atuar diretamente no processo de desenvolvimento, para poder reconstruir o mercado. Com o baque que a economia levou, parece que o Brasil entrou numa guerra. O Estado precisa de uma atuação profunda nas estatais, nacionalizando o que precisa nacionalizar, recuperando os recursos minerais, a água. Isso traz de volta o controle estatal, seja financiando, usando o BNDES para financiar as empresas, para financiar os setores produtivos, a agricultura, etc. Sem isso não vai gerar emprego, renda, nada. Vai acontecer um círculo vicioso até o último banco morrer de fome porque um vai cobrar do outro e só vai sobrar bancos.

Sobre o pleito de 2018, o que pode ocorrer?
Não sei o que passa na cabeça dos golpistas. Não sei se eles tomaram o poder achando que ia ser fácil, que era só se livrar da Dilma que as coisas funcionariam, que eles seriam aclamados e tudo bem, ou se eles realmente tinham um projeto. De qualquer maneira, acho muito difícil que ganhe alguém que tomou o poder da maneira como eles tomaram, gerando uma crise profunda que não vai ser resolvida facilmente. Vai levar anos para resolver e superar esse desastre político, institucional, civilizatório. Eles deveriam ser responsabilizados e punidos por contestar a legitimidade de uma eleição que foi legítima, por fazer o que estão fazendo com o País. O Brasil entrou num locaute, os industriais simplesmente cruzaram os braços em 2014 para tentar mudar a eleição, não conseguiram e continuaram fazendo a mesma coisa em 2015. A Dilma errou e colocou o (ex-ministro da Fazenda) Joaquim Levy. Mas ela foi boicotada de tudo que é lado. Em condições normais de temperatura e pressão, candidatos que ajudaram a derrubar Dilma não ganham. Vão falar o quê? Que a Dilma destruiu o Brasil e eles reconstruíram? Tudo depende de deixarem o Lula ser candidato, de ele querer ser candidato, de ser o Ciro (Gomes), de ser outro.

No julgamento da chapa Dilma-Temer, pelo Tribunal Superior Eleitoral, na campanha de 2014, o senhor acha que é possível separar a responsabilidade da candidata à Presidência e de seu vice?
É muita forçação de barra separar, não existe fundamento algum para isso. É uma chicana de quinta categoria. Agora, como a gente está num País que pode tudo, eles podem fazer qualquer coisa, perderam a vergonha na cara. Vão falar o quê? Que é inconstitucional num País que não tem Constituição? Que é ilegal num País que não tem Estado de Direito? Esse é o problema. Pode tudo, aqui virou terra de ninguém.

As manifestações de rua ainda têm força sobre o Congresso?
Sim. Só que o problema é que a mídia ainda tem mais força. Enquanto a Globo não sentir medo de novo, não sentir que exagerou, passou do limite, e que precisa recuperar a credibilidade, haverá manipulação.


Comentários

Uma resposta para ““Tucanaram a prisão””

  1. Avatar de Kakashi & Itachi
    Kakashi & Itachi

    Legal a entrevista, mas ainda estamos num círculo vicioso que é, meu lado (partido) é bom e o teu é ruim, é a direita denegrindo a esquerda e vice versa, porém enquanto o brasileiro não tomar consciência que precisamos de educação, de valores, de respeito ao próximo vai continuar essa bagunça. Hoje achamos normal pessoas matarem, roubarem e serem corruptas, a mídia faz de conta que está tudo certo, agora fale algo sobre sexualidade, cor de pele, religião…parece que vai acabar o mundo. Para mim todo crime deve ser combatido seja corrupção, roubo, difamação…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.