Um casal precisa de silêncio

Traduzido para o português por Foi apenas um sonho, o filme conta a história do casal Frank (Leonardo di Caprio) e April Wheeler (Kate Winslet) dos anos 1950, quando já brilhava a classe média norte-americana.

Eles adquirem uma bela casa no subúrbio de Connecticut e vivem na Revolutionary Road (Rua da Revolução) uma vida confortável e sem muita graça com seus dois filhos. Frank trabalha numa empresa onde desempenha um cargo administrativo, que nada tem a ver com seus desejos, e ela cuida da casa e dos filhos. A corretora, moradora do bairro, faz amizade com o casal e começa a frequentar a casa com um filho matemático e esquizofrênico brilhante. April decide realizar o desejo de Frank: vender a bela casa da Revolutionary Road e ir morar em Paris, onde ele poderia dedicar-se a escrever e ela sustentaria a família com um emprego de secretária internacional.

Um casal amigo considera absurdo o projeto, começando pela “inversão de papéis”, ela trabalhando e ele deixado livre para a realização de seu desejo. Esses amigos espelham os aspectos mesquinhos e conservadores, principalmente a mulher, que a olhos vistos comanda a relação.

Enquanto ocorrem os preparativos, Frank tem uma relação sexual tipicamente pequeno-burguesa com sua secretária. O chefe de Frank decide promovê-lo e lhe propõe a permanência na empresa onde irá obter graúdos benefícios com a aquisição de um computador de grande alcance. Prenunciando o futuro e a entrada no mundo da comunicação.

O conflito se instala em Frank, tentado pelo futuro corporativo, e no seio da família Wheeler. As brigas se sucedem: Frank inicia uma insidiosa discussão e April pede silêncio. Frank não para de discutir a relação.

As discussões tornam-se contínuas e intermináveis: April sustenta o silêncio e a realização do sonho; Frank, que conta à mulher a sua intranscendente relação extraconjugal, se torna aquele marido maldito que tudo quer discutir. O representante da hipercomunicação do casal, aquele que não pode suportar o silêncio da mulher.

April engravida do terceiro filho quando o desejo do casal faz água. O vizinho esquizofrênico (em brilhante atuação de Michael Shannon) denuncia de modo incisivo, como só um louco poderia denunciar; ele diz, pondo em carne viva a questão do aborto e da criação de filhos indesejados: “Eu não queria ser essa criança”, dirigindo-se à barriga de April. Não só relações de casal indesejadas mas com filhos indesejados…

Mas as cruéis verdades do amigo esquizo não param aí. Ele diz: “Com o eletrochoque me curaram a esquizofrenia e me mataram a matemática”.

April tem uma aventura amorosa com o marido do casal amigo. Constatando que a realização do desejo é impossível, pois Frank aceita o cargo e decide ficar em Connecticut, aborta com métodos caseiros.

April literalmente se esvai em sangue e morre junto com a sonho de viver em Paris.

O marido do casal convencional e amigo dos Wheeler chora a morte de April com a expressão de quem a amava, mostrando que traiu verdadeiramente a conjugabilidade.

No desfecho do filme, a corretora, a mãe do esquizofrênico, desanda a falar uma enxurrada de fofocas. O marido, em final preciso, desliga o aparelho de surdez.

O precioso recado poderia ser enunciado assim: o casal precisa de silêncio. Foi Gilles Deleuze no livro Conversações quem advertiu que o casal transborda não por falta de conversação, mas por hipercomunicação, propondo vacúolos de solidão, para ter enfim algo a dizer.

Os casais dos anos 1950 e muito mais os do século XXI tornam-se infelizes pela conjugabilidade que atua nas formas mais miseráveis de tédio e hipercomunicação.

Absorvidos pelos mecanismos de controle contemporâneos, acabam com qualquer desejo verdadeiro e com a própria sexualidade.

Casais heterossexuais ou homossexuais, como no filme, transformam-se em pequenos infernos particulares ou no melhor dos casos em irmãozinhos dessexualizados.

Revolutionary Road é um filme sobre o desejo nos casais, sobre a miséria da conjugabilidade e sobre o supremo direito ao silêncio nas relações amorosas.

*Antonio Lancetti é psicanalista


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