Um chinês bem brasileiro

Oterno escuro fortalece a imagem de executivo de sucesso, homem responsável por negócios mundo afora. Mas quando o sorriso ilumina o rosto de Paul Liu, a sensação de sisudez vai por água abaixo. As 12 horas de trabalho diárias parecem nem pesar sobre os ombros dele, não há sinais de estresse ou estafa, obra da disciplina oriental impressa no DNA. Se as distâncias entre Brasil e China hoje estão mais curtas do que rege a geografia, é também graças ao esforço deste chinês de alma brasileira. Há anos, Paul dedica-se a tornar mais próximos dois países e duas culturas tão distintas. É fundador da Câmara Brasil-China de Desenvolvimento Econômico (CBCDE), uma entidade criada para facilitar as relações comerciais entre as duas nações. Quando a Câmara nasceu, em 2001, o volume de transações era da ordem de US$ 2 bilhões. “Hoje, ultrapassa os US$ 40 bilhões”, comemora ele. Paul não foi parar à frente de tão promissor cargo à toa. Em 58 anos de história, carrega marcas profundas feitas em parte no Brasil, em parte na China.

A família Liu vivia tranquila na província de Xandong, antiga Shantung, o mesmo nome do tecido produzido por séculos a fio naqueles rincões de mundo. O pai era comerciante de seda, acostumado a cortar léguas para ganhar o pão de cada dia. E ganhou muitos pães…
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A família prosperou por obra do viajante incansável que conhecia a China de cabo a rabo. Acabaram se tornando burgueses no país mais populoso da Terra. Em 1937, com o objetivo de criar e ampliar o império nipônico, o Japão invadiu a China. A guerra deixou uma cicatriz profunda nas entranhas chinesas. Pelas contas do país, as tropas japonesas massacraram 300 mil civis. Porém, a dor que ainda marca as famílias das vítimas não pode ser expressa em números. “Minha mãe contava que muitos chineses foram queimados, vilas, massacradas.”

Para proteger a prole, apavorada pelas pilhas de cadáveres acumuladas nas cidades, a senhora Liu partiu com os filhos para as montanhas. Antes de Paul vir ao mundo, mãe e irmãos viveram meses escondidos dentro de cavernas. “Meu irmão diz que passava os dias com água até o joelho. Até hoje ele tem graves sequelas”, conta o caçula. Ao reencontrar o marido, a senhora Liu viu-se grávida de novo. Eram tempos difíceis. Ela pensou em abortar para não expor à crueldade do mundo outra criança. Mas uma tia, enfermeira e conhecedora da milenar medicina chinesa, garantiu que, naquele ventre, estava um “filho varão”. Era prudente levar a gestação adiante, pois ele ajudaria no sustento da família. Dito e feito. Paul veio à luz pelas mãos da sábia tia. Porém, não pôde conviver com ela. Quando o menino Paul tinha 2 anos, as tropas de Mao Tsé-Tung ganharam força e terreno. Muita gente perdeu terras, fábricas, tudo. O pai havia aberto caminho até Hong Kong, esperava a esposa e os cinco filhos. Na época, ninguém obtinha o direito legal de sair do país. O jeito foi fugir.

O senhor Liu orquestrou com a família e amigos cada centímetro da fuga. À noite, mulher e filhos corriam de uma cidade para outra carregando apenas medo e a roupa do corpo. Abrigavam-se em casas de parentes para continuar o trajeto clandestino na noite seguinte. Assim, cruzaram a China.

Em Hong Kong, um pouco mais de liberdade permitia que a família sobrevivesse, mas aos poucos o território tornou-se pequeno demais para o imenso número de refugiados chineses. Sendo um homem de negócios, com visão ampla de mundo, o senhor Liu não teve receio de lançar-se além-mar. Soube que o Brasil estava incentivando a imigração e providenciou a viagem. Não havia dinheiro para pagar o luxo das passagens de avião. A alternativa era um navio cargueiro. Foram 45 dias no mar, navegando rumo a uma terra desconhecida. Dentro do navio, a senhora Liu viu os filhos amedrontados. Sem saber nada sobre o Brasil, as crianças acreditavam que tigres e leões poderiam devorá-las a qualquer momento. Qual não foi a surpresa dessa gente pequena ao ser recebida em um amplo apartamento, moderno para aquele janeiro de 1960, na capital paulista! Chineses que já moravam ali fizeram de tudo para garantir um pouco de conforto aos recém-chegados. Matricularam as crianças na escola, pois o senhor e a senhora Liu não sabiam sequer contar de um a dez em português. E nunca aprenderam.

Durante todo o tempo, a casa da família era um pedacinho da província chinesa no Brasil. A língua falada era o dialeto local, conhecido por poucos, até mesmo na China. Na escola, Paul se lembra de olhar atordoado a professora bem-intencionada sem entender nada do que a mestra dizia. O bom aluno do terceiro ano teve de voltar à primeira série para aprender na marra o beabá ocidental. “Na sala de aula, éramos ao mesmo tempo cegos, surdos e mudos. Uma manhã, encontramos a escola fechada. Voltamos para casa sem saber o porquê do compromisso cancelado. Dias depois, um colega chinês contou que havia sido comunicado sim. Era feriado, mas nós não entendíamos o que a professora dizia”, relembra Paul às gargalhadas.

Ao som do dialeto chinês, ele e os irmãos deixavam os livros de lado, em casa, para trabalharem na fabriqueta de chinelos montada pelo pai. Não havia amigos para brincar. O tempo livre, então, era ocupado com agulhas e linhas. Foram necessários meses de sacrifício até que houvesse dinheiro suficiente para a compra do primeiro frango. Um só para sete pessoas. Como se não bastassem as dificuldades financeiras, os Liu ainda esbarravam nos problemas da língua. “Íamos à venda comprar açúcar, voltávamos com sabão. Se o produto necessário era farinha, levávamos sal. Era tudo a granel, não conseguíamos ler as etiquetas.” A fábrica funcionou durante anos, até que o último dos Liu, Paul, completasse os estudos. Nessa época, ele se desdobrava em muitos: estudava engenharia civil na Universidade Mackenzie, exercitava a habilidade com as mãos a costurar os chinelos e acompanhava outros chineses recém-transformados em brasileiros nos primeiros passos pelo português. Foi assim que conheceu Sabrina.

A menina saíra pequena da China. Viveu até os 14 anos em Hong Kong para, depois, embarcar para o Brasil. Ao chegar adolescente, ciente da própria capacidade de aprender, não quis nem saber de voltar ao primário para dividir a sala de aula com crianças de 7 e 8 anos. Teve aulas com Paul Liu. Estudou e completou o segundo grau em um curso supletivo. Aos 17 anos, passou no vestibular da Fundação Getúlio Vargas, tarefa difícil até mesmo para quem passou toda a vida debruçado sobre os livros em português. “Eu sou mais velho, mas reconheço que o professor foi superado pela aluna”, diverte-se ele.

Mas ela não foi aluna por muito tempo. Logo tornou-se namorada. Quando estavam com os diplomas nas mãos, resolveram se casar e fincar raízes ainda mais profundas em solo brasileiro. Tiveram dois filhos e, na década de 1990, ele achou por bem alçar voos mais altos. Decidiu estender na China braços da firma de construção civil, aberta depois da formatura no Brasil. Para o jovem engenheiro, era a oportunidade de encontrar novos parceiros comerciais. Para os chineses residentes ainda em uma China fechada para o mundo, ter um filho graduado nas escolas ocidentais era bom começo. Mas Paul, habituado a falar chinês dentro de casa desde que se entende por gente, tomou um susto de proporções chinesas ao desembarcar por lá. A língua que Paul, os irmãos, pai e mãe falavam em casa já não existia mais pelas ruas do país. Tornou-se um idioma arcaico, extinto quando as famílias da província foram dizimadas. Os chineses riam dele quando tentava estabelecer uma conversa. Ninguém compreendia aquelas palavras. Foi preciso reaprender sua língua-mãe. Determinação ele tinha de berço. Não demorou para ela ser reconhecida. Em 2001, Paul já representava a CBCDE, e abriu as muralhas chinesas para inúmeros empresários. Foi apontado pelo cônsul como um dos grandes responsáveis por estreitar os laços entre os dois países.

Paul o fez com prazer. Orgulha-se em ver a China renascendo após “os anos negros da revolução”, como ele mesmo define, não pela ideologia, mas pelo fortalecimento. “Saí do meu país sem sequer um passaporte. Era um refugiado, perdi até mesmo a identidade, a ligação com minha pátria”, conta ele, saudoso. Hoje, a identidade vai brotando aos poucos. Paul já visitou a província deixada para trás com sofrimento. Reviu as terras perdidas pelos pais, as casas que um dia abrigaram familiares. Sobraram as memórias e uma língua morta na China, que continuará viva na saga, nas tradições e histórias dos Liu.


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