Um dia fomos todos mulheres

Todo mundo é mulher, quando concebido. Depois é que o pinto cresce. A prova é o mamilo do homem. Serve pra quê? Me diga? Pra nada!”

E foi assim que mais uma vez tive a certeza de estar de volta à Bahia. Mais ainda, de estar novamente em companhia do Bando de Teatro Olodum. Sim, porque só mesmo essa turma para reter um pensamento desses e reproduzi-lo de forma tão divertida.

Fazia dois anos que não voltava à minha terra, desde as últimas filmagens de Ó Paí, Ó. E foi só cruzar a fronteira do Espírito Santo com a Bahia para me dar conta da falta que me fazia aquilo tudo. A primeira parada foi em uma barraca de praia em Olivença, para comer qualquer coisa antes do almoço. Mal sentamos, outro carro estacionou, abriu o porta-malas e um samba duro, bem safado, explodiu com toda a força da aparelhagem de som que nos encarava. No mesmo instante, algumas mesas adiante, duas mulatas puseram-se a dançar.

Elas exibiam suas carnes fartas que o biquíni pouco escondia e, com sorriso econômico, remexiam com uma malícia programada e sutil, encantando a praia inteira. Era pura sensualidade. Essa foi a nossa recepção.

Dali, partimos para uma praia deserta em Itacaré, onde passaríamos o Ano Novo na companhia de seis amigos americanos do mundo do cinema. Foram oito dias isolados, todos devoravam livros. A convivência só acontecia durante as refeições, quando conversas ligeiras eram suportadas antes de corrermos de volta para as páginas com vista para o mar e brisa fresca. Éramos bestas-feras sem internet, celular ou vida social.

A cozinheira baiana dividia seu descontentamento – em português – comigo e meu marido: “Olha que já vi gente lendo, mas igual a esse grupo, nunca vi não”. Estávamos todos famintos, mas de silêncio. Li de novo The Elephant Vanishes, de Murakami, tentando entender o que me fizera querer, há seis anos, levar esse livro para o palco. Depois, li Que Seja em Segredo, de Ana Miranda, sobre os freiráticos – amantes de freiras apaixonadas. Finalmente, li pela primeira vez um livro de Bia Bracher, e fiquei encantada com Antonio. Uma obra-prima corajosa.

Mas era impossível estar ali, em uma praia delimitada por dois morros de mata virgem e não pensar em nossos primórdios, na vista que os portugueses descobriram, não lembrar de Boca do Inferno – roteiro que venho trabalhando em conjunto com Ana Miranda para levar às telas essa sua obra tão espetacular sobre a Bahia do século 17. Uma ideia bem ambiciosa, mas que logo enfeitiçou o produtor Augusto Casé e a Globo. A Bahia tem os seus encantos. Que os orixás abram o caminho para Boca.

Compreendi que não conseguiria voltar para o Rio ao raiar do novo ano, precisava seguir até o centro de tudo. Raymond não tinha pressa de voltar a São Paulo e tinha vontade de estar com sua família em Salvador. Sua mãe teve 11 irmãos. Seis mulheres. Quatro casaram com gringos. Meu sogro é suíço, e Raymond tem tio italiano, escocês e inglês. Todos casados há mais de 50 anos. As duas que casaram com brasileiros se separaram.

Seguimos pelo Recôncavo até chegar a São Gonçalo dos Campos, cidade da minha família. Cenário das minhas recordações de infância, adolescência e de Jenipapo, meu primeiro filme. Ao contornar a praça da Matriz para descer à casa de minha tia Julita, nos deparamos com uma multidão e um trio elétrico imbicados na ladeira. Era a Igreja Católica travestida de evangélica, dando início à novena. Seguimos atrás, com direito a foguetório à nossa chegada.

No dia seguinte, com meus primos queridos Luiza Maria e Guilherme fomos visitar a fábrica de charutos cubana Menendez & Amerino. Um sonho para o Raymond. Para mim, uma viagem no tempo. Nunca me esqueço do cheiro de fumo do armazém de meu avô Juca, das mulheres muito pretas rolando folhas de tabaco em suas coxas descobertas de seus vestidos de algodão. Hoje, ainda são todas mulheres, todas negras, de t-shirt vermelha e calça jeans. Lá, encontrei Raimunda, cozinheira que cuidou tão bem da gente dez anos antes em outra virada de ano em Salvador com nossos amigos americanos. Ela agora cuidava das cigarrilhas Dona Flor. Eu me lembrei de Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves. Entendi que tinha buscado mesmo aquela visita. Seu livro narra de maneira brilhante a saga de uma negra capturada criança na África e feita escrava no Brasil. Por um tempo, ela sobrevive de charutos em um comércio entre Salvador e São Félix. Esse foi o único livro em que encontrei o ponto de vista do negro.

Antes de seguir para Salvador, matamos as saudades de Nazareth das Farinhas, São Félix, Cachoeira e visitamos Santo Amaro da Purificação. Queria conhecer a cidade de Bethânia e Caetano. Passamos pelo Rio Subaré e tentamos lembrar a letra da canção. Fiquei impressionada como a cidade era grande. Tinha até sinal de trânsito. Duas semanas mais tarde estaria com Bethânia em Recife, para o Circuito Cultural Banco do Brasil, onde ela interpreta Chico. Contei de nossa viagem e ela disse: “Vocês foram à casa de minha mãe? Todo mundo vai”. Bem que eu tive vontade, mas ia me sentir muito turista.

Finalmente, Salvador. A “Boca do Inferno”. Eu me hospedo no Convento do Carmo, onde um crime histórico teria acontecido, envolvendo a família Garcia D’Ávila. O hotel está repleto de estrangeiros. No adro da piscina, dá para ouvir muitas línguas, como na Bahia do século 17. Os únicos negros usufruindo do sol são dois modelos altíssimos e magros americanos, de passagem pela cidade para um ensaio fotográfico de moda.

Abro o jornal e descubro que o Bando de Teatro Olodum vai encenar Cabaret da Raça no sábado. Fico na maior alegria, poderei encontrar todos de uma vez. A peça brinca, para revelar de forma contundente, as faces ocultas e complexas do nosso racismo em situações de nosso cotidiano. Uma pergunta é dirigida para um rapaz negro da plateia por um ator igualmente negro, que encarna uma deliciosa bichinha: “Como é seu nome?”. O rapaz responde. O ator: “Uhmmm… que voz…”. E Leno emenda: “Alguma vez você se sentiu vítima de preconceito?”. O rapaz conta que, ao se aproximar de seu carro no estacionamento de um shopping, pôde sentir o medo que provocava na mulher que acabava de deixar seu veículo para ir às compras. O pavor da moça só desaparece quando ele abre seu próprio carro e se encerra em seu automóvel.

Em um outro momento da peça, um ator negro insinuante e gostosão pergunta a uma moça loura da plateia se ela toparia ir com ele a um barzinho depois da peça. Ela responde: “Agora!”. Ele, então, pergunta se não sente preconceito. Ela diz que não, nem ela nem seus amigos. Ao se despedir da moça, ela ainda arremata: “Até mais tarde!”.

Aí, me lembro de que nas pesquisas para o filme Boca do Inferno, o professor João Adolfo Hansen me contou que o padre Manoel da Nóbrega escreveu ao rei de Portugal desesperado, pedindo que mandasse mulheres para a Colônia: “Nem que sejam as erradas!”. Muitas putas e órfãs foram enviadas para cá. Muito mais negras ainda vão terminar de dar conta do apetite dos homens daqui. A Bahia nasce assim. Uma marca que ficará para sempre. Que bom. Um dia fomos todos mulheres.

Monique Gardenberg


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