Ao mesmo tempo em que nos recebe na sede do Instituto Acaia – instalado na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo – para contar sobre seu mais recente trabalho e sua experiência como fundadora e diretora de uma ONG que começou com um ateliê de artes e hoje possui mais de 300 inscritos, Elisa Bracher não pára quieta. Sem secretária ou assistente, ela conversa com os meninos que vira e mexe aparecem em sua sala, atende a telefonemas e resolve pepinos da montagem de sua exposição. Com formação universitária pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Elisa, aos 43 anos, é uma artista plástica renomada e reconhecida por suas gigantescas esculturas. Mas, como se não pudesse dissociar uma coisa da outra, ela também atua como educadora, psicóloga, agente social e antropóloga. Essas são algumas das funções informais que ela exerce há 11 anos, desde que fundou a ONG.
O Instituto Acaia – “útero” em tupi-guarani – é um ambiente de criação e acolhimento para a população carente da região. O terreno onde ele está instalado abrigava um enorme frigorífico abandonado que foi comprado pela artista para ser seu ateliê, com pé direito alto e uma área externa capaz de suportar suas gigantescas obras de madeira, pedra, ferro e outras pesadas matérias-primas. No final de 1997, Elisa iniciou um trabalho com um grupo de crianças das duas favelas vizinhas ao ateliê, a “da Linha” e a “do Nove”. “Sempre fui artista e por trabalhar com uma estrutura quase industrial para a produção de obras únicas, dispunha de uma grande área, material e assistentes. A princípio, poderia receber as crianças usando a logística que eu já possuía.” Com o tempo, a iniciativa cresceu, ganhou força, e os terrenos ao lado foram sendo incorporados. Em 2001, o Ateliê Acaia institucionalizou-se. Dirigido pelo banqueiro Fernão Bracher, pai de Elisa, o agora Instituto Acaia ampliou suas áreas de atuação e, além do ateliê, implantou o Sagarana (para especializações e cursinhos de inclusão social) e o Acaia Pantanal.
[nggallery id=15586]
O passo inicial de Elisa ao abrir seu mundo para essa troca com o universo vizinho foi propor às crianças da favela um curso de marcenaria. “Elas demoraram para aparecer e, durante um ano, trabalhei apenas com seis crianças. Eram muito tensas, tinham dificuldades em reconhecer o lugar. O trabalho foi, durante muitos anos, o de abrir tempo e espaço para elas se sentirem capazes de começar a construir alguma coisa.” A princípio, havia uma forte desconfiança por parte da comunidade local. “Afinal quem era eu e o que sabia daquela gente para ir assim oferecendo coisas? Demorou, mas em 2000 o ateliê se encheu de crianças. De uma só vez vieram 40 e as aulas foram surgindo de acordo com as necessidades: culinária para fazer o lanche, costura para chamar as mães, música para ajudar o trabalho em grupo e assim por diante. Hoje, conseguimos conquistar a confiança dessas pessoas.” A equipe de professores e funcionários da ONG é composta por profissionais de fora da comunidade. Não ter voluntários é um princípio. Para Elisa, também é preciso fazer com que essas pessoas não fiquem presas ao seu pequeno universo. “Eles adorariam não sair nunca daqui, o que é um movimento ruim na verdade. O ideal é ganhar o mundo.”
Em 11 anos, a artista criou uma relação de forte intimidade com o local. Essa confiança fez com que Elisa e a ONG tomassem partido dos moradores e entrassem na justiça com uma ação de usucapião coletivo, para impedir a demolição da favela da “Linha”, ameaçada pela especulação imobiliária da região. Para dar entrada nesse processo judicial, foi pedido um levantamento físico do lugar, a ser produzido em um tempo muito curto. O engenheiro do caso pediu que Elisa fizesse o registro fotográfico dos barracos, as fotografias precisavam ser feitas rapidamente, sem apuro técnico e intenção estética. Seriam fotos documentais, que tampouco continham aspectos de denúncia, análises antropológicas ou sociológicas.
Apesar de o impulso original do trabalho ter se guiado por um puro registro técnico e não artístico, quando viu o resultado das fotos, enxergou sobreposições de cores e volumes, fios que lembraram as linhas de suas gravuras, composições brutas, restos de céus, um jogo de equilíbrio e desequilíbrio, acúmulos e vazios, comuns também em toda a sua produção artística. Ela hoje brinca que o seu diretor de arte foi um engenheiro. Percebendo que aquilo a levaria para um trabalho pessoal, de compreender mais a fundo as estruturas e formas desse espaço, teve a idéia de ir aos locais de origem da maioria desses moradores para procurar alguma relação entre as habitações. Viajou por sete Estados do Nordeste, fotografou casas, fachadas, interiores e as maneiras como se colocavam no universo do sertão. Foi munida apenas dos muitos endereços e nada mais. Tentou aproximar-se das pessoas com a mesma intimidade conquistada em São Paulo, porém foi recebida com desconfiança. “A senhora é detetive? Não, não sou detetive! Então veio entregar cesta básica? Também não vim entregar nada. Veio cadastrar? Não, não vim cadastrar. E quando eu contava o que tinha ido fazer lá, todos achavam que eu era louca de pedra.” Encontrou famílias que não viam nem ouviam falar de seus familiares migrantes há mais de dez anos. A falta de notícias é fruto de um enorme desejo de romper totalmente com as origens por parte dos que vieram para a cidade grande. Um desejo de não fazer mais parte daquilo que ficou.
O resultado de suas pesquisas é fruto de dois momentos distintos, duas formas de fotografar. Elisa questionou a máxima de que a desordenada ocupação que forma as favelas ocorre no choque da chegada à cidade grande. Em busca de uma vida melhor, os migrantes encontram realidades difíceis e aglomeram-se caoticamente para se ajudar, na tentativa de suprimir o vazio angustiante da mudança. No Nordeste, ela descobriu uma semelhança grande entre os dois mundos. “Os fatos mais marcantes, que determinam o estar no mundo de cada um deles, são os mesmos, uma falta de mundo, de perspectiva.” Esse vazio que aparece nas casas do sertão nordestino está também nas estruturas dos barracos aglomerados aqui. Questionada se com essa defesa pela permanência dos barracos na antiga linha de trem, não temia que as suas fotografias fizessem uma apologia à favela como forma digna de moradia, ela rebate. Diz que não é a favor de favelas em si e defende a idéia de que essas pessoas têm de morar bem e continuar existindo a uma distância que não ultrapasse um quilômetro de onde vivem. Otimista, crê que ainda encontrarão alguma área para que possa haver uma transferência daquelas pessoas. “Não há um encantamento por essa favela, muito pelo contrário. Eu gostaria muito que ela não existisse, se fosse possível. Esse trabalho só virou exposição porque eu reconheci o meu olhar nas fotos e fui tentar compreendê-lo melhor com essa viagem ao Nordeste”, comenta a artista, que pretende continuar fotografando.
A exposição a que se refere é A cidade e suas margens, inaugurada no Museu da Casa Brasileira no último sábado de setembro. Com curadoria própria e do crítico de arte Rodrigo Naves, deve permanecer na capital paulista até a segunda quinzena de outubro. A mostra é o resultado dessa experiência com a fotografia e o seu trabalho com a ONG. Pela primeira vez, a artista utiliza a linguagem fotográfica em sua obra, porém, isso não foi uma escolha e sim uma contingência. Atualmente, são duas as vertentes de trabalho que ela vem desenvolvendo: uma como articuladora de uma organização social e outra como artista plástica, que expõe em galerias, mostras internacionais e tem intervenções pela cidade de São Paulo. Fruto de um processo natural de imersão e expressão, ela diz ter unido esses mundos.
Meninos nos interrompem, pois estão com um projeto de um vídeo-documentário, desenvolvido nas aulas do ateliê. O tema são os “esgotos boys”, meninos que cresceram em meio ao esgoto. O projeto está ligado a uma reivindicação pela implementação do saneamento básico nas favelas e eles pedem à Elisa para que ela os ajude a pesquisar fotos da enchente que ocorreu em maio de 2004 e destruiu vários barracos. Depois de atendê-los, ela retorna e conta que já fotografava há algum tempo, mas nunca havia conseguido encontrar algum gancho que fosse forte o suficiente para incorporar a fotografia ao seu trabalho de artista. Diz que a linguagem só tem sentido se o tema tiver força. A tarde se vai. Enquanto ainda resta um pouco de luz, Luiza, a fotógrafa de Brasileiros, coloca Elisa entre suas esculturas e instalações de mais de 14 metros de altura. Cabelos grisalhos caídos sobre o rosto, roupas folgadas e muita firmeza em suas falas, ela é amorosa e paciente com todas as crianças e, tímida, se nega a interromper os jogos deles para ser fotografada na quadra. Em dois dias abriria sua exposição. Pelo telefone os arquitetos discutiam se deveriam ou não mudar a altura dos quadros e, apesar de ONG e museus serem mundos tão opostos, ela parece de alguma forma contente em ter encontrado um elo entre eles.
A diferença social, esse abismo que existe entre a artista filha de banqueiro e seus vizinhos das favelas com quem trabalha, ficará com ela para sempre. É constante, difícil, mas a impressão que fica é que ela lida com tranqüilidade e trabalha essa gritante diferença com sutileza e tato natural. Elisa Bracher demonstra estar à vontade com o ambiente, com a troca. “Esse choque social me dá uma noção de realidade bem bruta. Esse movimento todo, essa troca, tem muita vitalidade. É um trabalho de sintonia fina”, conclui.
Deixe um comentário