Um drible nas diferenças sociais

Vinte minutos depois do horário combinado, Raí chega ao seu escritório na Vila Madalena, em São Paulo. Estranha a nossa presença – minha e da fotógrafa Luiza – tão cedo. Para ele, nossa conversa estava marcada para as 18 horas daquela sexta-feira de junho, e não às 17 horas, como havíamos,
de fato, combinado. Pediu mil desculpas. Raí Souza Vieira de Oliveira é um gentleman. Nem parece que passou a maior parte de sua vida entre marmanjos desbocados e truculentos. É educado, discreto, simpático e bonito, muito bonito. E esbanja charme para George Cloney nenhum botar defeito. Durante a entrevista de mais de uma hora, ele foi atencioso, falou rápido, com voz baixa e gestos contidos. De vez em quando, abria um sorriso encantador. Nada de gargalhadas fora de hora. Assim é Raí.

Esse jeito equilibrado pode explicar parte do seu sucesso como atleta. A outra, sem dúvida, é o seu talento. Saído de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, onde iniciou sua carreira jogando pelo Botafogo, Raí encontrou seu lugar no São Paulo Futebol Clube. Defendendo o tricolor, foi cinco vezes campeão paulista, venceu duas Libertadores, um Brasileirão e um Mundial. Com a camisa 10 da seleção brasileira, foi campeão na Copa de 1994, e na França, onde morou por cinco anos, foi campeão pelo Paris Saint-Germain.

Como se não bastasse toda a sua contribuição para o futebol, Raí resolveu deixar sua marca fora dos gramados. Desde 1998 ele está diretamente envolvido em causas sociais. Em parceria com o amigo e também campeão mundial Leonardo, criou a “Fundação Gol de Letra”, que atende crianças e jovens carentes por meio do esporte. Não contente, há dois anos, ele se juntou com outros campeões e formou a ONG “Atletas pela Cidadania”, desta vez com uma proposta de atuação mais ampla. “São vários atletas de modalidades e gerações diferentes. Não existe nada parecido em lugar algum do mundo. Temos critérios de adesão, de só ter atletas que já representaram o País”, explica o campeão. Aos 43 anos, esse atleta-cidadão mostra que ainda tem fôlego para muito mais. Confira.

Brasileiros – Qual é a idéia principal da Atletas pela Cidadania’?
Raí Souza Vieira de Oliveira –
Em um primeiro momento, a nossa proposta é fazer valer a Lei do Aprendiz, lei federal que obriga todas as empresas a contratarem de 5% a 15% de jovens em seu primeiro emprego. Se a lei fosse cumprida, renderia até dois milhões de novas oportunidades para jovens. Fizemos uma parceria com o Ministério do Trabalho, e criamos um placar que mostrará mensalmente os números de aprendizes empregados no País. Faremos várias campanhas e parcerias estratégicas para incentivar o cumprimento da lei entre as empresas.

Brasileiros – Por que criar outra ONG?
Raí –
Era uma idéia que vinha se formando há um tempo, junto com outros atletas. No Gol de Letras eu aprendi muito sobre área social e eu comecei a imaginar qual a força que teríamos para fazer algo maior, macro, com ações políticas. Poder utilizar o nosso poder dentro do esporte, conseguir maior mobilização e visibilidade para direcionar isso em causas como a educação também me motivou.

Brasileiros – O que difere a Atletas de outras ONGs?
Raí –
A nossa proposta é fazer alguma coisa com grande impacto, em maior escala, não necessariamente relacionada ao esporte.A nossa primeira iniciativa foi montar uma equipe e um local de trabalho fixo. Isso nos garante um suporte estratégico. Essa equipe também nos alimenta com conteúdo e faz pesquisas, para que a gente saiba até onde podemos ir.

Brasileiros – Como é a atuação dos atletas na ONG ?
Raí –
Nós nos organizamos de acordo com nossas agendas. A gente procura se dividir para estar presente nas ações. Mas a idéia é que daqui a pouco a Atletas para a Cidadania seja uma marca que por si só nos represente, sem que a gente tenha que estar presente fisicamente.

Brasileiros – Como a questão social entrou na sua vida?
Raí –
Isso é algo muito ligado à família, à minha maneira de ser. A diferença social existente no Brasil sempre me sensibilizou, principalmente depois que eu comecei a jogar. No futebol, cerca de 95% dos jogadores vêm de classe pobre e eu via o quanto o percurso deles era mais difícil do que o meu por falta de oportunidade. Eu vivia essa diferença no dia-a-dia, era muito evidente e explícito. Acredito que essa situação acabou aguçando minha preocupação com causas sociais.

Brasileiros – Como é a sua rotina hoje?
Raí –
Eu me divido entre a minha empresa e as ONGs. Faço muita palestra, campanhas publicitárias. Por isso, montei uma pequena equipe e agora estamos começando a mexer com projetos especiais, como o camarote especial no Estádio do Morumbi. O lugar, chamado “Sala Raí”, é um espaço multicultural, assinado por Rui Othake, onde as pessoas podem assistir a shows de chorinho, um curta-metragem, ver exposições, tudo antes de um jogo ou de outro evento no estádio.

Brasileiros – Ao contrário de muitos ex-jogadores, você está investindo em áreas distintas do futebol. Por quê?
Raí –
Eu não quero viver de coisas ligadas ao passado. Nos primeiros anos depois de largar a carreira tudo bem, mas depois… aí é uma inquietação pessoal. Estou sempre atrás de coisas que me façam crescer.

Brasileiros – O que você gosta de estudar?
Raí –
Eu tranquei minha faculdade de história quando vim para São Paulo, mas já estudei filosofia e fiquei praticamente o ano passado todo em Londres. Foi um ano sabático. Quis me aperfeiçoar no inglês e ter um tempo para mim.

Ouça um trecho da entrevista:

 

Brasileiros – Fale sobre seus projetos futuros.
Raí –
Quero muito continuar na área social, cuidar das coisas que acredito e ter outros espaços culturais na minha empresa. Paralelamente a isso, eu pretendo continuar estudando para buscar mais conteúdo, seja para os meus projetos sociais ou para minha empresa.

Brasileiros – Como você avalia a atual fase da seleção brasileira?
Raí –
Estamos numa fase de transição. Acho que o Dunga, que conheço bem como pessoa, tem perfil e capacidade para ser treinador. Ele precisa de tempo. Na Copa de 2006 havia talento, mas não entrosamento na equipe. Acho que o Dunga foi em busca desse espírito. Ele precisa mexer com os brios dos atletas. Não dá para dizer que esse é o caminho certo, mas é uma aposta que tem que ter o seu tempo para dar certo.

Brasileiros – Existe uma falta de identificação entre torcedores e atletas, já que muitos jogam fora do Brasil?
Raí –
É uma dificuldade a mais, mas os melhores estão fora mesmo. Não dá para abrir mão. Tem atletas que ficam seis meses, um ano, no campeonato aqui e vão embora. Então, se fizerem uma seleção com todos os jogadores brasileiros, no ano que vem estarão todos fora. A Copa é uma vitrine. Claro que lidar com esses profissionais é um desafio, mas é uma situação contornável se bem administrada.

Brasileiros – Como você avalia a sua contribuição para o futebol brasileiro?
Raí –
Superpositiva. Eu tive a sorte de conquistar os maiores títulos possíveis da minha carreira. Vejo que marquei uma geração não só como atleta, mas como postura. O Diego e o próprio Kaká são jogadores que se inspiraram em mim como ídolo. Acho que isso é um exemplo concreto da marca que eu deixei. Mas, fora o lado positivo, tem o lado que eu sinto que poderia ter feito diferente.

Brasileiros – O quê, por exemplo?
Raí –
Sempre fui muito comportado como atleta. Eu poderia ter sido mais ousado, irresponsável em campo. Eu tinha técnica, mas era um jogador muito disciplinado. Acho que hoje, com a maturidade, eu seria mais solto, mais extrovertido.

Brasileiros – Qual a sua maior frustração profissional?
Raí –
Eu não ter sido titular em todos os jogos da Copa do Mundo (1994). O campeonato não caiu no melhor momento da minha carreira. Mas, mesmo assim, eu fui campeão pela seleção, então também não dá para reclamar.

Brasileiros – Como foi viver cinco anos em Paris?
Raí –
Foi uma experiência muito rica. Procurei aproveitar o máximo da cultura e da história do país. Amadureci muito como pessoa e mudei a visão que eu tinha sobre o Brasil. Viver num país conhecido por seu respeito aos direitos humanos foi muito bom. Há um exemplo de igualdade social que eu sempre faço questão de citar. A filha da minha empregada estudava na mesma escola e tinha o mesmo médico que a minha filha. É isso o que eu considero justiça social.

Brasileiros – Você é um homem elegante e antenado em moda. De onde vem esse bom gosto?
Raí –
Isso tem muito a ver com Paris. Não sou um grande entendedor, mas saber o nome do estilista é bom pra impressionar (risos). Gosto de seguir lançamentos. A semana de moda lá em Paris faz parte do dia-a-dia de todo cidadão, passa na TV aberta, não tem como não acompanhar. Aqui no Brasil gosto do Ronaldo Fraga, do Alexandre Herchcovitch. Lá fora gosto do Christian Lacroix.

Brasileiros – Com tantas atividades profissionais, dá tempo de se divertir?
Raí –
Eu gosto muito de ir ao cinema, ouvir música, ir a shows. Também adoro andar de bicicleta. Tento ir a parques aqui em São Paulo, pois nas ruas dá medo. Curto muito MPB, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Nando Reis, Marisa Monte, Djavan.

Brasileiros – Como você lida com a exposição pública?
Raí –
Eu procuro ser o mais natural possível. Ando de metrô, gosto de ir a eventos públicos. Evito dar entrevista para revistas de fofoca. Confesso que isso é uma das grandes razões para eu não ser treinador de futebol. Eu estou curtindo essa vida menos exposta. Se eu fosse treinador, sair para jantar aos domingos seria terrível.

Brasileiros – Como foi ser pai e avô tão jovem?
Raí –
Eu tenho três filhas – a mais nova com 3 anos – e uma neta. Fui avô aos 34 anos. Minha neta está com 9 anos. Curto bastante ser avô, temos uma relação muito próxima. Ela me chama de “vovi”, eu adoro. Claro que na época houve dificuldades, minha filha era muito jovem, mas tivemos estrutura para enfrentar a situação. Eu era um jogador veterano e, de repente, virei um avô supernovo. Voltei a ser jovem em alguma coisa (risos).

Brasileiros – Você está casado?
Raí –
Não.

Brasileiros – Como você vê a política brasileira?
Raí –
Acho que estamos num momento econômico único para dar um salto nos problemas sociais. O governo Lula tem essa preocupação social. Está chegando a um ponto em que o crescimento vai esbarrar na falta de mão-de-obra qualificada. É preciso um investimento maciço na educação de base, que tem tudo a ver com a Lei do Aprendiz. Eu acredito no Brasil, mas acredito que pode melhorar muito mais.

Brasileiros – Como você definiria o Raí?
Raí –
Uma pessoa que está sempre em busca de crescimento e de autoconhecimento. Busco nisso razões para ser feliz.

UNIDOS PELO SOCIAL
Há dois anos, um grupo de atletas, formado por nomes como Raí, Ana Moser, Lars Grael, Ida, Gustavo Borges, Joaquim Cruz e Magic Paula, decidiu unir forças para mobilizar a sociedade civil e o poder público para elaborar ações sociais amplas e de interesse nacional. Estava oficialmente criada a ONG Atletas pela Cidadania. O objetivo é abraçar causas macro e não focar em apenas um tema específico, como o esporte. “Escolhemos trabalhar com políticas públicas abrangentes, de relevância para o País”, diz Raí. O primeiro tema escolhido foi Educação e Oportunidade para os Jovens. A intenção é fazer com que a Lei do Aprendiz (Lei nº 10.097, criada em 2000, mas regulamentada em 2005, que obriga as empresas com mais de cem funcionários a contratar de 5% a 15% de jovens aprendizes entre 14 e 24 anos) seja colocada em prática. A meta da Atletas é que o País atinja a marca de 800 mil jovens aprendizes contratados até 2010. Entre as atuações da ONG está a de divulgar as boas ações, firmar parcerias com outras instituições, fazer campanhas de rádio e TV e estimular a adesão das empresas. “Queremos mostrar às companhias o que é responsabilidade social. Elas não precisam montar o seu próprio instituto. Empregar aprendizes também é responsabilidade social”, afirma Daniela Castro, coordenadora executiva da Atletas. Atualmente, 35 esportistas fazem parte da Atletas pela Cidadania.


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