Um castelo se desmancha no pampa… e dentro dele, uma biblioteca contendo livros raros como a Enciclopédia Francesa

Há um século, os trens que ligavam as cidades do oeste gaúcho (por exemplo, Bagé, a “rainha da fronteira”) aos portos de Rio Grande e Pelotas (a Atenas rio-grandense) paravam em frente ao castelo de Pedras Altas, construído no meio do pampa deserto pelo fazendeiro, político e diplomata Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938). Mesmo que não houvesse passageiros para subir ou descer, todo comboio parava na estaçãozinha singela para o embarque de pacotes com a produção da Granja Pedras Altas, o grande orgulho do homem que, em 1903, redigira o Tratado de Petrópolis, pelo qual o Brasil anexou o Acre, obra-prima do Barão do Rio Branco. Eram queijos, manteiga, doces e frutas secas. E lã de ovelha. E banha de porco. Frequentemente, saíam dali vagões lotados de animais das raças devon, jersey, karakul, ideal e puro-sangue inglês, todos vendidos como matrizes, jamais como carne para açougue.

Foi nesse ermo, a 20 km da fronteira com o Uruguai, que o legendário Assis Brasil tentou provar o que havia aprendido em suas visitas a fazendas dos Estados Unidos e da Europa, onde atuou como embaixador do Brasil na virada para o século XX. Ele quis demonstrar que em uma pequena área bem manejada se poderiam obter resultados melhores do que nas tradicionais estâncias gaúchas onde o gado era criado ao deus-dará, como no tempo dos jesuítas. Para agradar a esposa Lydia Pereira, portuguesa nascida na Alemanha, onde o pai era embaixador, Assis Brasil mandou construir um castelo em granito rosa, pedra típica da região. Com 44 cômodos e 12 lareiras, a obra levou oito anos para ficar pronta. No piso da entrada do jardim, Assis Brasil mandou gravar na pedra a seguinte quadra de sua autoria:

Bem-vindo à mansão que encerra
Dura lida e doce calma:
[nggallery id=14838]

O arado que educa a terra;
O livro que amanha a alma.

O projeto andou enquanto Assis Brasil viveu, sempre cercado de amigos, clientes, políticos e admiradores. Inimigos? Não os teve. Quando muito arranjou adversários, a quem enfrentava exclusivamente no gogó, sem jamais recorrer às armas, que só usava para se exibir – era excelente atirador. Metido no meio dos caudilhos, consagrou-se como “chefe civil da revolução”, movida pelos maragatos contra o chefe chimango Antonio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), “o eterno presidente” do Rio Grande do Sul entre 1898 e 1927. O ex-senador Paulo Brossard, que descreveu Assis Brasil em livro, resumiu-lhe o caráter e o estilo em uma única palavra: “cavaqueador”. Assis era um conversador profissional, dava um boi para entrar em uma polêmica; e uma boiada para não sair dela. A luta pelo poder foi sua “cachaça”, sua glória e sua perdição: ao entrar em paradas políticas que mais de uma vez o levaram ao exílio, ele comprometeu o futuro do seu empreendimento que, além de objetivos rurais, tinha pretensões culturais.

Quando morreu, na noite de Natal de 1938, Assis Brasil deixou dívidas que nos anos seguintes exigiriam a venda de outras propriedades das quais a família tirava renda para ajudar a sustentar o sonho de autossuficiência da sua granja. Reduzido a 170 hectares (metade da área original), o projeto segue em pé, mas expurgado de fantasias destruídas pelo tempo e o vento. Dos pomares, por exemplo, restaram alguns vestígios, como pereiras gigantescas e o suporte das videiras. Entretanto, em uma confirmação de que o fundador tinha razão quanto às propriedades do solo e do clima para a fruticultura de clima temperado, nos arredores de Pedras Altas começam a aparecer os vinhedos implantados por empresários da região de Bento Gonçalves, a capital do vinho gaúcho.

O QUE PENSA O SOBRINHO ESCRITOR

Questionado se, por ser parente, Luiz Antonio de Assis Brasil se sentia impedido de ajudar na restauração do castelo de Pedras Altas, ele respondeu: “Não sinto nenhum impedimento de qualquer natureza”. Secretário da Cultura do Rio Grande do Sul, ele destacou que “naturalmente, não faria nada que não estivesse na Lei”. Assis Brasil acredita que Lydia de Assis Brasil não deve buscar recursos apenas na Lei Rouanet, que é federal, mas na estadual Lei de Incentivo à Cultura (LIC), que voltou a operar depois de um recesso no governo passado.

E, quando o projeto de restauro estiver aprovado, recomenda que seja contratado um profissional para cuidar da captação de recursos. Mais adiante, com mais recursos, seria o caso de pensar em transformar o castelo em um museu, com todos os objetos protegidos, como já acontece com os 7.500 livros trancados em estantes envidraçadas. Quando esteve lá, Assis Brasil folheou um exemplar da Enciclopédia, escrita há mais de 200 anos por Diderot, Voltaire e outros. “O livro está íntegro, como se fosse recém-saído do prelo”, diz ele. Fora o proprietário-fundador, é provável que ninguém mais tenha lido a obra em Pedras Altas e arredores. Por essas e outras coisas, o escritor-secretário está de acordo com tudo que já foi dito e tentado por seus antecessores para evitar que o castelo se desmanche no Pampa. Ainda que a imponente construção destoe do padrão residencial da região – casas baixas, com telhado de zinco -, Assis Brasil acredita que o castelo é importante como sede de um projeto histórico e também de eventos políticos, como a assinatura do acordo de paz que encerrou a última revolução gaúcha, em 1923. O fato de ser cópia de construções europeias não diminui a importância do castelo como marco de uma época – o início da República no Brasil. “Naquela época, era comum copiar”, lembra o secretário-escritor.

Marco da modernização agrícola no alvorecer do século XX, o castelo tornou-se símbolo anacrônico da obsolescência tecnológica que permeia a vida no campo. Desde os anos 1980, o arado não é mais o instrumento fundamental de amanho do solo – hoje se usa o plantio direto, com auxílio de máquinas que aplicam dessecantes vegetais (herbicidas) antes que as sementes (transgênicas, em muitos casos) sejam colocadas nos minissulcos abertos por tratores orientados por GPS. Quando Assis Brasil fez seu projeto, o Brasil usava exclusivamente a tração animal – o primeiro trator entrou no País em 1911.

Mais isolado do que antes, pois há quase meio século a ferrovia foi retificada, desviando-se 20 km ao norte, o castelo lembra um burgo alpino situado a 400 m de altitude, na região menos campestre do Pampa. Por ali predominam os “campos sujos”, pontilhados de capoeiras e pedras, de onde se vê a fumaça da usina termelétrica de Candiota, que gera energia a partir da queima do carvão mineral. Apesar do isolamento, ou talvez por isso mesmo, o pitoresco edifício europeu deu origem a uma vila que acabou virando município. Pedras Altas é tão pobre que ainda não tem nenhuma estrada asfaltada. Se não faltarem recursos para o Programa de Aceleração de Crescimento (PAC), é provável que até 2014 esteja pronto para inauguração o primeiro trecho de pavimento coberto com asfalto.

Durante anos entregue aos cuidados de empregados, o castelo serve de moradia para apenas uma solitária neta do pioneiro, Lydia Costa Pereira de Assis Brasil, de 57 anos, que assumiu a responsabilidade de tomar conta da propriedade após o fim do inventário, na última década do século XX. Desde a morte de Assis Brasil, há 73 anos, a propriedade só foi dirigida por herdeiras-mulheres. A atual administradora é a terceira Lydia da dinastia. Moram dentro da propriedade, em casas normais, suas duas filhas, Adriana e Joana, ambas casadas. Solidários, os genros ajudam como podem, mas ali todo mundo está consciente da verdade: a granja, ainda fiel à criação das raças bovinas devon (carne) e jersey (leite), trazidas da Inglaterra pelo pioneiro há mais de um século, sobreviveria sem o castelo, mas é incapaz de sustentá-lo, ainda mais agora que a construção está minada por infiltrações naturais no clima úmido do Pampa.

A ordenha diária de 13 vaquinhas jersey rende pelo menos 200 litros de leite por dia, mas isso não basta para a manutenção da propriedade. Há anos vislumbra-se uma saída no turismo cultural, tanto que a bisneta Joana especializou-se nesse curso, mas a saída está travada por obstáculos burocráticos. A própria Lydia abriu espaço na sua agenda para receber curiosos. Começou pedindo R$ 1 por cabeça, hoje cobra R$ 18, tarifa que ajuda a selecionar o público.

Além de mostrar os cômodos abertos, no piso térreo, ela conta a história que começa com a compra do terreno em 1904, o fim da obra em 1912 e a interferência oficial há 12 anos, quando o governo Olívio Dutra (1999-2002) deu início a um processo de tombamento só concluído em 2010, no final do governo de Yeda Crusius (2007-2010).

A parceria com o governo estadual começou depois que apareceu um misterioso empresário disposto a comprar o castelo. Antes que a maioria dos 19 herdeiros começasse a discutir a venda do castelo-problema (dá prestígio, mas custa caro), Lydia recorreu ao Ministério Público. O procurador Sergio Marin, admirador da obra de Assis Brasil, mandou o governo tomar conta do sobradão; o tombamento foi iniciado em regime de emergência. Como o governo estadual não tinha (nem tem) dinheiro, tudo continuou como antes em Pedras Altas.

Por iniciativa da castelã, foi feito um projeto de restauração do prédio histórico. Aprovado pela Lei Rouanet, não recebeu nenhuma doação empresarial. Orçado em pouco mais de R$ 5 milhões, o projeto caducou. Agora está sendo feito um novo orçamento, que deve passar de R$ 6 milhões. Por coincidência, o secretário estadual de Cultura do governo Tarso Genro (2011-2014) é o escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, 65 anos, primo de Lydia.

Considerado o sucessor de Erico Verissimo, esse Assis Brasil (ramo pobre) escreveu mais de uma dezena de romances. Em um deles, o personagem principal é inspirado no velho Assis Brasil, mas o resultado final beira a caricatura. Por isso, talvez, os primos não se deem muito bem. São apenas naturalmente distantes, cada um em sua torre, encastelados ambos, como os maragatos e os chimangos de outrora. Enquanto isso, o tempo e o vento vão desmanchando o castelo de Pedras Altas.


Comentários

Uma resposta para “Um castelo se desmancha no pampa… e dentro dele, uma biblioteca contendo livros raros como a Enciclopédia Francesa”

  1. Um pedaço da história e da memória gaúcha jogado ao tempo. Descaso com nossas raízes, nossas tradições. Povo sem história é um povo vazio e sem futuro. Triste isso.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.