Um comunista no Palácio

 “Sem melhorar a distribuição de renda e as oportunidades, não existe política de segurança pública. reprimir é enxugar gelo”. Foto: Gilson Teixeira
“Sem melhorar a distribuição de renda e as oportunidades, não existe política de segurança pública. reprimir é enxugar gelo”. Foto: Gilson Teixeira


Em sua sala no Palácio dos Leões, sede do governo do Maranhão, em São Luís, o governador Flávio Dino (PCdoB) guarda um altar. Nele estão imagens de líderes revolucionários: à esquerda, o vietnamita Ho Chi Minh, no meio, o chinês Mao Tsé Tung e ao seu lado, o chileno Salvador Allende. Diante do trio repousa o Livro Vermelho e outra obra o pensamento de Che Guevara. Na parede à direita está uma grande pintura de São Francisco de Assis. A junção entre as figuras históricas e o frade italiano evidencia o perfil do único governador comunista do Brasil. Suas marcas são justiça social, proteção dos mais pobres e defesa da igualdade. Caminha sempre “do lado esquerdo do rio da vida”, mesmo que sinuoso.

Depois de mais de meio século de oligarquia Sarney, Dino ganhou a eleição em primeiro turno, com mais de 63% dos votos válidos, na segunda vez que disputou o cargo. A vitória é sinal de mudanças no eleitorado maranhense. No pleito municipal, o PCdoB passou de cinco prefeituras para 46. A base aliada montada por Dino, que inclui PT e PSDB (de seu vice, Carlos Brandão), levou 150 dos 217 municípios. O partido foi flexível com as novas adesões. Recebeu filiações do PT, PDT, PV e até do PMDB, de José Sarney e Michel Temer.

Mas Dino não passou pelas dificuldades de quem vive nas áreas vulneráveis do Maranhão, estado mais pobre do País. Nasceu em São Luís, em 30 de abril de 1968. É filho dos advogados Rita Maria e Sálvio Dino, também político. Estudou no Colégio Marista, onde se tornou líder do movimento estudantil  e integrou o coro pelas Diretas Já e pelo impeachment de Fernando Collor de Mello. Formou-se bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Exerceu o cargo de juiz federal por 15 anos até se tornar político, em 2006. Filiou-se ao PCdoB. Foi presidente do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur), lugar que ocupou até se candidatar.

Teve quatro filhos: Vinícius, Marcelo, Artur e Davi. Perdeu Marcelo, aos 13 anos, em um atendimento médico confuso, que não conseguiu conter uma crise de asma. A essa dor chamou de “amputação irreparável”.

Fã do papa Francisco, acredita que a fé é importante, mas para enfrentar o momento conservador que o Brasil atravessa é preciso montar uma frente única de esquerda. Para ele, isso depende de Lula.

Dino recebeu a Brasileiros no Palácio dos Leões.

Brasileiros – Governador Flávio Dino, o Maranhão parece ter se tornado o estado da resistência: elegeu pela primeira vez um governador do Partido Comunista do Brasil e confirmou a preferência pela esquerda nas eleições municipais. Como o senhor avalia esse fenômeno? 

Flávio Dino – É um sinal claro de aprovação ao governo. Como houve um poder longo, continuado, duradouro e muito cristalizado, é natural que não seja em um ano ou dois que isso desapareça. Assim como em 2014, creio que em 2016 também houve uma espécie de plebiscito, comparando esse longo passado de domínio oligárquico, coronelista, com essa experiência nova, de um ano e dez meses de governo.  

O senhor tem afirmado que é necessário criar uma frente política para unificar a esquerda e “olhar para frente”. O que quer dizer?

É importante não valorizar tanto a absurda cobrança de que a esquerda tem que fazer autocrítica, que vem dos setores políticos que não têm nenhuma autoridade para cobrar autocrítica da esquerda. É evidente que a revisão de caminhos e decisões é necessária para você não cometer os mesmos erros e aprender com caminhos que não se revelaram os melhores. Mas não é essa a questão principal, senão você não sai do lugar, fica preso a esse debate de quem errou mais e acaba se colocando em uma posição de uma espécie de tribunal da história. Nós estamos numa situação de muita defensiva até no terreno internacional, é um caminho difícil, de interdição de debates. Uma tentativa de impor uma agenda única como verdade absoluta. Um caminho de retrocessos sociais. Às vezes, da escuridão nasce a luz. É mais ou menos por aí que eu imagino que a frente atuaria.

Como se daria esse processo?

Quando tivemos experiências frentistas em outros países do mundo, derivou exatamente de contextos de dificuldades. A Frente Ampla Uruguaia surgiu num momento em que a esquerda não encontrava expressão institucional em razão da força de uma bipolarização que havia entre duas correntes partidárias do campo conservador. Foi a necessidade de constituir uma frente partidária junto com movimentos sociais que acabou criando a corrente política que se tornou a mais forte 20 ou 30 anos depois da sua fundação. Quando você vê a conjuntura chilena, era difícil fazer a transição do regime ditatorial do (Augusto) Pinochet para uma democracia política tão frágil naquele momento, que era fortemente tutelada pelo próprio Pinochet e pelos militares. Aí surge a Concertación (de Partidos por la Democracia), ultrapassando ressentimentos do passado entre os socialistas, comunistas e democratas cristãos. Ressentimentos atinentes ao próprio governo do (Salvador) Allende, que poderiam determinar que não houvesse essa união nunca. Quem foi o culpado da queda do governo do Allende? Se eles ficassem discutindo isso não teria surgido a Concertación chilena e muito provavelmente as correntes à direita teriam conseguido prorrogar seu poder. Isso vale para a Frente Sandinista, vale para o rearranjo partidário na Itália após a devastação da Operação Mãos Limpas, vale num certo sentido, embora tenha resultado numa derrota, para a tentativa de uma Frente Popular na França para resistir ao nazismo, que os espanhóis depois não conseguiram fazer e por isso o Francisco Franco acabou sendo vitorioso na Guerra Civil Espanhola. Em todos os momentos históricos de retrocesso, de perda de direitos, de defensiva do campo progressista, sempre se encontra uma saída em arranjos institucionais mais amplos. Por isso eu tenho falado na frente, como um caminho para você sair do canto do ringue, que é mais ou menos onde a esquerda acabou ficando no Brasil, objetivamente.

Em que momento aconteceu esse crescimento das correntes conservadoras no Brasil?

Em 2014 esse crescimento era nítido. Isso vem de 2013. Se você observa o que aconteceu em 2013, compreende muito claramente o que aconteceu em 2016. As sementes foram plantadas ali. Aquela disputa de ideias que nós perdemos definiu quase tudo o que veio depois. Até o impeachment, até este momento atual, tudo foi semeado na perda ideológica que nós tivemos naquele momento. Para sair disso, sugiro, proponho e tenho sustentado que você não pode ser exclusivista, não pode ter monopólio de verdade e de virtude e sobretudo tem que voltar a seduzir a sociedade. Porque há um apartamento, um distanciamento, um fosso brutal, da política institucional em relação ao povo. E a esquerda tem sua participação. Ela perdeu aderência, a capacidade de atrair setores mais amplos. Os resultados eleitorais mostram isso, o impeachment mostra isso.

Como a esquerda pode recuperar esse lugar?

Uma possibilidade seria uma longa trajetória de acúmulo novamente, como fizemos nos anos 1970 e 1980. Paradoxalmente, temos pontos de apoio muito poderosos de onde se pode reconstruir rapidamente uma posição política mais forte. Por isso que eu proponho uma frente que tivesse esse sentido tático. Não uma frente estratégica, que debata longamente se a via é insurrecional ou não, não é nada disso. É uma frente tática contingencial em torno de um programa político de reforma, de defesa da democracia, do Estado de Direito, do desenvolvimento e da distribuição de renda.  

De 2013 para cá, houve alguma mudança na aceitação dessa proposta?

Acho que há muita indefinição ainda. Tem muita gente sustentando essa posição. Agora, eu não vejo nenhum ator político que tenha a relevância e a força que o ex-presidente Lula tem. Embora eu não seja adepto da visão de que a história depende dos indivíduos apenas, por outro lado, em momentos históricos importantes, a atuação de determinados indivíduos é decisiva. Então, a evolução disso depende em larga medida das posições que o presidente Lula venha a defender. É possível fazer uma frente de esquerda no Brasil sem o PT? Claro que não. Então, eu me sinto mais ou menos nessa situação: um ator de um outro partido esperando um pouco o debate do PT, a posição do Lula.

Sobre o pleito para presidente em 2018, quem o senhor vê como candidato mais provável da esquerda? 

Até onde a vista alcança nós temos dois nomes postos, que são mais naturais: o ex-presidente Lula, uma liderança popular incontestável e impressionante, porque mantém a liderança nas pesquisas mesmo diante de dois, três anos de desconstrução de imagem; e quem mais acumulou além dele fora do PT é o Ciro (Gomes, do PDT), pela sua experiência e clareza de posições. Repito: até onde a vista alcança. Nós estamos num terreno de muita imprevisibilidade. Tem aquelas interrogações relativas à conjuntura econômica. A economia volta a crescer, não volta a crescer? O efeito do desemprego é uma chave de análise de conjuntura determinante e que não está nítida ainda. A própria dita reforma política, partidária, etc. Teremos frente, não teremos? É outra chave de conjuntura que não está clara. Temos a Operação Lava Jato, que ninguém sabe o que vai acontecer. Na hora em que você soma todas as variáveis, é muito difícil hoje fazer previsões, não só em relação à esquerda, mas em relação a todos os campos políticos. A indefinição é geral. Basta fazer a seguinte pergunta: quem é o candidato do PSDB? Ninguém sabe. 

O senhor acha que o Brasil está correndo o risco de uma eleição indireta em 2017? 

Acho que é muito difícil realmente essa hipótese, falando politicamente. Eu apostaria mais numa acomodação em torno do governo do Michel Temer do que numa eleição indireta, que seria uma outra instabilidade dentro do campo político que fez o impeachment. Dependeria de uma decisão judicial do TSE, que também acho muito difícil que ocorra, por uma série de razões não jurídicas.  

Como jurista, o que o senhor pensa sobre a Lava Jato e o uso da delação premiada como sua ferramenta principal? 

A Operação Lava Jato tem muito mais acertos do que erros, sem dúvida. Tem um mérito indiscutível de revelar fatos absurdos, graves, envolvendo o uso indevido de dinheiro público. Porém, como tudo na vida, não pode ser santificada. Eu sou católico, apostólico, romano no terreno da fé, da metafísica. No terreno do mundo sensível, visível, material, não consigo enxergar nem pessoa nem instituição que sejam isentas de defeitos. Óbvio que a Operação Lava Jato não pode fugir a essa regra – e seus atores também não podem. Há problemas, um deles é o modo como certos institutos processuais têm sido usados. Nenhum jurista brasileiro, isento, independente, vai discordar de uma constatação segundo a qual o direito brasileiro foi reescrito nos últimos dois anos. Muita coisa que nós aprendemos que era de um jeito, de repente virou de outro.

Por exemplo?

O cabimento ou não de prisão preventiva. Nós todos aprendemos que era extrema, excepcional, temporária, dificílima de manter, relacionada a fatos processualmente objetivos. Aprendemos de um jeito. Hoje a prisão preventiva está absolutamente banalizada. No longo arco da história, que é muito maior que a conjuntura, isso não me parece correto. A mesma coisa se dá em relação a esses institutos do chamado “Direito premial”, por exemplo, a delação premiada, leniência, etc. São experimentos novos no Brasil e que têm se prestado a uma série de incongruências internas ao sistema. Nós temos pessoas que cometeram fatos gravíssimos e que estão soltas. E pessoas que cometeram fatos menos graves e estão condenadas a 40 anos de prisão por em algum momento terem sido objeto de delação de a, b ou c, sabe Deus em que conjunturas. Quando você está no calor dos acontecimentos é muito difícil discernir isso. Aristóteles diz isso quando trata das condições de julgamento. Fala que a proximidade do juiz em relação ao objeto que ele julga acaba gerando distorções. Estamos no meio do processo. Daqui a alguns anos vai ficar muito evidente que nós vivemos em um período em que vigorou uma espécie de “Direito excepcional”. O que é quase uma antinomia porque o Direito existe para dar a nós todos uma certa margem de segurança e de previsibilidade nas relações sociais. No momento em que as regras são umas hoje e amanhã podem ser quaisquer outras, você tem uma perda da própria função do Direito enquanto constituição humana, enquanto construto cultural. Por exemplo, um delator fala alguma coisa hoje e daqui a duas semanas ele muda de ideia. Isso vai gerando um esgarçamento da função do Direito. Acho que esse é o grande ponto de interrogação em relação à Operação Lava Jato. Os méritos e acertos do combate à corrupção são indiscutíveis. A questão é saber, falando do ponto de vista jurídico, se isso justifica qualquer coisa. A meu ver, não. É esse cuidado que está faltando em quem hoje exerce funções no Direito de um modo geral. 

Que relação há entre resolver a corrupção e solucionar a injustiça social?

Você não pode achar que é apenas em razão da corrupção política que o Brasil é injusto como é. Isso é um desserviço ao País. Impõe-se um tema, esse tema aparentemente passa a ser a única fonte de problemas, e com isso você oculta outros tantos problemas tão ou mais graves, e outras tantas corrupções tão ou mais graves. Por exemplo, a desigualdade obscena que existe, a injustiça ínclita, inerente ao sistema tributário no Brasil, em que as pessoas mais ricas pagam menos tributos que as pessoas mais pobres. Isso não é uma forma de corrupção? No Brasil hoje ninguém debate isso. Porque se impôs uma agenda única. Claro que você tem que combater a corrupção política nos termos da lei, segundo as regras do jogo constitucional. Mas não pode ser vendido como ilusão, em que feito isso o Brasil será outro. Ou que a Operação Mãos Limpas na Itália não deu certo porque os políticos não deixaram. Pelo amor de Deus. Quem estuda a Operação Mãos Limpas a sério sabe exatamente que ela chegou aos seus limites e que não foi por conta dos políticos. Foi porque chegou num limite social e a sociedade resolveu eleger o Berlusconi. Isso não foi culpa dos políticos.

Esse tipo de pensamento também contribui para enfraquecer a crença nos partidos políticos? Abre um caminho para o fascismo?

É o que está acontecendo no Brasil. Um grupo é arregimentado, reunido para invadir a Câmara dos Deputados (em novembro pessoas invadiram a Câmara e pediram intervenção militar). Isso não é uma coisa qualquer. É um escândalo. Aquelas pessoas não se reuniram ali, não se encontraram na Esplanada e disseram “vamos ali invadir a Câmara”. Não. Elas foram arregimentadas, coordenadas para praticar aquele crime grave contra a democracia e as instituições do Estado. O que alimenta esse tipo de atitude? Quando você olha o sentido do voto em muitas unidades federadas, estados e municípios, encontra muito claramente essa desconstrução. Quando você elege a violência física como forma de luta. Isso é a negação da política, da convivência democrática, do pluralismo. Essa desconstrução dos partidos, da política, em todos os países do mundo resultou na vitória e na hegemonia de correntes à direita, de matiz fascista, adeptas da violência. Isso está se revelando no Brasil. Está muito longe de ser majoritário. Mas nós não podemos esquecer que quando essas correntes apareceram na Itália e na Alemanha, também estavam muito longe de ser majoritárias. Numa conjuntura econômica adversa, de desemprego, de crise, um (Donald) Trump ganha a eleição. Alguém achava que o Trump ia ganhar a eleição há um ano? Aliás, o chanceler brasileiro (José Serra) disse que isso não aconteceria jamais. Todos nós achávamos a mesma coisa. Mas numa conjuntura de desesperança, de descrença nas instituições, de negação da política, do vale tudo, de que não tem regras, o Trump ganha a eleição. Como Hitler tomou o poder na Alemanha e Mussolini na Itália.

A Constituição está sendo questionada?

Sim, de maneiras até inusitadas. Por exemplo, essa ideia de colocar na Constituição por 20 anos o limite de gastos. Não há antecedentes no Direito Constitucional no planeta. Em nenhum tempo. Nunca ninguém tentou nada parecido. Eu respeito muito a imaginação e a criatividade do povo brasileiro. Mas é preciso que as coisas tenham uma certa lógica e você analise a experiência de outros povos. É uma tentativa de, por intermédio disso, que é um equívoco jurídico, político, social, anular o regime de direitos que foi consagrado na Constituição. Isso é bom para o Brasil? Uma sociedade que já tem dificuldades óbvias de convivência, traduzidas, por exemplo, na violência urbana gigantesca, alimentada pelo desemprego em massa, pelas desigualdades absurdas, você vai desagregar ainda mais? Até o pobre pato amarelo, se fosse chamado para o debate, ia entender que não interessa a ele, porque ele também pode ser vítima. Ele próprio pode ir para a panela. 

Em termos de direitos, um dos principais problemas do Maranhão é a situação do sistema carcerário. O Complexo Penitenciário de Pedrinhas continua recebendo denúncias de violações. Como o governo lida com esse quadro? 

Ampliamos o número de vagas, inauguramos novas penitenciárias. Agora, sem melhorar a distribuição de renda e as oportunidades não existe política de segurança pública. Uma política puramente repressiva é enxugar gelo. Ainda há um problema no País que não é uma questão do estado: a cultura do encarceramento. Houve, por uma série de razões, a ideia de que punir é igual a prender, a ponto de que se a pessoa não for presa é como se ela não tivesse sido punida. É um equívoco monumental. Isso vale de reflexão para várias situações da Lava Jato. Muito seguramente, se houvesse uma mudança da cultura do encarceramento, a situação ia ser bem melhor. Isso vale para o Maranhão e vale para qualquer outro estado. Quando se imaginou há alguns séculos a privação de liberdade como pena, deveria ser excepcional e não algo que fosse sinônimo de punição. Crimes cometidos sem violência e sem grave ameaça à pessoa devem receber outra resposta penal. Vou dar o exemplo mais evidente: a problemática das drogas. Você tem nas penitenciárias milhares de pessoas presas por tráfico. Não são grandes traficantes, atacadistas. São as mulas, as pequenas peças da engrenagem. Vão ficar lá cinco ou seis anos. Isso vai resolver algum problema? Claro que não porque tem outro fazendo aquele papel. 

Qual é a solução?

A questão central é ver o tempo de duração do processo penal, das prisões provisórias e, sobretudo, essa história da cultura do encarceramento. Enquanto a sociedade, inclusive o Judiciário, não enxergar que nem sempre prender é o melhor remédio, realmente o sistema penitenciário vai estar posto em xeque no Brasil. Nenhum Estado consegue funcionar bem em uma sociedade intrinsecamente violenta como a nossa. A questão é que se importou aqui a cultura do encarceramento dos Estados Unidos, que é produzir uma sociedade de encarcerados. É uma contra-utopia, como se isso fosse resolver algum problema. Não vai resolver. Essa situação nossa é exemplar. É um sistema em que eu boto cada vez mais dinheiro, que falta em outras políticas públicas, porque é inelástico, mas eu tenho que botar, tenho que melhorar o sistema. A melhora depende de uma estrutura social mais justa e de uma cultura melhor acerca do papel das penas privativas de liberdade. É um debate urgente para enfrentar essa questão penitenciária no Brasil. 

O Maranhão é o segundo estado mais negro do Brasil e um dos que mais matam jovens negros. Que medidas estão sendo tomadas para enfrentar o racismo?

Primeiro dizer o tempo inteiro que o racismo existe. Essa é a premissa número 1. Parece uma commodity, uma coisa óbvia, mas durante muito tempo o racismo não foi reconhecido, pelo contrário. Segundo, adotar medidas coerentes com a constatação e reiteração da existência do racismo. Por exemplo, implantamos uma política de cotas no serviço público, não existia. Tenho defendido políticas de cotas há muitos anos, como uma medida transitória. Primeiro para sublinhar o problema, porque quando alguns falam de boca cheia de meritocracia, eu acho lindo, desde que o ponto de partida fosse igual para todo mundo. Se for igual, eu sou a favor do mérito. Desde que todas as pessoas, desde o útero materno, tenham acesso aos mesmos direitos. Enquanto houver mães que fazem sete pré-natais e houver mães que fazem zero, como é que você vai falar em meritocracia? Enquanto houver criança que vai para a pré-escola e criança que não vai, como é que você fala em meritocracia? É o que se dá em relação ao racismo. Só a atitude de falar nele já é transformadora. E adotar políticas públicas. Por exemplo, aqui no estado houve uma insurreição popular chamada “Balaiada”. Seu grande líder foi Negro Cosme. Não há nada com o nome de Negro Cosme no Maranhão. Nada. Sancionei uma lei instituindo um dia em homenagem a ele e à Balaiada. São desde medidas como essa até um decreto que regulamenta como reconhecer comunidades e propriedades quilombolas, destinando recursos para uma rota cultural com ações para as comunidades, como abastecimento de água, estrada, estímulo à produção. Há também capacitação de professores em História e Cultura Africana, além de uma campanha de respeito à liberdade religiosa. 

Para concluir: quem é Flávio Dino?

Tenho 48 anos, sou cristão, católico, fã do papa Francisco, me formei em uma escola religiosa (Colégio Marista), que naquele momento vivia o calor da Teologia da Libertação. A partir dessa formação, vivi o fim da ditadura e o começo da democracia, me integrei no movimento estudantil em 1983, fiz a campanha das Diretas como militante secundarista em 1984, e a partir daí me apaixonei pela política, pelo lado esquerdo do rio da vida. Continuo nele até hoje. Claro que, como todo o rio da vida, ele é sinuoso, mas sempre do mesmo lado desse rio. Tenho muita alegria com tudo o que faço profissionalmente, fui deputado, fui juiz, sou professor, hoje governo o Maranhão. Me dedico muito às coisas que faço, tenho quatro filhos lindos. Torço para o Sampaio Correia, do Maranhão. Gosto de coisas difíceis, por isso quando tem jogo nacional torço para o Botafogo. Sou comunista graças a Deus, e estou dedicado a uma missão: defender a igualdade e a justiça social, e entregar o Maranhão para o próximo governador em condições melhores do que eu recebi. Não tenho uma visão salvacionista em relação a isso, de que vou fazer milagre, não sou candidato a fazer milagre. Se eu pudesse, faria. Porque a injustiça me dói na alma. Sou inconformado, sou insatisfeito. Acho que as coisas têm jeito. Sou um otimista na ação, como o velho (filósofo marxista Antonio) Gramsci determinava e eu procuro seguir. Pessimista na teoria ou na crítica e otimista na razão ou na vontade, ou na ação. É um momento da minha vida que estou vivendo com o máximo de energia possível. Depois vou fazer outra coisa. Mas sempre do lado esquerdo do rio da vida e militante das causas de justiça social, direitos humanos. Não tenho a pretensão e o desejo de virar político profissional. Não imagino que isso seja bom. A dedicação a um cargo político deve ser transitória. Há dez anos eu exerço cargos políticos, mas não é uma coisa que eu vá fazer até ficar bem velhinho. Tenho desejo de ficar bem velhinho, se for possível. Mas não de ficar no cargo a, b, c. Não é o que me move. Em algum momento vou procurar contribuir de outro jeito. Considero que é um processo coletivo de transformação de um estado, que não depende só de mim. Por isso é preciso não só caminhar nessa direção, mas olhar para os lados e fazer com que muita gente caminhe na mesma direção. Porque se você estiver caminhando sozinho, mesmo que a direção esteja certa, está errado. Você nunca pode caminhar sozinho, mesmo que ache que está certo.

Colaborou Kátia Passos, dos Jornalistas Livres


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