29 de maio de 2009, sexta-feira
Ele é adepto da ação direta. Não telefonou antes. Chegou na portaria do Memorial da América Latina e disse em bom português, disfarçando o sotaque: “Posso falar com o presidente?” Como assim? Você tem hora marcada? Diante do espanto dos seguranças, usou sua arma secreta: “Sou jornalista inglês”. Ah, bom, então vou te pôr em contato com o nosso jornalista, um minutinho. “Jornalista inglês? Opa, manda o cara subir”, respondi ao telefone. Quem resiste a um jornalista inglês na zona cinzenta das 17 horas de uma sexta-feira? A palavra “jornalista” foi preponderante até aqui. Ser colonizado tem seu lado bom, entende.
O inglês chega ao segundo andar. Tenho-o agora à minha frente, branco, alto, magro, sem nenhum traço de barriga apesar de passar dos 50 anos, cabelos curtos, lisos, castanhos e penteados cuidadosamente para o lado. Camisa quadriculada clara e calças jeans escuras. “Sou o Peter Godfrey”, diz, “jornalista freelance do Morning Star, um jornal comunista da In-glaterra”. E apresenta uma carteirinha de imprensa confeccionada pela polícia de Sua Majes-tade. “Posso falar com o presidente?”
Alguma coisa no Peter Godfrey está fora do lugar. Sinto logo de cara, mas ainda não consigo identificar o que é. Não aparenta o profissional escolado que era de se esperar da centenária imprensa esquerdista da Velha Senhora. Peter Godfrey é alto, esbelto e maduro, mas com jeito de menino que pede desculpas por estar ali. Agora está tirando um horrível e melequento lenço de pano do bolso e o leva à boca antes de tossir. Depois, limpa o nariz. Está gripado.
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Fui sondar o gabinete do presidente do Memorial, Fernando Leça. Lusco-fusco entre o fim da semana e o início do fim de semana. “Presidente, tem um jornalista inglês aí”, tento. “Oh, mande-o entrar, claro.” Deixei os dois lá conversando e fui buscar minhas filhas na escola. Quando voltei, uma hora depois, o presidente me contou que Peter Godfrey venera Oscar Niemeyer e por isso o presenteara com alguns livros raros sobre o arquiteto. Foi generoso. Prometera ainda uma entrevista dele com o objeto de sua veneração.
1º de junho, segunda-feira
Peter Godfrey me liga agradecendo pela força na sexta-feira, se desculpa por não ter me esperado e pergunta algo ansioso se o presidente havia marcado a entrevista com Oscar Niemeyer. Consulto o gabinete e nada ainda. Digo que vou ajudá-lo.
2 de junho, terça-feira
Logo de manhã reconheço o sotaque no telefone. “Vamos almoçar, preciso falar com você.” Era, claro, Peter Godfrey. Nos encontramos no ambiente niemeyeriano do restaurante por quilo do Memorial, tendo ao fundo uma azulejaria de Athos Bulcão em preto e branco. Peter Godfrey teve dificuldade em escolher o que comer. “Sou vegetariano há 30 anos”, me contou. “Comunista e vegetariano”, disse, revelando o que talvez fosse um laivo de humor inglês: “Não sei bem, mas acho que é Hugo Chávez quem costuma dizer que Fidel Castro e Niemeyer são os dois últimos comunistas do mundo”.
Peter Godfrey disse “muito obrigado” pela intermediação umas dez vezes durante o almoço, mas estava preocupado. “Tenho medo que Vera Niemeyer, que controla a agenda de seu marido, não marque a entrevista até o final desta semana. Na outra, tenho que voltar a Londres, pois meu visto vence.” O jeito é esperar, mas prometo cobrar a secretária do presidente outra vez.
O comunista inglês falava bem o português. Havia estudado espanhol na universidade inglesa quando jovem. “Fiz língua e literatura espanhola e russa em Cambridge. Minha turma era um ano mais velha do que a do Orelhão, o parasita Charles (o príncipe).” Para praticar a língua, fez algumas viagens à Espanha e à América Latina. Nessas oportunidades, juntava coragem e entrevistava personalidades que admirava, como o pintor espanhol Salvador Dalí e o escritor argentino Jorge Luis Borges. Não teve muita sorte com os dois. “Salvador Dalí e sua mulher Gala Éluard foram ríspidos comigo.” E Borges? “Ora, ele chamou os golpistas ar-gentinos de Cavaleiros, o que me deprimiu.” A primeira viagem de Peter Godfrey à América Latina foi em 1977. Durou um ano. Chegou ao Rio em navio cargueiro. Geisel era o presidente. “Lembro dos espaços em branco nos jornais – acho que em protesto contra a censura. Foi uma época triste nos países do Cone Sul. Pinochet, Videla, Stroessner… O ambiente no Brasil não era tão asfixiante, mas era ditadura. No albergue juvenil do Rio encontrei uma uruguaia comunista, que fugira de ônibus para o Brasil. Ela estava indo normalmente para o trabalho em Montevidéu quando uma colega saiu correndo na rua para avisá-la que a polícia estava no escritório, esperando-a. Ao lado dela, conheci o carnaval carioca, Ouro Preto e Cabo Frio. Depois, ela refugiou-se na França.”
Mas Peter Godfrey se apaixonou pelo Brasil e por sua língua. E começou a estudar português diligentemente. Há pouco mais de dez anos fez sua segunda viagem à América Latina, que durou um ano e meio – seis meses só na terrinha. A atual é a sua terceira incursão por terras brasileiras, que começou em janeiro de 2009. Como sempre, é ás em curiosidades linguísticas. Quando, sem querer, usei a expressão “isso é só pra inglês ver” ele imediatamente puxou uma cadernetinha e fez anotações. “Só agora decifrei o português”, regozija-se.
Desta feita, Peter Godfrey percorreu as regiões Sudeste, Norte e Nordeste do Brasil. Claro, gosta da Amazônia. Esteve em cidades grandes e pequenas, incluindo a Aldeia Beija-flor, de Rio Preto da Eva, onde, em um processo chamado pelos antropólogos de “reconfiguração étnica”, famílias indígenas das etnias sateré-mawé, tukano, tuiúca, apurinã, baniwa, arara, marubo e maioruna tentam recuperar sua cultura e tradição. “Como em 1978, também este ano eu e o príncipe Charles visitamos o Teatro Amazonas, em Manaus, ao mesmo tempo. Não quis falar com ele, que aparenta ser um personagem saído de uma peça de Boal (era melhor que ficasse ali). Pena que nas duas ocasiões não tinha uma arma para fulminá-lo”, disse, brincando, evidentemente. Naturalmente, o comunista Peter Godfrey não suporta a monarquia: “Somos adultos ou não?”, pergunta-se sobre seu povo.
Como Niemeyer, Peter Godfrey detesta viajar de avião. Em todas as outras viagens para o continente latino-americano, ele se valeu de relações com jornalistas, sindicatos e marinheiros para vir embarcado em navios mercantes. Um deles o deixou em Havana. Na maioria das vezes, trabalhava como um dos marinheiros. Era barato e tinha a ver com seu modo de pensar. Mas nenhuma viagem lhe deu mais prazer como essa que o deixou em Cuba. Nela, foi-lhe pedido que editasse durante a viagem um jornal para os marinheiros. “Foi a primeira vez que fui repórter e editor ao mesmo tempo.”
No Brasil, faz os percursos de navio, trem ou ônibus. Nesse tempo de contato com latino-americanos e especialmente com brasileiros, daqui e de Londres, engendrou uma rede de relacionamentos e bases de apoio. Sempre tem uma casa para ficar. Em São Paulo, por e-xemplo, está hospedado no seio de uma família comum, que mora para lá de Interlagos. A dona da casa tem crianças que o adoram. Assim ele resume seu itinerário: “Desde Londres, viajei por trem, navio (Lisboa-Santos) e ônibus. Fui de São Paulo para Belo Horizonte conhe-cer Pampulha, depois Recife – tenho bons amigos lá -, Belém, Macapá (por barco), Manaus (por navio), Porto Velho (navio – Rio Madeira), Rio Branco, Cuiabá, Brasília, São Paulo e o Rio. Sinto-me nordestino, mas não gosto do charque!. Com amigos de lá, visitei uma aldeia wai-wai em Roraima e uma aldeia apurinã na fronteira do Amazonas com o Acre. No Acre, estive em Xapuri, onde morava Chico Mendes, e pesquisei um pouco a situação (não muito boa) dos seringueiros e do desmatamento”. Mas o repórter freelance comunista e vegetariano Peter Godfrey já conta 58 anos e não tem a mesma energia de antigamente. Ele confessa que desta vez veio de navio de passageiros. “Odiei, era um luxo desnecessário e repulsivo.” Assim como Niemeyer, Peter enfrenta aviões quando é estritamente necessário. “Não vai ter jeito, vou ter que voltar voando, meu visto expira no domingo. Estou morrendo de medo com a queda desse avião francês.”
Assim como Niemeyer, Peter Godfrey vive em um tempo em que a velocidade era outra. É ligado à França. Vai todo ano à festa do jornal comunista francês l’Humanité. “Mas esse tal de Eurostar, o trem-bala que une Londres a Paris em duas horas e 45 minutos, é horrível. Bons eram os velhos tempos que a gente tinha que viajar duas horas de trem de Londres a Dover. Depois, navegar uma hora e meia até Calais, na França. E de lá, mais três horas de trem até Paris. Somando os intervalos dava quase oito horas de viagem. Agora é rápido, mas a gente não vê mais a falésia branca de Dover, the white cliffs of Dover, como diz uma velha canção popular inglesa. A gente ganhou em tempo mas perdeu em poesia.”
Peter Godfrey odeia televisão, outra aceleradora do tempo. “Só induz ao consumismo. Toma conta do ambiente, se impõe. Não tenho em minha casa. Mesmo se tivesse filhos, não teria.” No Brasil, ele, que vive circulando em rodoviárias e bares, fica incomodado com a oni-presença do aparelhinho, agora de telas planas.
3 de junho, quarta-feira
Sílvia, secretária do presidente, avisa que Vera Niemeyer finalmente marcou a entrevista para sexta, 5 de junho, às 10h30. Ligo para Peter Godfrey, que se emociona com a novidade. Mas reclama da gripe, que o acompanha há um mês. Explico que ele deve ter entrado em contato com cepas do vírus influenza que não circula no hemisfério norte. Por isso está mais suscetível. Isso o deixa muito assustado. Me conta que quando vê no metrô alguém espirrando ou tossindo sem usar lenço, vai até ela e tenta explicar o perigo que está provo-cando. “Na Inglaterra, ninguém faz isso”, diz, admirado.
Imagino a cena. Atchim! “Por favor, você não se incomodaria se eu pedisse para não tossir mais sem tapar a boca com um lenço.” Peter Godfrey é antes de tudo gentil e educado. “Assim você evita contaminar outras pessoas neste ambiente fechado.”
– Ora essa, era só o que me faltava a essa hora…
Peter Godfrey ama os proletários, mas é de classe média. “Tive privilégios”, ele diz, “meu pai estava no ramo imobiliário”. Sua avó fugira do antissemitismo polonês e emigrara com a família para a Inglaterra.
4 de junho, quinta-feira
Um trabalhador do Memorial da América Latina deve ir ao escritório de Oscar Niemeyer pelo menos uma vez na vida. Como o mulçumano à Meca. Peter Godfrey se ofereceu para pagar todas as minhas despesas até o Rio. “Nada disso”, lhe disse, “nós vamos, mas colonialismo tem limite…”
Peter Godfrey pegou o bus para o Rio logo de manhã. Eu, só embarquei no leito da meia-noite. Assim chegaria lá com o dia amanhecendo. Peter Godfrey me ligou de Resende, onde os motoristas dos ônibus da linha São Paulo-Rio param para os passageiros esticarem os os-sos. Reclamou da gripe e perguntou se estava tudo bem. Chegando no Rio, me ligou de novo. Indagou se estava tudo bem, se desculpou por ter ido na frente e agradeceu por eu acompanhá-lo. Daí informou: “Estou no Hotel Rodoviário a R$ 45,00 a diária. Fica do lado da estação. Quarto 28. Te espero para gente tomar o café da manhã juntos”. Gostei do meu jornalista-inglês-comunista, judeu, vegetariano-sentimental-carente.
5 de junho, sexta-feira, manhã
O Hotel Rodoviário fica próximo ao Viaduto Perimetral da Avenida Rodrigues Alves. Fora, barulho infernal de trânsito pesado, ambiente sujo. Dentro do hotel, limpeza e sobriedade. Na portaria, no fim de um longo corredor azulejado, atende um velhinho encurvado e silencioso. Encontro Peter no minúsculo quarto 28. Espalhou suas tralhas pela cama, chão e banheiro. É minucioso e provavelmente tomado por pequenas manias. Procura alguma coisa com estar-dalhaço. Está ansioso, afinal, prepara-se para visitar seu mestre de 101 anos.
Lacônicos e reflexivos, tomamos o espartano café da manhã oferecido pelo Hotel Rodoviário. E rumamos para Copacabana, Avenida Atlântica, onde fica o escritório de Niemeyer. A entrevista estava marcada para as 10h30. Continuo observando meu amigo inglês, mas agora é cada um por si.
Tocamos o interfone e subimos sem-cerimônia ao provavelmente mais importante escritório da arquitetura mundial. O prédio é discreto, levemente decadente. As poucas pessoas no ambiente fumam sem culpa. A cintilante visão da Baía da Guanabara incomoda, de tão arrebatadora que é. Melhor não olhar para a varanda selada por vidros em curva. O traço de Niemeyer na parede, as estátuas em bronze de Dom Quixote e Sancho Pança, a foto esmaecida de Luis Carlos Prestes, a profusão de livros soltos na mesa central – sim, Peter Godfrey, não há dúvidas, estamos na Iasnaia Poliana do século XXI.
Oscar Niemeyer nasceu em 1907. Um pouco antes, uma personalidade mundialmente famosa recebia peregrinos de diferentes partes do mundo em sua propriedade na Rússia. Eram os primeiros anos do século XX e escritores, intelectuais, filósofos, homens santos, políticos, pessoas comuns, mujiques, todos iam a Iasnaia Poliana conversar com o velho Tolstói. Saiam de lá tocados por sua mensagem cristã-libertária-pacifista-anarquista, que inspirou gente como Hermann Hesse e Mahatma Gandhi, o movimento hippie, a contracultura e os ambientalistas. Algo parecido acontece com o escritório de Niemeyer atualmente, por onde passam militantes da esquerda mundial, comunistas incorrigíveis, artistas, filósofos, cientistas, poetas e políticos de variadas matizes como Fidel Castro, Hugo Chávez, Lula, José Serra, Aécio Neves…
Enquanto esperamos Niemeyer chegar, Peter Godfrey se debruça, sedento, sobre o mais recente lançamento do mestre, uma compilação das suas principais obras e projetos nos últimos dez anos. Destacam-se o projeto de estádio de futebol para a Copa de 2010 (procuram-se interessados em construí-lo), o monumento a Simón Bolívar, em Caracas, Venezuela, o Centro Cultural Internacional Oscar Niemeyer, em Avilés, Espanha, um teatro para a cidade de Rosário, Argentina, com capacidade para 1.500 pessoas – como no Teatro Ibirapuera, em São Paulo, seu palco se abre para uma praça que comporta 30 mil pessoas – e as obras do ciclo de Foz de Iguaçu: a Universidade Federal da Integração Sul-Americana (Unila), as sedes da Itaipu do Brasil e do Paraguai e do Centro Cultural Holoteca (várias coleções).
Converso com o arquiteto Jair Valera, braço direito de Niemeyer, que nos faz sala enquanto o anfitrião não chega: “Vem gente do mundo todo pedir projetos a Oscar. Fizemos recentemente um trabalho para o Casaquistão. Uma coisa leva a outra. Fidel, por exemplo, pediu uma escultura, depois uma praça para colocar a escultura, um teatro para a praça e agora mais quatro prédios para colocar em volta…”
Um alemão fala alto ao telefone celular e anda de um lado para o outro o tempo todo. Está acompanhado de um fotógrafo. “É um jornalista germânico que pintou aqui sem avisar”, con-ta Jair. “Ele quer muito entrevistar o Oscar sobre a morte de Moritz Kock um arquiteto do país dele que estava no avião francês. O cara tinha encomendado o projeto de uma praça para a cidade de Postdam. O avião caiu no mar levando o projeto e a maquete. Mas a prefei-tura de Postdam anunciou que vai fazer a praça assim mesmo.”
Repentinamente, o alemão para de falar e se faz silêncio no escritório. “Oscar chegou”, a-nuncia Jair. “Vocês podem entrar.” Somos recebidos em uma sala nos fundos. Estante, livros, mesa de trabalho, velho computador e uma televisão de tela plana encravada na parede oposta. Ele me olha bem nos olhos e diz em voz baixa: “E você quem é?” Entre os dedos, uma cigarrilha. Para se comunicar com Niemeyer, Peter Godfrey e eu tivemos que nos inclinar na cadeira e chegar bem pertinho. Jair acompanhou tudo.
Eduardo Rascov – Venho do Memorial da América Latina e faço minhas as palavras do presidente do Memorial, Fernando Leça, de que a sua presença continua a nos inspirar lá em São Paulo. Meu amigo Peter é um jornalista do Morning Star, antigo tablóide comunista inglês. Ele veio de Londres e percorreu o Brasil, mas não podia ir embora sem antes fazer umas perguntas para o senhor.
Peter Godfrey – Eu sei que você agora está muito ocupado com projetos novos, não? É claro, tem muita continuidade em sua obra, mas eu queria perguntar se você acha que ainda está desenvolvendo novas…
Oscar Niemeyer – Estamos trabalhando, procurando sempre a surpresa. Porque aquela ideia do Bauhaus da arquitetura – de máquina de habitar – era a maior bobagem, a ar-quitetura pode ser útil e ser bonita. Criar espanto. Nossa arquitetura objetiva atender o programa apresentado, mas a gente quer coisa que cria um pouco, que surpreenda quem vê. É aproximar a arquitetura duma obra de arte, quando a emoção e o espanto representam a característica principal. Isso é o que me dá mais prazer. A gente procura ter uma arquitetura mais leve, mais solta, com poucos apoios, que ela se faça mais au-daciosa e o espaço se faça mais generoso – a gente pode atuar de uma forma nova.
E.R. – E o senhor ainda se surpreende com o resultado de sua criação?
O.N. – Eu não sou mágico, não. A arquitetura é sempre uma surpresa. O passado acabou. A arquitetura hoje é para você utilizar o concreto em toda a sua possibilidade. Não há mais ra-zão para fazer uma arquitetura simples, retilínea, porque no concreto ficou mais fácil…. Anti-gamente, por exemplo, na Renascença, eles iam fazer uma cúpula e não passavam de 30, 40 metros. Hoje a gente pode fazer com 200 metros. Eu fiz um trabalho grande na Espanha – museu, auditório. O Jair Valera que trabalha muito comigo foi ver a obra. Ficou espantado: hoje a gente pode fazer uma cúpula de 40 metros em um dia…
Jair Valera – A estrutura é feita com um material inflável – pode ser inflado em três horas. Depois, enche de concreto por dentro, o que leva mais 20 dias.
O.N. – Quer dizer, a gente passa pelo terreno de manhã e não tem nada. Quando volta de noite tem uma cúpula. Isso é uma mágica. São tantas as possibilidades do concreto armado – isso é o importante. Eu fiz um estádio agora. São algumas colunas, vigas, que atravessam o estádio, tem quase 200 metros de vão, em cima vidro, embaixo, iluminação.
E.R. – Onde vai ser feito esse estádio?
O.N. – Em lugar nenhum. Fiz só para “brincar” na revista. Nós temos uma revista de arquite-tura que mostra bem a nossa maneira de trabalhar. Sabemos que a arquitetura é importante, mas a vida é mais importante que a arquitetura. Então, essa revista é para mostrar nossa arquitetura, mas, ao mesmo tempo, levar o conhecimento aos mais jovens.
E.R. – É por isso que o senhor planeja desenvolver na sua Fundação uma série de cursos, uma espécie de universidade aberta…
O.N. – Pois é, nós estávamos fazendo a escola em Niterói. A ideia é levar conhecimento ao jovem. O estudante brasileiro entra na escola superior só pensando na profissão. Então ele não lê nada, é uma merda. E quanto ele sai para a vida, é uma criança sem saber os proble-mas da vida, ele não tem uma posição política… de modo que a nossa preocupação, além da arquitetura, é essa ….
P.G. – Em sua obra, pode-se dizer que a surpresa, além de ser uma preocupação estética, é um elemento de alegria vital?
O.N. – Claro! Fazer uma coisa nova, diferente. O passado já acabou em arquitetura. Tinha um arquiteto que uma vez me disse uma coisa certa: “Não existe arquitetura antiga e mo-derna, existe boa e má arquitetura”. A antiga também já foi moderna. Se eu vou fazer um projeto, não quero saber nada do que já foi feito para ele. Começo do zero.
A nossa preocupação é política também, é mudar o mundo. A arquitetura é o nosso trabalho, a gente tem ficado em cima da prancheta a vida inteira, mas a vida é mais importante do que a arquitetura. Importante é fazer o homem melhor. O homem olhar para o outro sem procurar defeitos, todo mundo tem defeito e qualidades, então a gente tem que viver de maneira mais integrada…
P.G. – Entendo. Mas a política se expressa também no desenho?
O.N. – Aqui no escritório, a gente tem que dar o exemplo. Há cinco anos vem um cientista aqui conversar com a gente toda terça-feira. Primeiro ele falava sobre filosofia, história, ago-ra é mais sobre o cosmos. Então a gente sai de uma aula sobre o cosmos se sentido menor, mais modesto. As coisas não são tão importantes assim, o homem é um fodido mesmo… Mas tem que ser pelo menos leal, se dar bem com os outros. Estamos no mesmo barco…
P.G. – Pensando ainda o elemento político da arquitetura, você não quer uma arquitetura simplificada, não?
O.N. – A arquitetura é uma coisa. A política é outra. É fazer o mundo melhor. O dia em que a gente puder influir na arquitetura vai ser diferente. As casas serão mais modestas, mas os grandes empreendimentos humanos, os teatros, os estádios, os cinemas serão maiores ainda, porque todos poderão acessar. Hoje em dia, o arquiteto trabalha para o governo, para os ricos, o pobre está fodido, o pobre vê aquilo tudo de longe… Os ricos do Brasil, a elite ignorante, se encerra em cada apartamento de luxo! Os mais pobres estão nas favelas, são olhados por essa elite como gente ignorante, quase inimiga. Isso tende a acabar.
A ciência nos traz a verdade, nos faz tirar a fantasia, mas nos faz pequeninos também. O homem tem que ser realista A vida é uma merda, a gente vive, morre, vê os outros morrerem… Que exista pelo menos o sentimento realista de solidariedade… Outro dia um jornalista me perguntou: “Oscar, qual é a palavra que você prefere?” Eu lhe disse: “Solidariedade”. O cara era do Pasquim, todos meus amigos. Ele emendou: “E a vida?”. Ora, “a vida? É mulher do lado e seja o que Deus quiser”. A vida a gente leva como pode, se surge oportunidade. Me lembro do meu amigo João Saldanha, pessoa muito inteligente, que lamentava: “Você quer fazer uma coisa e acaba fazendo outra”. Assim é a vida do ser humano…
P.G. – Mas você criou belas catedrais…
O.N. – Eu fui criado em uma família católica – era uma casa grande, meu avô veio de Maricato e se estabeleceu no Rio. Sua casa tinha dois andares, a sala de visitas tinha cinco janelas, três para a rua e duas para os lados. Me lembro da minha avó transformando uma das janelas em oratório. E a missa era rezada em casa. De modo que minha família era católica, cheia de preconceitos. Mas quando eu saí para a vida, com 18 anos, eu já tinha esquecido de tudo aquilo. Já pertencia ao grupo Socorro Vermelho, que angariava donativos e roupas para distribuir aos que mais sentem falta. Hoje estou muito afeito a atender os católicos. Os da minha família eram gente muito boa, honestos, eles acreditavam naquilo, mas eu… Mas eu não acredito em nada, é lógico. Nas aulas estamos discutindo como foi o Big Bang, como começou tudo…
P.G. – Mas para desenhar uma igreja…
O.N. – Pois é, me sinto à vontade por causa disso. Inclusive o tema de uma catedral é fantástico, você pode fazer o que quiser. Você tem o problema de luz para resolver. Eu me lembro como gostei de fazer a Catedral de Brasília, com material pré-fabricado, aquelas curvas todas e suspender. O problema de uma catedral para a invenção arquitetônica é muito bom. Eu gosto de conversar com padre. Cada um tem sua crença. Fiz também uma mesquita, eles me deram o programa e eu fiz…
P.G. – Pelo seu sobrenome, eu queria perguntar se tem alguma ascendência judia?
O.N. – Não, meu nome é Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares. Ribeiro e Soares são portugueses, Almeida é arabe. Eu devia me chamar Oscar Ribeiro de Almeida, porque convivi a vida inteira com meu avô. Mas o nome estrangeiro contou mais. Eu tenho agora vontade de assinar Oscar Niemeyer e Ribeiro de Almeida, pela minha ligação com o meu avô.
P.G. – Eu sei que você escreveu bastante sobre o otimismo e uma atitude realista, mas você tem esperança no futuro em geral, em como está se desenvolvendo a sociedade?
O.N. – O planeta cansou. Daqui a não muito tempo, dentro de 40 anos, as coisas vão mudar muito. O mar pode subir mais de dois metros e todas as cidades litorâneas terão de mudar, o próprio calor pode crescer tanto que, em cima dos apartamentos, a gente tenha de fazer jar-dins, áreas livres cobertas de vegetação. O problema da água…
P.G. – O problema é falta de consciência política e social ou é o capitalismo que vende tu-do….
O.N. – O capitalismo é uma merda, está decadente, mas nós estamos vivendo um momento que nos permite ter uma certa esperança: o nosso presidente é um operário, é ligado ao po-vo, é ligado à defesa da América Latina, tão ameaçada. Ele está do lado do grupo do Fidel, do Chávez. É um guerreiro e essa pressão dos americanos que tem nos ameaçado a vida inteira tende a acabar.
E.R. – O que o senhor achou da eleição de Barack Obama?
O.N. – Eu gostei, é uma boa figura. Mas nós não podemos querer demais dele, eu tenho a impressão que ele está tentando fazer o que pode, mas não pode de repente mudar tudo. Mas só criando uma situação favorável a Cuba já mostra que é uma pessoa mais evoluída, porque o Bush é um merda, ameaçou o mundo inteiro.
E.R. – O senhor ainda acredita que o comunismo tem um papel no mundo de hoje?
O.N. – Queremos tão pouco. Queremos que o homem seja igual, de acordo com a capacidade de cada um. Queremos que o homem olhe o outro com fraternidade e não procurando defei-to, todos nós estamos juntos no mesmo barco, devemos viver de mãos dadas. Pra que essa briga? O ser humano está cheio de qualidades e defeitos e a fraqueza dele frente ao universo devia fazer o homem mais consciente, mais simples, mais solidário. Mas o sujeito cresce, não lê nada, aprende só os assuntos da profissão dele e vira uma pessoa especializada. Um só fala de arquitetura, outro só fala de engenharia, outro só de medicina…
Nós fizemos uma revista, o nome é Nosso Caminho, cujo pretexto é arquitetura, mas fala de literatura, de filosofia, de tudo para fazer o jovem mais idealista, para ele ver que está num mundo egoísta e deve tentar melhorá-lo. Acho que a ignorância é a responsável pela reação contra a filosofia. Veja a história, aqueles grandes imperadores sempre travando tan-tas guerras, quando chega em Karl Marx parece que a vida se ilumina.
P.G. – Você acha que o Brasil está fazendo bastante progresso socialmente?
O.N. – Acho que o Brasil vive um momento bom, o Lula é competente, o Itamaraty atua mui-to bem. Não é a política externa tradicional, nós não queremos brigar com ninguém, mas nós queremos nossas leis e independência, nossa soberania. Durante o período do Bush, foi difícil. Não somos contra o povo americano, o povo é bom, tem agora o presidente que mere-ce…
P.G. – Só que ainda tem os latifundiários e muita gente sem terra…
O.N. – É. Tem que fazer a reforma agrária, a terra pertence a todos. Hoje o que comanda a reação é o egoísmo, a falta de compreensão da vida, do ser humano mais justo… É o que eu digo a você, nas aulas sobre o cosmos, que temos toda terça, a gente sai achando que o ho-mem é bem menor. Estamos de passagem aqui…
P.G. – A identidade brasileira…
O.N. – A arquitetura é a aplicação da técnica mais avançada, é resolver os problemas. Nós estamos fazendo para Brasília, por exemplo, uma torre de televisão digital de 170 metros, apelidada de A Flor do Serrado. No meio do caminho, a 50 metros do chão, ficará um setor de informações. Depois, restaurantes e um mirante. É uma torre que ninguém fez igual.
O projeto na Espanha é importante, tem uma cúpula de 40 metros erguida repentinamente. A gente tem de estar informado. Se fosse fazer pelo sistema normal, demoraria oito meses. A gente como arquiteto tem que estar informado sobre as possibilidades do concreto armado.
E.R. – Como essa arquitetura avançada se relaciona com o cansaço do planeta?
O.N. – Um dia eu quero mesmo fazer uma modificação em Brasília – porque a praça que existe em Brasília, que vai caracterizar a capital, é uma praça pequena, que cruza a rodoviá-ria. Brasília deve ter uma praça para eventos importantes. Mas cada um dá a sua opinião, a gente não pode convencer todo mundo…
P.G. – E você está fazendo bastante coisas em Niterói, não?
O.N. – Um dia eu vi uma foto do local onde seria o MAC e o ponto de vista era tão bonito, o contraste com a curva, com prédios diferentes. Eu disse vou me dedicar a esse negócio. Atu-almente, toda quarta-feira eu vou para Niterói, fico lá o dia inteiro. Pois é, a conversa que tenho com vocês aqui podia ter marcado para lá. Lá, vocês teriam uma ideia da obra, ela ficaria mais conhecida – assim, as verbas são mais fáceis de serem liberadas. Para mim é pesado, sair daqui e passar a quarta-feira dentro de uma cúpula daquela – mas é o sacrifício… Dar o exemplo. A gente se interessa que as coisas sejam bem feitas.
Jair Valera – Oscar tem recebido muitos estudantes também nas obras de Niterói, não é, Oscar?
O.N. – Estou aproveitando para fazer campanha junto à juventude. No primeiro encontro foram 70 estudantes de São Paulo, vieram para uma reunião embaixo da cúpula, conversei com eles, expliquei tudo, eles saíram entusiasmados. Depois veio a mesma quantidade de Brasília e agora virão de Minas Gerais. Se vocês forem a Minas Gerais vão ver que obra im-portante eu estou fazendo lá. O governo queria fazer o palácio do governo e 40 prédios para as secretarias de estado. Então o terreno ia ter o palácio e uma porrada de predio-zinhos em volta. Aí é um caso em que arquitetura e altura se impõem. Em vez disso, fiz dois prédios de 200 metros com todas as secretarias. E ligação direta com o palácio. O terreno pareceu maior. Ficou mais bonito. É uma obra que está correndo muito bem. Quem passa por ela se espanta. Isso é importante. É uma obra monumental. O governador de lá está tomando uma posição feito JK, quer fazer coisas extraordinárias que mudem a cidade.
J.V. – Sem falar na economia. As secretarias todas reunidas economizam. Quando você tem secretarias separadas, precisa de mais gente…
P.G. – Que conselho você dá aos mais jovens?
O.N. – Ler um pouco mais. A leitura é importante, você tem de ler romance, ler o que quiser. Teve um tempo que eu lia muito um escritor francês, George Simenon, que escrevia contos policiais. Me lembro que um dia o pessoal do escritório dizia pra mim: “Você tem que parar de ler esse Simenon, não tem conteúdo nenhum”. Mas aconteceu que eu tava lendo o Sartre, um livro que ele escreveu para Simone de Beauvoir. E nesse livro ele dizia “hoje li três livros de Simenon”. Se Sarte lê três livros de Simenon em um dia por que eu não posso ler um de vez em quando?
Tem de ler para se informar. As coisas todas se entrelaçam. A ignorância não dá. Nós temos que dar o exemplo. Há cinco anos a gente tem aula de filosofia e cosmos aqui mesmo. É para o pessoal que trabalha aqui, umas dez pessoas.
P.G. – No Brasil tem muita televisão, muita novela, não?
O.N. – Ah, uma merda, novela em geral mostra o mundo pior do que ele é, um grupo de pes-soas se agredindo, cenas mais deprimentes… algumas são melhores que outras, mas…
P.G. – É um mundo consumista…
O.N. – É tudo briga por negócio de dinheiro…
P.G. – Você ainda tem alguma ambição não realizada?
O.N. – Não, eu tenho tanto trabalho. Me pediram projeto até – como é aquele lugar perto da Rússia, Jair? Casaquistão? Uma praça de 300 por 300 metros. De modo que minha arquitetu-ra se fez muito divulgada. Sou obrigado a defendê-la, a explicar aos estudantes como ela é, explicar a arquitetura e principalmente explicar a vida que é mais importante.
E.R. – E o senhor acompanha outros arquitetos?
O.N. – Ah, sim, arquitetos que surgem. Vejo nas revistas. Tem arquiteto bom em toda parte. Mas acho que cada arquiteto deve ter a sua arquitetura. Mas arquiteto depende muito da o-portunidade. Eu tive sorte. Fiz o projeto de Pampulha, fiz uma capela completamente diferente, de modo que teve sucesso. Foi a primeira obra de JK. Foi o sucesso da obra que deu coragem para ele fazer Brasília. Era um problema maior, mas a mesma ideia de fazer uma coisa útil.
P.G. – E a ideia de integração com outras artes?
O.N. – Já em Pampulha, cobri a capela de cúpulas… Fiz como eu bem quis fazer, mas chamei o Candido Portinari, ele veio e fez a fachada de azulejo. Sempre fui a favor da integração das artes à arquitetura. Na Renascença, veja os palácios, se eles não tivessem a pintura que têm, não teriam tanta importância. Então, a ligação da arquitetura com as artes plásticas é fun-damental. Esse teatro que estou fazendo em Niterói ainda não está pronto, eu queria uma fachada de azulejo toda desenhada. Não tinha dinheiro para chamar um pintor, então eu mesmo fiz o desenho. Desenhei as mulheres dançando lá na fachada.
P.G. – Você acha que essa integração arquitetura-arte nasceu com Aleijadinho?
O.N. – Não! Na Renascença já faziam isso. Os egípcios, muito antes. Foi sempre a ideia do próprio artista de fazer uma coisa que ele acha bonito, que deve ser feito. É antiquíssimo.
E.R. – Oscar, o prédio da sede da ONU. Foi um conjunto de arquitetos, mas o senhor atuou também lá. Como foi essa história?
O.N. – Meu projeto foi o escolhido por unanimidade. E aí o Corbusier ficou muito triste, ele queria fazer o projeto. Então ele me chamou e pediu se eu podia fazer uma mudança na Pra-ça das Nações Unidas. De um lado tinha um prédio, de outro, outro prédio, e ele pediu se eu podia trazer, no meu projeto, a grande assembleia para o centro do terreno. Eu era jovem, ele era o mestre. Eu concordei. E foi uma merda o jeito que aquele prédio foi feito, a porta que eu fiz desapareceu, ficou o prédio da assembleia grudado em outro prédio mais alto, uma merda.
E.R. – E daí vocês dois assinaram o projeto?
O.N. – É, eu me lembro que um dia, depois daquela coisa toda, eu estava almoçando com ele, e ele me disse “você é generoso, hein…” Eu fiquei lembrando daquele dia que ele pediu para mudar a posição da grande assembleia; que concordei, que ficou um prédio grudado no outro – uma merda. Isso é passado, não me arrependo não, ele estava tão aflito, queria fazer o projeto.
P.G. – As colaborações com outros artistas que você tem feito, escultores, sempre…
O.N. – É, Brasília era com Portinari, Athos Bulcão, Cheschiatti. Cheschiatti tinha muito talento, ele fazia aquelas mulheres bonitas, e Portinari era um desenhista estupendo…
P.G. – Você sempre escolheu muito bem seus colaboradores…
O.N. – É, eu gostava. Di Cavalcanti, por exemplo, eu gostava de trabalhar com ele, porque de todos era o mais inteligente, o mais informado, ele sabia das coisas, era culto. Sujeito muito forte. Me lembro que um dia estava com ele em Paris, andando num táxi. Ele sentia-se bem cansado e disse: “Puxa, Paris… eu gostava de Paris quando era jovem, a gente ia passear com as mulheres e tudo…” O chofer francês olhou pra trás e disse “Monsieur, o outono é a época mais bela da vida, não?”… O chofer sabia das coisas, sujeito inteligente – aqui no Brasil seria difícil ter uma frase desta com um chofer…
P.G. – Para manter o espírito jovem tem que ter uma atitude como a da criança de maravilhar-se, de espantar-se…
O.N. – Acho que a vida é difícil, a gente fica mais velho e vai se despedindo dos outros. A vida não tem muito sentido, não. Mas ela é mais digna se predomina essa vontade de ser útil, de ajudar o outro. O resto, isso de se dar importância é uma merda, ninguém é impor-tante.
P.G. – Mas você mantém o seu entusiasmo?
O.N. – Mantenho. Tenho trabalho, gosto de conversar… o Jair trabalha comigo, por exemplo, ele é arquiteto, me ajuda muito, a gente conversa, discute os problemas, ele é muito bom arquiteto.
P.G. – E a beleza, também é importante para você?
O.N. – Darcy Ribeiro dizia que a beleza e a mulher são fundamentais. É como eu disse a você: A vida? É mulher do lado e seja o que Deus quiser. Que ainda a coisa boa que a gente faz é trepar.
E.R. – Oscar, como é viver 100 anos?
O.N. – É uma merda. É uma merda porque você se despede de muita gente. Por exemplo, eu agora quero ir a Paris. Os meus amigos, com quem eu convivi, todos desapareceram… Tenho boa lembrança da França: quando eu fui pra Paris pegar um trabalho, era o tempo do Jango. Fui me despedir do Darcy Ribeiro, que era ministro de Goulart, e ele me disse: “Oscar, esta-mos no poder!” Ele estava completamente enganado, nos dez dias que levei no navio, passei de uma democracia popular a um dos regimes mais abomináveis. Foram ao meu escritório e esculhambaram lá… De modo que cheguei na França e a situação era outra no Brasil. Daí, um negócio que me ajudou muito foi o De Gaulle querer me proteger. De Gaulle não, Mal-raux. Malraux tirou com De Gaulle um decreto que eu podia ficar na França e trabalhar como arquiteto francês.
E.R. – E para a França também foi bom, pois sua obra ficou lá.
O.N. – Eu e alguns amigos ficamos todos lá, trabalhando e pensando no Brasil. Foram 20 anos de miséria e violência. Fiquei lá uns meses. Quando eu voltei, a polícia não me esqueceu, não. No primeiro dia que voltei fui levado pela polícia para fazer declaração disso… daquilo…. mas não sofri nada, não. Alguns amigos meus foram torturados, mas eu nunca sofri isso. Era humilhado. Por exemplo, “escrachavam” o sujeito. Era um salão enorme, cheio de mesas e de policiais. Me pegaram e me fizeram falar com todos os policiais, para eles ficarem me conhecendo. Chamavam isso “escrachar” o cara. Mas tudo bem, a coisa mudou, o Lula está aí, é corajoso, tá ao lado do povo, os que estão contra ele vão se foder, porque ele tem prestígio internacional, ele quer ficar ao lado do Chávez, dessa turma toda. O Fidel e o Chávez estiveram aqui no escritório…
P.G. – Naquela época dos militares você sentiu muito medo?
O.N. – Não. Fui chamado na polícia diversas vezes, mas não sofri nada.
E.R. – O senhor tem até uma foto do Luís Carlos Prestes em seu escritório. O senhor era mui-to amigo dele? Conte um história do Prestes, uma lembrança boa…
O.N. – O Prestes vinha para o Brasil e precisava arranjar uma casa para ficar. Eu comprei um apartamento e dei pra ele. Fiquei muito satisfeito com isso. Quando ele saiu da prisão (em meados da década de 1940) foi para o meu escritório na Rua Conde Lage, no Rio. Disse pra ele, você está fazendo um trabalho mais importante do que eu, fica com esse escritório que eu vou procurar outro lugar. Ele transformou meu escritório em “comitê metropolitano”. De modo que fomos muito amigos, esses fatos todos se entrelaçando. A história do Prestes é fantástica, ele foi pro Sul como militar trabalhar em algumas obras; quiseram fazer modifica-ções, ele não deixou. Mas Prestes viu que pessoalmente não deveria protestar, já estava com ideias comunistas na cabeça. Ele criou a coluna e atravessou o Brasil brigando de fora a fora. É uma figura fantástica.
P.G. – Você ainda é militante comunista?
O.N. – O partido está fraquinho…
E.R. – O PCB tornou-se PPS…
O.N. – É, mas eu não tomei conhecimento disso. O meu é o mesmo partido, do tempo antigo. O partido está menos conduzido neste momento. Não tem influência, o pessoal não tem a-cesso. Mas vai melhorar. Vai melhorar. Sua filosofia é tão natural.
P.G. – Suas obras surpreendem, deleitam, mas desafiam um pouco a gente…
O.N. – Cada um tem sua maneira de ver, mas elas são lógicas e seguras. A arquitetura usa as técnicas contemporâneas na sua plenitude, atende o programa. Nós não inventamos pro-grama, nós fazemos o que pedem para fazer. Quer dizer, aqui me pedem um palácio em Minas Gerais. Eu sou arquiteto, eu faço plantas, mas eu gostaria de fazer outras coisas…
P.G. – Você escreve também…
O.N. – É, eu escrevo.
E.R. – Como é sua rotina de trabalho?
O.N. – Hoje, por exemplo, atendo quem vem falar comigo pela manhã. E trabalho depois do almoço até onde der.
P.G. – Você fuma muito?
O.N. – Não. Sempre fumei muito pouco, mas agora fumo mais quando estou trabalhando, entre uma dúvida e outra…
E.R. – E essa história do avião francês?
O.N. – Veja esse desastre. O alemão que morreu veio ao Rio porque ele queria fazer uma capela num parque em homenagem ao pai dele, que era um arquiteto muito bom e famoso. Ia levar o projeto e a maquete. E pronto, morreu. Que merda. Avião… Andei de Concorde e achei ótimo, mas é um desprezo pela natureza botar um avião com 200 pessoas apertadas lá dentro… Viajo de navio, navio não naufraga.
P.G. – Muito obrigado por tudo, os projetos dos últimos dez anos são emocionantes.
O.N. – Quando passarem pelo Rio de Janeiro outra vez e quiserem subir para conversar, é só apertar a campainha.
5 de junho, tarde
Peter Godfrey saiu certo que havia encontrado um sábio. Nada da ostentação material ou psíquica das celebridades planetárias. Como vai morrer esse homem, distribuindo ensina-mento e dando o exemplo? É verdade que Niemeyer já fala editado, repetindo muito de suas frases e ideias que estão dispersas em entrevistas e livros. Muitas vezes Peter Godfrey não conseguia concluir seu pensamento ou a pergunta que ele queria tanto fazer e já o mestre emendava sua reflexão pronta.
Jair Valera explicou que Niemeyer cobra pelo piso da tabela do sindicato dos aquitetos. Se deixarem, ele quer cobrar menos. Ele e os outros arquitetos que trabalham no escritório é que argumentam que assim estariam aviltando a classe. Nos outros países, cobra pela tabela de lá. “Mas quando é um projeto de esquerda que ele acredita muito e se apaixona, daí não tem jeito, não quer cobrar nada.”
Tomamos um lanche no Apetite Café e Delicatessen da Rua Rainha Elisabeth, em Copacabana (Peter Godfrey precisava ir ao banheiro e receava ser impedido caso não usasse o restaurante, como é comum em seu país), e rumamos para a Praça Treze, onde tomamos o primeiro catamarã para Niterói. O Caminho Niemeyer nos esperava. É um canteiro de obras que se inicia ao lado de um movimentado terminal de ônibus chamado João Goulart.
Somos impedidos de entrar pelo segurança terceirizado Anderson Araújo, que cumpre seu dever. Só com autorização de Celmo Triger, presidente do Caminho Niemeyer e secretário de Planejamento de Niterói. Mas ele gentilmente explica que as obras começaram, na verdade, há dez anos. O Teatro Popular à nossa frente, por exemplo, foi inaugurado às pressas há três anos, em época eleitoral, mas só agora o prefeito Roberto Silveira Filho resolveu finalizar o projeto… “Não estou entendendo bem o que você está falando, meu amigo, deixa pra lá”, interrompeu Peter Godfrey, não demonstrando interesse na política miúda nativa. Tinha aca-bado de estar com Oscar Niemeyer, oras!
O certo é que além do Teatro Popular, a oca da Fundação Niemeyer está lá erguida à espera de verbas para a conclusão. Ao seu lado uma cúpula menor, onde se instalará o Memorial Roberto Silveira (ex-governador). No terreno de 70 mil metros ainda será construído um templo batista (só tem a pedra fundamental) e uma torre de 60 metros em formato de cogumelo com mirante e restaurante. Mais à frente, seguindo o mar, serão erguidos o Museu BR de Cinema e a nova Estação de Barcas de Charitas, esta já depois do ponto em que um OVNI chamado MAC pousou delicadamente e permanece lá olhando para a Baía de Guanabara.
Como processar todas essas informações era o que o olhar de menino envelhecido de Peter Godfrey estava me dizendo. Já sei, ele precisava voltar para o hotel e descansar. Espero que a gripe melhore, amigo. Saí do catamarã e fiquei na Praça Treze. Já era noite. Havia um ajuntamento de gente em frente ao Paço Imperial. Parece que Dudu Nobre e Beth Carvalho iam cantar no Viradão Carioca. Ah, vicissitudes profanas que se interpõem.
As obras de Oscar Niemeyer agora são apontadas para o céu, como as torres e monumentos que tem criado. É como, já no fim da vida, ele quisesse marcar a geopolítica da eternidade. Sua fala tempera a melancolia de quem lembra fatos e pessoas que já passaram, ao viço de quem ainda realiza e ao entusiasmo realista de quem permanece acreditando.
12 de junho, sexta-feira
Último contato de Peter Godfrey, por e-mail:
“Ainda estou no Rio. Ainda no Hotel Rodoviário! Não tive tempo de mudar. Mas felizmente estou melhor de saúde nos últimos dois dias. Um contato holandês está procurando para mim uma passagem para a Europa por navio cargueiro só que o meu visto para ficar no Brasil vence este domingo. Assim é muito possível que eu tenha que pegar um avião.”
Ainda em São Paulo, quando perguntei a Peter Godfrey qual a razão dele permanecer comunista, ele me respondeu com uma palavra: “Solidariedade”. Agora sei o que via desde o início fora de lugar nele. É a solidariedade, algo raro hoje em dia. Chávez errou. Além de Fi-del e Niemeyer, há um comunista na Inglaterra.
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