Um caminho para a humanidade

A sustentabilidade é uma questão política, com debate superficial e pouca realização concreta. A única saída para a espécie humana é a criação de uma governança mundial – bem diferente da democracia que conhecemos hoje -, que faliu no mundo inteiro. A constatação parte de uma das mentes mais brilhantes de nossa época, o cientista Miguel Nicolelis.Aos 49 anos, o paulistano criado no bairro de Moema é o pesquisador brasileiro mais influente no mundo e com maior chance de trazer o primeiro Nobel ao País. Nicolelis desenvolve um trabalho revolucionário sobre o cérebro humano.Professor titular de neurobiologia e codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte (EUA), ele ficou conhecido por criar mecanismos capazes de fazer com que macacos movessem braços robóticos usando a força do pensamento. Um marco para a ciência que poderá reabilitar pessoas com paralisia corporal e que foi listado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) como uma das dez tecnologias que podem mudar o mundo. Entre os inúmeros estudos promissores com os quais Nicolelis está envolvido atualmente, chama a atenção um que deu nova direção à cura do mal de Parkinson.Essa nova visão do cérebro, que está ampliando o entendimento sobre o homem, fez o cientista ocupar o topo da lista dos nomes mais importantes na área da neurobiologia publicada pela revista Scientific American.Além de contribuir para a ciência mundial, Nicolelis incentiva a formação de cientistas no Brasil. Ele é idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (RN) que, desde 2007, fornece educação científica para mais de mil crianças da rede pública e conta com uma filial em Serrinha (BA), onde atende 400 alunos.Tanto pioneirismo acabou sendo reconhecido neste ano pelo Instituto Nacional de Saúde (NIH), nos Estados Unidos, que o contemplou com a premiação de maior prestígio concedida pelo governo americano na área de neurociência. Com o prêmio Pioneiro 2010, Nicolelis ganhou US$ 2,5 milhões (R$ 4,4 milhões) para investir em pesquisas ao longo de cinco anos. Como acontece em cerimônias desse tipo, Barack Obama é esperado para a entrega do prêmio. Para esse momento, o cientista já preparou uma surpresa que revelou à Brasileiros. Pretende dar de presente ao líder americano uma camisa do seu time do coração, o Palmeiras, customizada com o nome do presidente, abaixo do númreo 44 (idade de Obama). Porque, além de inteligência, é preciso ter senso de humor. Confira a entrevista que Miguel Nicolelis nos concedeu de Durham por telefone.Em tempo: Obama não apareceu, mas veja vídeo com a entrega do prêmio. Coloque em 6min35s para ver Nicolelis receber o Pioneiro.Brasileiros – A questão da sustentabilidade é muito discutida hoje. Como cientista, o senhor acha que a sustentabilidade vai fazer a diferença no futuro ou se trata apenas de um modismo? Miguel Nicolelis – Evidentemente a palavra está na moda, todo mundo fala em sustentabilidade. O duro é encontrar exemplos reais, concretos, que são reproduzíveis e têm grande magnitude. Muitas empresas adotam esse slogan, mas quando você olha os detalhes, na prática, a sustentabilidade não existe. Acho que é uma coisa desejável, um objetivo final muito importante, mas poucos são os exemplos, porque a mentalidade empresarial ainda continua sendo o lucro a qualquer custo. Então, quando você vê empresas com o objetivo de sempre obter um crescimento de, no mínimo, 8% a 10% ao ano, é difícil pensar em sustentabilidade. Agora, evidentemente que a sustentabilidade tem vários níveis, desde o da casa da gente até o do planeta. E essa discussão é absolutamente essencial, pois estamos cada vez mais gastando o que não temos, tanto do ponto de vista financeiro quanto ambiental. Como cientista, vejo a sustentabilidade como uma meta importante, mas com debate superficial e pouca realização concreta.Brasileiros – Em termos práticos, no meio em que o senhor vive nos Estados Unidos, a mentalidade das pessoas está mudando? M.N. – Aqui não, de jeito nenhum. O país está em uma crise financeira, ética e moral, no sentido de que a vida aqui é muito individualista, as pessoas não se preocupam com o coletivo. Então, os recursos naturais do país estão se esgotando. Como o vazamento de petróleo no Golfo do México mostrou claramente, a falta de regulamentos para se manter, preservar, controlar e supervisionar atividades da indústria privada chegou ao limite nos Estados Unidos. O controle de alimentos, da água e da saúde pública está completamente perdido ou muito defasado, e as pessoas não se deram conta de que estão em perigo. O que elas comem, bebem e respiram está se tornando cada vez pior, porque os mecanismos de supervisão do Estado foram removidos na administração passada. Isso contribuiu para uma destruição ambiental e perda dos mecanismos de controle e de qualidade de vida tremenda, e isso as pessoas não se dão conta.Brasileiros – E coisas mais prosaicas, como reciclar o próprio lixo, não usar sacolas plásticas… M.N. – É algo que existe aqui, bem mais que no Brasil, principalmente na costa Oeste, na Califórnia, e na Leste, em Nova York. Mas ainda assim é um problema muito sério. As pessoas não têm consciência de quanto tempo um plástico leva para ser degradado. Vejo muito isso no Nordeste do Brasil. Quando a gente viaja pelo interior do Nordeste, há uma grande quantidade de sacos plásticos nas estradas, na caatinga; na periferia de São Paulo também. Mesmo porque os órgãos públicos não oferecem nem o processo educacional nem os recursos para a população reciclar, cuidar do lixo de maneira diferente. Isso tudo faz parte de um projeto de nação, sempre falo isso, que começa no jardim da infância. Não adianta pegar um adulto de 40 anos e tentar mudar sua mentalidade que não vai conseguir. Isso faz parte de um projeto de sociedade diferente do que nós temos visto aí no Brasil. No Brasil, há muitos projetos de poder, mas poucos de nação, nenhum, eu diria.Brasileiros – Na sua vida prática, o senhor adota atitudes sustentáveis? M.N. – Sim, tento fazer o máximo que posso. Nosso lixo é reciclado, dividido em várias categorias, nosso laboratório recicla papel o tempo inteiro, além de estarmos eliminando o papel de nossa rotina. Estamos mudando o consumo de energia, trocando as formas de gerar eletricidade no laboratório. Então, a gente tenta fazer o que é possível, do ponto de vista individual, mas é muito difícil porque não existem movimentos comunitários nem coletivos. Nem aqui, nem aí.Brasileiros – O físico Stephen Hawking afirmou recentemente que o homem tem de sair do planeta nos próximos 100 anos, senão vai virar uma espécie extinta, que o futuro é o espaço. O senhor concorda? M.N. – O homem não foi feito para o espaço, esse é o problema. Sou fã incondicional da exploração do espaço. Para o físico teórico falar isso, é fácil, para um biólogo confirmar que a gente pode viver em outro lugar, aí é complicado. Acho que nós vamos explorar o espaço de maneira muito diferente do que as pessoas pensam hoje. Não creio que em 100 anos nós estaremos extintos. Não tenho nenhuma previsão de que isso possa acontecer, a não ser que um meteoro atinja a Terra ou que um maluco aperte algum botão errado. Vamos ter problemas sérios, mas 100 anos é um espaço muito pequeno para o processo evolutivo e nada indica que a nossa espécie esteja em extinção, pelo contrário, estamos em expansão, extinguindo o que está ao nosso redor.Brasileiros – Qual a sua ideia de ocupação do homem no mundo? M.N. – Acredito que a única saída para a espécie humana é a criação de uma governança mundial, como muitos já propuseram ao longo da história. Essas fronteiras artificiais não fazem mais nenhum sentido. Essas catástrofes econômicas só acontecem porque ainda existe um acúmulo de riqueza em alguns setores da humanidade, uma fração muito pequena, enquanto o resto do planeta sofre com as conse-quências desse acúmulo totalmente desorientado. Acho que a solução da nossa espécie é ter um sistema governamental mundial, que é bem diferente da democracia representativa que a gente vê hoje, que faliu no mundo inteiro. Um processo de eleição a cada quatro anos, a cada seis anos, não representa mais um mecanismo ágil de governança, porque o mundo muda muito mais rápido do que mudava há 200 anos, quando esse tipo de eleição foi criado aqui nos Estados Unidos. Como o mundo hoje é mais ágil, acho que vamos ter de inventar novas formas de participação coletiva, mais rápidas, e remover os intermediários, pois eles provaram, com raríssimas exceções, talvez a única seja o presidente atual do Brasil, que são incapazes de corresponder aos anseios dos representados. E se transformaram em uma casta dirigente que tem como único objetivo se reeleger, isso no mundo todo. A falência é global.

Brasileiros – O agrupamento dos países em blocos, como a Comunidade Europeia, o MERCOSUL, pode ser um indicador dessa tendência ao fim das fronteiras? M.N. – Essas são tentativas desesperadas de evitar o inexorável. São tentativas de proteção de mercado, de proteção de fluxo de pessoas. Você já notou que o dinheiro consegue fluir para todo lugar, empregos também, para lugares onde há menos custo, agora, as pessoas não conseguem fluir, porque as fronteiras impedem que elas busquem empregos, migrem para onde existem mais oportunidades. Então, todo esse xenofobismo, os blocos econômicos, são tentativas desesperadas de manter o Estado, na minha opinião.Brasileiros – Ou seja, é o caminho inverso para um governo mundial. M.N. – Não são caminhos para economias sustentáveis, pelo contrário. Do ponto de vista econômico, a Europa não tem futuro nenhum, com exceção da Alemanha. A Europa tem problemas culturais e sociais tremendos, crescimento demográfico local, a mesma coisa o Japão, além da grande pressão migratória de pessoas que viviam nas ex-colônias. As guerras coloniais estão sendo travadas hoje no território europeu. Eles estão recebendo o blowback de toda a devastação do processo de colonialismo e imperialismo que houve, é o retorno dos imigrantes para os países colonizadores, porque existe a necessidade, a demanda de empregos. Como acontece nos Estados Unidos: toda a população latino-americana que vive no país de forma ilegal, que supre a economia com mão de obra barata, empregos que os americanos não aceitam fazer, é tratada como cidadã de segunda classe. Na maioria das vezes, eles trabalham em territórios que foram incorporados do México pelos Estados Unidos em uma das guerras mais ilegais da história da humanidade. Então, tudo isso é muito curioso. Na verdade, eu não vejo nenhum líder político no mundo atual pensando no futuro de verdade. É acima de tudo uma questão política.Brasileiros – Mas, então, qual é a sua previsão para daqui a 100 anos? M.N. – Acredito piamente que as gerações futuras vão convergir para a única solução racional, que é a criação de uma governança mundial, dado o fenômeno de globalização cultural que a gente tem hoje. O Youtube, o Facebook, o Google, que permitem que uma criança do Uruguai fale com uma da Somália. Todos nós vamos ser cidadãos do mesmo mundo. Acho que é a única sustentabilidade que realmente é de verdade.Brasileiros – E essa expansão desenfreada da humanidade, é uma ameaça? M.N. – Exato. Por isso você precisa de lideranças que ofereçam alternativas ao sistema americano, que mostrou que não é sustentável. Vamos continuar vivendo de crise em crise, até que um dia uma dessas crises leve o mundo inteiro para a bancarrota. O sistema capitalista americano não é sustentável, isso não há a mínima dúvida. O que pode ser uma alternativa a ele é outro debate. Certamente, não é o sistema que existiu na União Soviética. Mas que é preciso haver uma alternativa ao capitalismo americano desenfreado, não há dúvida, porque isso só vai nos levar a um cataclismo mundial.Brasileiros – Quer dizer, as previsões não são muito otimistas, não é? M.N. – Não, eu sou sempre otimista! Meu copo está sempre meio cheio, nunca meio vazio. Só acredito que isso não vai vir daqui (Estados Unidos). Essas ideias virão de outros lugares. Não será daqui nem da China, nem da Rússia.Brasileiros – Acha que pode ser da América Latina? M.N. – Sem dúvida. Acho que as futuras ideias do mundo, as revoluções ideológicas e humanísticas virão de lugares como América Latina e África. De lugares que têm desejo de uma nova ordem mundial, que seja diferente da geopolítica do século XX, que ainda nos assombra desde o século XIX. Vivemos uma ordem dominada pelo processo de colonização e imperialismo dos séculos XX e XIX. Nós somos de uma ordem global do século XXI. Isso vai vir dos países emergentes, que estão começando a transformar o mundo de certa maneira, e o Brasil está no meio desse bolo aí. Agora, precisa saber o que fazer. Nós temos o potencial, mas precisamos exercê-lo com sabedoria.Brasileiros – Recentemente, o senhor ganhou, por seu pioneirismo, o prêmio de maior prestígio do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos. Como recebeu a notícia deste prêmio? M.N. – Recebi por meio de um telefonema do diretor do Instituto Nacional de Saúde. Foi um susto, eu estava em Natal e me avisaram que o diretor do instituto estava me procurando. Pensei: “O que foi que eu fiz?”. Não tinha a mínima ideia do que era. Ele me ligou e deu a notícia, foi muito legal. Uma surpresa muito grande.

Brasileiros – Já sabe como vai investir a verba de US$ 2,5 milhões que receberá ao longo de cinco anos? M.N. – Vou aplicar na fronteira das nossas pesquisas, nos projetos mais ambiciosos que tenham chance de ter um retorno mais amplo, porque esse é o objetivo desse prêmio. É você realmente fazer coisas de ponta, que são arriscadas, que você não faria como projeto normal, mas que tem uma chance de ter retorno científico e, eventualmente, clínico muito grande. Então, vou usar o prêmio no desenvolvimento de novas ideias sobre próteses interface cérebro-máquina.Brasileiros – Pode dar algum exemplo? M.N. – Nós vamos criar um ambiente virtual, onde todos os elementos são controlados por atividade cerebral. Primeiro, nós vamos começar com macacos. Vamos testar o limite do que pode ser controlado diretamente pela mente deles, em termos de ferramentas, braços robóticos, com corpo inteiro robótico, nós vamos ter um avatar do macaco, que é um avatar de corpo inteiro. Uma vez que a gente tenha testado isso em macacos, vamos levar isso para a prática clínica e ver como os pacientes reagem e se eles podem aprender a usar a atividade elétrica do próprio cérebro para controlar próteses, inclusive uma prótese de corpo inteiro, que nós estamos desenvolvendo com os nossos colegas na Alemanha.Brasileiros – Em qual projeto está envolvido no momento? M.N. – Em vários. Os projetos são esses envolvendo estudo de circuitos neurais, construção de próteses neurais, interface cérebro-máquina, uma nova terapia para a doença de Parkinson, que nós estamos lançando. Nosso laboratório está sempre envolvido em vários projetos ao mesmo tempo.Brasileiros – Qual deles está mais latente? M.N. – Todos estão avançando, existem algumas coisas novas que a gente está submetendo para publicação. Aqui, nos Estados Unidos, a gente só pode divulgar coisas novas quando o paper estiver aceito.Brasileiros – Uma última pergunta: o senhor é fanático pelo Palmeiras. O que achou da volta do Valdivia? M.N. – Nossa! Gostei muito. Às vezes, acontece de Obama comparecer a essa premiação e já estou preparado. Tenho uma camisa do Palmeiras para entregar para ele, com seu nome escrito embaixo do número 44, idade dele.Brasileiros – Qual é o dia da premiação? M.N. – Dia 30 de setembro.

Nicolelis recebe mais um prêmio nos EUA


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