Um apartamento para falar com Boni

O Pacote tinha umas idiossincrasias.

Um dia, ele estava lendo a entrevista que eu fiz com os irmãos Paulo e Chico Caruso. A certa altura, Chico menciona uma frase de Millôr Fernandes, algo como: “Meu sonho é morrer no meio de uma trepada com um tiro do marido traído, como aquele que Mark Chapman deu no John Lennon”.
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Pacote parou a leitura:

“Alex, tem que dar um corte nessa entrevista.”

“Aonde?”

“Bem aqui. Esse nome, Mark Chapman, não pode ser publicado.”

“Por que não? É uma declaração do entrevistado, ele é que está falando.”

“Na minha revista esse nome não sai. Eu faço parte de um grupo que pactuou um acordo, proposto pela Yoko Ono – o nome do assassino de Lennon não pode ser divulgado, para não virar um herói. E eu vou respeitar o acordo.”

E a frase do Chico foi cortada.

Em outra edição da Sras & Srs, a revista de Brasília da qual era editor-chefe, Rita Lee, em uma entrevista para Regina Echeverria, falou alguma coisa sobre fumar cigarros. Pacote interveio.

“Na minha revista eu não faço propaganda de cigarro.”

“Não é propaganda, é frase da Rita Lee.”

“Na minha revista a palavra cigarro não sai.”

Quatro maços
Durante quase 30 anos na Globo, Pacote fumou quatro maços por dia. Até o Boni pressionava para ele parar. Outro Pacote, o Renato, seu irmão mais velho, já estava lá, quando Boni o convocou. Primeiro, para
escrever um programa para o Jô Soares. Depois, para ser seu assessor.

“Mas eu não entendo nada de televisão”, declinou Pacote.

“É por isso mesmo”, disse Boni.

No primeiro dia de trabalho, Boni pediu que Pacote abrisse suas cartas, para separar o joio do trigo.

Pacote se recusou:

“Eu não abro cartas de ninguém, carta é coisa íntima.”

“Mas eu estou pedindo que abra.”

“Eu não abro. Se quiser me demitir, me demita.”

E ele nunca abriu uma carta do Boni.

Ninguém entrava na sala do Boni sem passar pelo Pacote.

“Chegaram a me oferecer um apartamento na Barra, só para eu agendar um encontro”, contou ele confidencialmente, em um dos muitos almoços de trabalho que tivemos na Padaria Real, ao lado da MTV.
Mas ele sempre foi caxias.

“Fiquei 30 anos na Globo e saí pobre”, ironizava.

Stalin e Boni
Assim como Boni, não tinha hora para entrar nem para sair. Sábado, domingo, feriado, todo dia era dia de trabalho. E também de prazeres à mesa, é claro, nos longos almoços para os quais Boni escalava Pacote com o intuito de ouvi-lo falar sobre TV.

Boni sabia que Pacote era praticamente um admirador de Stalin, com fortes ligações na esquerda brasileira. Mas nunca entrou nessa seara. Uma vez, convocou-o para dirigir a primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Depois de recusar logo de cara, como era o seu estilo, topou a missão. Sua primeira decisão foi convidar Gilberto Gil para compor a canção-título. Choveram pedras. O que Gil tinha a ver com o mundo infantil? Estava na cara, Pacote o escolheu só por ser baiano.

Mas Pacote resistiu bravamente. Tinha de ser o Gil. E foi. E ele compôs uma de suas mais belas canções.

Quando Roberto Marinho queria comprar uma obra de arte, consultava Pacote. E ele, caxias como sempre, jamais se aproveitou disso financeiramente, apesar de ser amigo e de ter sido retratado por grandes nomes, como Aldemir Martins e Siron Franco, que foi, aliás, lançado pelo Pacote.

Foi também Pacote quem lançou Daniela Mercury e aproximou Jorge Amado, seu velho amigo, da Globo. E depois ainda emplacou Sônia Braga no papel de Gabriela.

“Não tive nada com ela”, garante Pacote, o que deve ser verdade, porque se tivesse, ele contaria.

Boxe em Brasília
Niemeyer estava em dúvida sobre o que apresentar na inauguração do Teatro Nacional de Brasília. Seu amigo Pacote teve uma ideia completamente estapafúrdia, menos para ele, que foi lutador de boxe na juventude.

“Vamos organizar uma luta de boxe do nosso campeão Eder Jofre, para que o povão vá. Só assim o povão vai conhecer esse teatro monumental.”

E assim foi feito.

Ele estava se tratando do enfisema e de câncer na próstata quando teve um leve AVC. Desde dezembro de 2008, estava preso ao leito, sem autonomia para fazer nada. Mas eu falava com ele ao telefone todos os dias, ele sempre sonhando em “fechar” mais uma edição da Sras & Srs. Nos últimos dias, agora em agosto, protagonizou cenas extravagantes. Uma delas num fast-food.

Lá estava ele com a filha, o namorado da filha e os dois netos. Todos comeram seus sanduíches, a conta chegou.

Pacote, então, se recusou a pagar.

“Só vou pagar depois que você trouxer nossos lanches.”

“Mas todos já lancharam, inclusive o senhor. Quer mais um lanche?”

“Eu não comi nada, ninguém comeu. Só vou pagar depois que vierem os lanches.”

O impasse durou uma hora. Até que, vencido pelo cansaço, ele se levantou da mesa.

The end
Em uma de suas últimas internações no Albert Einstein, entrou numa de se converter ao judaísmo. “Quero fazer circuncisão, o Dr. Lichtenstein falou que posso.”

Na primeira terça-feira de agosto, dia 4, Laura, sua filha, despediu-se dele, novamente internado no Einstein, ia para casa tomar um banho. No meio do trajeto, toca o celular: “Volte”, era o recado da enfermeira. Apagou sem um ai. Dormiu.

Chamava-se Edwaldo, mas era capaz de romper amizade se um amigo o chamasse assim. E só assinava E. Pacote.

Quase sempre, ao declinar seu nome, o interlocutor perguntava: “Pacote?”.

“Sim. Pacote. Ou embrulho, como quiser.”


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