Um alemão no caminho

Ele tem 83 anos. Aos 17, em meio à Segunda Guerra Mundial, dedicava-se à geodésia – ciência que estuda as formas e dimensões terrestres – e foi estrategicamente recrutado pelo exército alemão. Com os ensinamentos adquiridos nessa espécie de precursor acadêmico do GPS, o jovem Manfred Hoffmann foi determinante em garantir a precisão de projéteis com 84 cm de diâmetro, deflagrados por robustos canhões que atingiam alvos situados a 130 km. Hoffmann se lembra de que os canhões só podiam ser girados até o limite de 9°, para não se correr o risco de tombá-los: “Devido ao peso, construíamos uma parábola cúbica para manobrar o canhão. Nos tempos de hoje, até construí-la, já estaríamos mortos, mas eles dificilmente entravam em ação”. Dado o poder da ameaça, ele se lembra de que o mero efeito psicológico da presença dos canhões era suficiente para afastar os inimigos.

Quando a guerra chegou ao fim, Hoffmann estava na Dinamarca. Por meio dos sistemas elétricos de telefonia disponíveis no país, tentou os primeiros contatos com a família. Sem respostas, decidiu ligar para um dos vizinhos e teve a infeliz notícia de que sua casa havia sido bombardeada e os pais, mortos. Bem-humorado, o ex-artilheiro satiriza que conseguiu sobreviver nos campos de batalha, pois era alvo impossível até para o mais exímio atirador, por conta da magreza acentuada. Ironia que dissimula o risco que corria: “A primeira lição que aprendi é que, enquanto tivesse uma arma na mão, também poderia decidir pelo meu destino. Não só o outro. Nunca me separava de minha arma”, recorda.
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O espírito aventureiro sempre foi traço marcante da personalidade de Hoffmann. Aos 12 anos, deixou os pais desesperados ao fugir de bicicleta com um amigo para Berlim e abrigar-se por dias em uma olaria. Tempos depois, revestiu a imponente estátua de Netuno disposta em uma fonte de Liegnitz, sua cidade natal, com roupa e objetos. Traquinagem que rendeu manchete indignada no jornal do dia seguinte: “Grande besteira”.

Novos caminhos de um desbravador
Ao cruzar o Atlântico e desembarcar no Brasil, Hoffmann iria abusar ainda mais de seu anjo da guarda. Enfrentou onças e cascavéis no norte do País; experimentou uma aterrissagem forçada em um Cessna, a caminho de Goiânia; resistiu a um grave acidente de carro que todos apostavam que não iria sobreviver; e ainda escapou do incêndio no Edifício Andraus, em 1972. Histórias que começam a ser escritas em 1949, quando Hoffmann chega ao País, aos 22 anos, novamente requisitado pelos conhecimentos de geodésia, e a recém-concluída graduação em engenharia civil.

A vinda ao Brasil teve a providencial mão do acaso. Ao tentar manter o registro civil dos imóveis deixados pela família na Alemanha, ele topou com um sujeito que soube de seus predicados e questionou se havia interesse de sua parte em trabalhar no Brasil. Acostumado com anos consecutivos de mercado negro e moedas alternativas, como maços de cigarro, disse a ele que trabalharia até mesmo sem receber em dinheiro. A promessa era tentadora, mas cobrava favores. “Seria contratado, com a condição de ensinar alguns princípios de geodésia a um aviador com alta condecoração de guerra. Acontece que a mulher desse aviador tinha um tio que era cônsul honorário alemão, em Porto Alegre, e essa era a ligação com o Brasil. Essa pessoa sabia que Jerônimo Coimbra Bueno, então governador de Goiás, estava procurando uma dúzia de engenheiros alemães, pois ele havia recrutado alemães na fundação de Goiânia e tinha ficado muito satisfeito.”

A chegada ao País tropical cobrava desdobramentos ilegais. Com a dissolução da Alemanha, Hoffmann perdeu cidadania e passaporte. Prática comum nos primeiros dias de pós-guerra, vagava nos países vizinhos em busca de documentos. “O Estado Alemão não mais existia e fui expulso da Suíça, mas voltei para lá e consegui um passaporte brasileiro, com tudo certo. A única coisa errada era a nacionalidade: brasileira”, diverte-se Hoffmann.

Ao chegar de navio, em Santos, precisava de visto para entrar, mas a imigração não hesitou em fazer vista grossa. De Santos, foi para o Rio e ficou hospedado por três dias na ilha de Paquetá. Dos 12 alemães contratados pelo governador Jerônimo, Hoffmann foi um deles. Comprou uma passagem da Panair do Brasil com destino a Goiânia e, após escalas em Belo Horizonte, Uberaba e Uberlândia, desembarcou na capital. A primeira experiência profissional no Centro-Oeste chegaria ao fim com a grande frustração de um calote: “O Estado era péssimo pagador. Quando me deixaram por oito meses sem salário, disse a eles que a situação havia chegado ao limite e ainda fui advertido de que não poderia quebrar contrato, mas eram eles que haviam quebrado o contrato!”.

Paixão e progresso na Era JK
Ao partir da Alemanha, Hoffmann havia deixado muito mais que suas raízes e perdas irreparáveis. Dois anos antes de vir para o Brasil, garantia a renda fazendo bicos de entrega de café e chá, em um sistema de vendas porta a porta. Ao encontrar dificuldades para localizar um de seus clientes, pediu ajuda em uma das casas da vizinhança e deparou-se com uma bela moça chamada Liselotte. O flerte inicial rendeu uma pequena paixão e expectativas abruptamente rompidas com a partida de Hoffmann. Ao saber da iminência da guerra da Coreia, não pensou duas vezes. Enviou um telegrama convidando Liselotte para encontrar um porto seguro no Brasil e, caso ela descobrisse que gostava mesmo dele, antecipou-se em dizer que se casaria com ela. O ultimato de Hoffmann aconteceu no Natal de 1950. Com a boa renda que usufruía na capital goiana, comprou uma chapa de ouro, mandou gravar “te amo”, envolveu-a em uma barba de Papai Noel, embalou tudo e despachou a encomenda para a Alemanha. Quatro anos depois do encontro casual na porta de Liselotte, os dois se casaram em Goiânia. Tiveram duas filhas, Araci e Corina, e seguem apaixonados até hoje. A entrevista com Hoffmann aconteceu na véspera do 59° aniversário de casamento.

Engana-se quem pensa que o espírito aventureiro de Hoffmann iria encontrar seus dias de ocaso com o matrimônio. Depois do calote estatal, passou cinco anos comercializando cerveja e voltou a exercer a profissão de formação, como engenheiro do Departamento Nacional de Estradas e Rodovias (DNER). Experiência que iria colocá-lo em uma aventura sem parâmetros. A construção da rodovia BR-29, que ligaria Brasília ao Acre, parte do ambicioso projeto viário defendido por Juscelino Kubitschek, para interligar a nova capital às principais metrópoles das cinco regiões do País. A empreitada cobrava o estabelecimento de uma base operacional em Vilhena, Roraima, e muita coragem das equipes de trabalhadores que desembarcavam em meio à selva: “Alugamos dois voos de DC-3, de Cuiabá a Vilhena. Desci do avião e recomendei aos homens que montassem acampamento próximo à margem do rio. Acomodei minhas coisas na barraca, andei 20 m e dei de cara com uma cascavel. Peguei um revólver e só no segundo tiro consegui acertá-la. O guizo continuou a mexer (está comigo até hoje). Um outro colega olhou para o lado e tinha uma jaguatirica nos observando. Ele jogou o saco com as suas coisas e fugiu em disparada. Quanto à jaguatirica? Lógico que também correu, mas em sentido oposto”, diverte-se Hoffmann.

Liselotte intervém, para acrescentar um dado que reitera o ambiente de safári, encontrado pelo marido: “Quando aceitou trabalhar nessa obra, ele fez um seguro de vida. Lembro que o corretor colocou embaixo da porta de casa várias apólices, aumentando o valor do seguro. Isso para mim foi um péssimo sinal”. Como Hoffmann chegava a ficar até oito meses fora de casa, Liselotte lembra que Araci, a filha mais velha do casal, definhava em tristeza e saudades do pai. Tinha oito anos e os amigos viviam perguntando se ela tinha notícias dele. Ao que respondiam, cinicamente: “Esqueça do seu pai. A essa altura ele já se casou com uma índia”.

Contratada para execução de muitas das obras previstas no projeto viário de JK, a construtora Camargo Corrêa logo ficou de olhos bem abertos para o incrível desempenho de Hoffmann e o convidou para fazer o mapeamento das estradas. Enquanto outros engenheiros avançavam 10 km, amparado por seus profundos conhecimentos em geodésia, o alemão alcançava impressionantes 180 km. Façanhas aéreas e terrestres registradas em uma antiga câmera austríaca Voigtländer, nas fotos que ilustram essa matéria e ganharam as páginas do recém-lançado livro 50 Anos de Brasília: A Nação em Construção, publicado pelo Centro de Documentação e Memória Camargo Corrêa (CDMCC) em parceria com a Agência Estado. Personagem imprescindível e testemunha ocular das revoluções empreendidas por nosso País há 50 anos, Hoffmann viveu uma vida intensa, que renderia um filme emocionante, desses de tirar o fôlego, com direito à redenção e um belo final feliz.

Brasília dos brasileiros


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