Entre os torcedores que acompanhavam São Paulo e Fluminense pela televisão da Lanchonete Ministro, na calçada da Ministro Rocha Azevedo com Lorena, nos Jardins paulistanos, a figura dele destoava dos jovens de bermudas e bonés.
De chapéu de feltro, camisa vermelha, dois solitários dentes sorrindo na arcada inferior, José Coelho Cotovio chegou em cima da hora e perguntou se poderia sentar a meu lado.
Seu Coelho, como é conhecido no bairro por onde circula faz mais de 40 anos, é uma figura rara. Tão inverossímel que, a certa altura do jogo e da sua história, pedi que ele fosse buscar documentos para provar o que me contava.
Era tudo verdade, menos a idade: ele diz ter 91 anos, mas, segundo o Bilhete de Identidade Nacional da República Portuguesa, nasceu em 29 de outubro de 1919, em Silves, no Algarve, o que lhe daria apenas 89 anos. “O documento está errado”, explica.
Com um olho na tela e outro nas minhas anotações, seu Coelho prova também que, além de são-paulino, é comunista militante e ativo, talvez o derradeiro da espécie nesta zona nobre da Paulicéia. Mostra-me o ofício que recebeu do PCP no último dia 21 de outubro em que se lê:
“Camaradas,
o Secretariado da Célula dos Membros do Partido Comunista Português residentes no Brasil convoca o camarada a comparecer no dia 9 de novembro de 2008 (domingo), às 10:00, na Assembléia Plenária da Célula, com o objetivo de debater o Projecto de Teses do XVIII Congresso do PCP (Resolução Política) e a eleição do delegado a nos representar no XVIII Congresso do PCP a ser realizado em Portugal, em novembro de 2008, na cidade de Lisboa.
Local da reunião: Rua Borelli, 100 – (Vila Afonso Celso) Vila Mariana na cidade de São Paulo”.
Coelho foi. Comunista ortodoxo e são-paulino fiel, não perde reunião do partido nem jogo do seu time. Solteiro, sem filhos, recebe uma aposentadoria de Portugal no valor aproximado de R$ 600 e mora de favor nos fundos de uma oficina de geladeiras num quarto cedido pelo dono, “um senhor baiano”.
Por que nunca casou? Coelho abre um com todos os dois dentes e faz cara de esperto: “Eu era muito andarilho, não parava em emprego nenhum Quando fui dar por mim, estava velho, não dava mais para casar”.
Açougueiro e depois padeiro no Brasil, após ter trabalhado na Marinha mercante de Portugal, de onde vem a aposentadoria, conta que trabalhou como pedreiro voluntário, aos sábados e domingos, nas obras de construção do estádio do Morumbi, e não se aposentou também no Brasil “porque não precisa, sou sozinho”.
“Eu sou ateu!”, declara, para a incredulidade dos vizinhos de mesa, entre variadas declarações de amor ao São Paulo, sua grande paixão de solteiro.
“Torço para este time desde que cheguei aqui no Brasil com 24 anos. É um grande clube, mas hoje o jogo está difícil, não sei não”, comenta, pouco antes do Fluminense marcar o primeiro gol, no começo do segundo tempo.
O São Paulo empatou logo depois, com Borges. “Só foi gol porque ele errou o chute e enganou o goleiro’, desdenha, bem humorado. Pouco antes do jogo acabar, recolhe seus documentos, acaba de tomar seu refrigerante (nunca bebeu nem fumou na vida) e pede licença para ir embora, sem explicar o motivo.
Fiquei triste porque a festa do São Paulo foi adiada para domingo que vem, mas saí de lá feliz por ter acabado de conhecer mais um tipo inesquecível entre os anônimos da cidade. Afinal, não é todo dia que se encontra um português comunista e são-paulino, tudo ao mesmo tempo, nos Jardins
Em tempo: morreu na quinta-feira, em Atibaia, aos 87 anos, o jornalista esportivo Walter Lacerda, meu contemporâneo de tribunas de imprensa. No necrológio dele pulibcado na Folha e assinado por Estêvão Bertoni, lê-se:
“Dizia não torcer para time algum, em nome da imparcialidade. Mas todos os indícios levam a família a crer que o jornalista esportivo Walter Lacerda era são-paulino – chegou a ser assessor de imprensa do time.
Outro vestígio que fortalecia a suspeita foi a bandeira do São Paulo que estava sobre seu caixão. Incertezas a parte, Walter era um apaixonado por futebol”.
Sou testemunha insuspeita: Walter Lacerda era são-paulino como eu. Por falar nisso, não existe esta história de imparcialidade nem no futebol nem na política nem na vida.
Todos temos nossas preferências. Uns, como eu, as revelam aos leitores; outros, como o velho Lacerda, escondem até da família. Mas, como se viu no texto de Bertoni, não enganam ninguém a vida inteira nem depois da morte
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